«A Loba»
Conto de Giovanni Verga
400- «A LOBA»
Era alta, magra; mas tinha um seio firme e vigoroso, de morena - embora já não
fosse criança - pálida como se tivesse sempre a malária, e naquela palidez, uns
olhos grandes e uns lábios frescos e rubros que fascinavam.
No povoado chamavam-lhe "A Loba" porque nunca se
saciava. As mulheres persignavam-se ao vê-la passar sozinha como uma cadela,
com aquele andar errante e desconfiado de loba faminta; roubava filhos e
maridos num abrir e fechar de olhos, com seus lábios rosados, e levava-os
colados aos seus vestidos, com aquele olhar de Satanás, ainda que estivessem
ante o altar de Santa Agripina. Por sorte, a Loba não ia nunca à igreja, nem
pela Páscoa nem pelo Natal, nem para ouvir missa, nem para se confessar. O
padre Ângelo de Santa Maria de Jesus, um verdadeiro servo de Deus, tinha
perdido a alma por ela.
A pobre Marica, menina boa e desembaraçada, chorava às
escondidas, porque, filha da Loba, ninguém a queria por mulher, apesar de ter
seu enxoval na cómoda e seu pedaço de chão como qualquer outra moça do povoado.
Um belo dia, a Loba enamorou-se de um belo rapaz que tinha
voltado do serviço militar e que ceifava feno com ela nos campos do notário;
mais do que se diz enamorar-se, sentia que lhe ardiam as carnes sob o fustão do
corpete, e provar, ao fitá-lo nos olhos a sede das cálidas tardes de junho, em
meio da planície. Porém ele continuava ceifar tranquilamente, atento aos
feixes, e dizia-lhe: - O que há, dona Pina?
Nos campos imensos, onde só se ouvia o estridular do voo dos
grilos, quando caía o sol a prumo, a Loba ceifava gavela após gavela e feixe
atrás de feixe, sem se cansar jamais, sem erguer nem um momento o corpo, sem
aproximar os lábios do garrafão, com o intuito de estar sempre nos calcanhares
de Nanni, que ceifava e ceifava, e lhe perguntava de quando em quando: - O que
quer, dona Pina?
Uma noite lhe disse, enquanto os homens dormitavam na eira,
cansados, e vagavam os cães pelo campo vasto e negro: - Quero você, que é
bonito como um sol e doce como o mel! Quero a ti!
- E eu quero a tua filha, que é mocinha - respondeu Nanni
rindo.
A Loba levou as mãos à cabeça, coçou as fontes sem dizer
palavra e, e se foi, sem voltar mais na eira. Mas em outubro tornou a ver
Nanni, quando se extraía azeite, pois trabalhava perto de sua casa e o ranger
da prensa não a deixava dormir a noite inteira.
- Apanha o saco das azeitonas - disse à filha - e vem
comigo.
Nanni empurrava com a vara as azeitonas para debaixo da mó,
e gritava "upa!" à mula para que não parasse.
- Gosta de minha filha Marica? - perguntou-lhe dona Pina.
- Que a senhora dá para a sua filha Marica? - perguntou
Nanni.
- Tem tudo o que era do pai, e, além disso, lhe dou minha
casa; a mim me basta que me dê um canto na cozinha onde possa estender um
colchão.
- Se é assim, falaremos para o Natal - disse Nanni.
Nanni estava todo besuntado e sujo do azeite e das azeitonas
postas a fermentar, e Marica não gostava dele de jeito algum; porém sua mãe
agarrou-a pelos cabelos, diante da casa, e lhe disse, apertando os dentes:
- Se você não o pega, te mato!
A Loba parecia doente, e o povo dizia que o diabo quando fica velho se faz
ermitão. Já não vivia de lá para cá; já não se punha a soleira com aqueles
olhos de endemoninhada. O genro, quando ela lhe olhava com aqueles olhos,
desandava a rir, e tirava o escapulário da Virgem para se benzer. Marica ficava
em casa amamentando seus filhos, e sua mãe andava pelos campos trabalhando com
os homens, como um homem também, lavrando, capinando, conduzindo o gado,
podando as videiras, quer soprasse o gregal, o levante de janeiro ou o siroco
de agosto, quando mulas abaixavam a cabeça e os homens dormiam de bruços ao
abrigo do muro, do norte. "Nessa hora, entre véspera e nona, em que não
passeia mulher direita", dona Pina era o único ser vivente a quem se via
errar pela campina, sobre os seixos abrasados dos caminhos, entre os secos
restolhos dos imensos campos, que se perdiam no cálido ambiente, longe, muito
longe, para o Etna nevoento, onde o céu pendia, pesado, sobre o horizonte.
- Acorda - disse a Loba a Nanni, que dormia no valado junto
da cerca poeirenta, com a cabeça entre os braços. - Acorda, eu te trouxe vinho
para refrescar a garganta.
Nanni abriu os olhos atordoados, entre adormecido e
desperto, e viu-a erecta, pálida, prepotente, olhos negros como o carvão, e
tocou-lhe as mãos.
- Não! mulher direita não passeia entre véspera e nona! -
disse Nanni, escondendo o rosto entre as ervas secas da valada. - Vai, vai! não
volte mais à eira!
E a Loba se foi, de fato, reatando as formosas tranças, de
olhar fixo ante seus passos nos cálidos restolhos, com os negros como carvão.
Voltou, porém, muitas vezes à eira, e Nanni não lhe disse
nada. E até quando tardava a chegar, na hora, entre véspera e nona, ia esperá-la
no alto da senda branca e deserta, com o suor na fronte, e depois levava as
mãos à cabeça repetindo-lhe sempre:
- Vai, vai, e não volte mais à eira!
Marica chorava dia e noite, e plantava-se ante sua mãe, os
olhos ardentes de ciúmes e lágrimas, como uma lobinha, ela também, sempre que a
via voltar do campo, pálida e muda.
- Desalmada! - lhe dizia. - Mãe desalmada!
- Cala-te!
- Ladra, ladra!
- Cala-te!
- Vou contar ao brigadeiro!
- Vai!
E foi mesmo, com seus filhos nos braços, sem medo, sem
verter uma lágrima, como uma louca, porque agora também ela queria aquele
marido que lhe tinham dado à força, besuntado e sujo das azeitonas postas a
fermentar.
O brigadeiro mandou chamar Nanni; ameaçou-o até com a prisão
e a forca. Nanni desatou a chorar e a puxar os cabelos. Nada negou! Não tentou
desculpar-se! - É a tentação - dizia - é a tentação do inferno! - E se se jogou
aos pés do brigadeiro, suplicando-lhe que o metesse na cadeia:
- Por caridade, senhor brigadeiro, tire-me deste inferno!
Que me matem! Que me encarcerem; contanto que não a veja mais, nunca mais!
- Não! - argumentou a Loba ao brigadeiro. - Eu reservei para
mim um canto da cozinha para dormir, quando lhes dei minha casa como dote. A
casa é minha; não quero sair!
Pouco depois, Nanni levou um coice de mula, e estava para
morrer; mas o pároco recusou-se lhe levar o Senhor se a Loba não saísse da
casa. A Loba saiu, e seu genro pôde então se preparar para morrer como bom
cristão, e confessou-se e comungou com tais mostras de arrependimento e de
contrição, que todos os vizinhos e curiosos choravam junto ao leito do
moribundo. Melhor lhe teria sido morrer naquele dia, antes que o diabo voltasse
a tentá-lo e a meter-se-lhe na alma e no corpo se restabeleceu.
- Me deixa! - dizia à Loba. - Por caridade, me deixa em paz!
Vi a morte com estes dois olhos! A pobre Marica está desesperada. Todo o
povoado já sabe! Quando não te vejo é melhor para ti e para mim...
Teria desejado arrancar os olhos para não ver os da Loba,
que quando se cravavam nos seus lhe faziam perder a alma e o corpo. Não sabia o
que fazer para livrar-se do feitiço. Pagou missas às almas do Purgatório; pediu
ajuda ao pároco e ao brigadeiro. Pela Páscoa se confessou e arrastou-se em
público, lambendo, em penitência, seis palmos de ladrilhos do adro da igreja.
Mas depois, como Loba voltasse a tentá-lo:
- Escuta! - disse-lhe - não volte mais à eira, porque se
voltar para me tentar, te mato; tão certo como há Deus.
- Me mata, - respondeu a Loba, eu não me importo; mas não
vou ficar sem você.
Quando a viu ao longe, em meio das verdes sementeiras,
deixou de cavar as vinhas e foi arrancar o machado do olmo. A Loba viu-o
aproximar-se, pálido, com olhos arregalados, de machado brilhando ao sol, e não
recuou um só passo; não baixou os olhos, continuou andando ao seu encontro, com
as mãos cheias de papoilas vermelhas, devorando-o com seus olhos negros.
- Ah, maldita seja tua alma! - balbuciou Nanni.
Giovanni Verga
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