«Desenredo»
Conto de Guimarães Rosa
381- «DESENREDO»
Do narrador seus ouvintes:
– Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o
cheiro de cerveja. Tinha o para não ser célebre. Como elas quem pode, porém?
Foi Adão dormir e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que,
nesta observação, a Jó Joaquim apareceu.
Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás,
casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o
amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e
vento. Mas tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas.
Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e
as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram,
conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo
abismo é navegável a barquinhos de papel.
Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso,
existindo só retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto.
Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano.
Até que -deu-se o desmastreio. O trágico não vem a
conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro… Sem mais cá
nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se, também, que a
ferira, leviano modo.
Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de
crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas,
devolvido ao barro, entre o inefável e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé
em três estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos.
Reteve-se de vê-la. Proibia-se de ser pseudo personagem, em lance de tão
vermelha e preta amplitude.
Ela -longe- sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e
sã. Ele exercitava-se a agüentar-se, nas defeituosas emoções.
Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim é impossível?
Azarado fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de
tifo. O tempo é engenhoso.
Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas
já medicado. Vai, pois, com a amada se encontrou -ela sutil como uma colher de
chá, grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar
de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo
popular, por que forma fosse.
Mas.
Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem
e parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios.
Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora:
traído e traidora. De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão.
Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou a
mulher, a desconhecido destino.
Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó
Joaquim sentiu-se histórico, quase criminoso, reincidente. Triste, pois que tão
calado. Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. Mas, no
frágio da barca, de novo respeitado, quieto. Vá-se a camisa, que não o dela
dentro. Era o seu um amor meditado, a prova de remorsos. Dedicou-se a
endireitar-se.
Mais.
No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a
aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã. A bonança nada tem a ver com a
tempestade. Crível? Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se fazer de
louco. Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade -idéia inata. Entregou-se a
remir, redimir a mulher, à conte inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do
ar. De sofrer e amar, a gente não se desafaz. Ele queria os arquétipos,
platonizava. Ela era um aroma.
Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia
isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas.
Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cena do
mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja. Demonstrando-o,
amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles
a fundou. O que não era tão fácil como fritar almôndegas. Sem malícia, com paciência,
sem insistência, principalmente.
O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas,
acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim,
genial, operava o passado -plástico e contraditório rascunho. Criava nova,
transformada realidade, mais alta. Mais certa?
Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com
convicção manifesta. Haja o absoluto amar -e qualquer causa se irrefuta.
Pois produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das
reticências, o tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a
anterior evidência e seu nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai
para cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos.
Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde
se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio
sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento.
Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e
Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua
útil vida.
E pôs-se a fábula em ata.
Guimarães Rosa
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