terça-feira, 27 de janeiro de 2015

OUTROS CONTOS

«A Loba», por Giovanni Verga.
«A Loba»
Conto de Giovanni Verga

400- «A LOBA»

Era alta, magra; mas tinha um seio firme e vigoroso, de morena - embora já não fosse criança - pálida como se tivesse sempre a malária, e naquela palidez, uns olhos grandes e uns lábios frescos e rubros que fascinavam.

No povoado chamavam-lhe "A Loba" porque nunca se saciava. As mulheres persignavam-se ao vê-la passar sozinha como uma cadela, com aquele andar errante e desconfiado de loba faminta; roubava filhos e maridos num abrir e fechar de olhos, com seus lábios rosados, e levava-os colados aos seus vestidos, com aquele olhar de Satanás, ainda que estivessem ante o altar de Santa Agripina. Por sorte, a Loba não ia nunca à igreja, nem pela Páscoa nem pelo Natal, nem para ouvir missa, nem para se confessar. O padre Ângelo de Santa Maria de Jesus, um verdadeiro servo de Deus, tinha perdido a alma por ela.

A pobre Marica, menina boa e desembaraçada, chorava às escondidas, porque, filha da Loba, ninguém a queria por mulher, apesar de ter seu enxoval na cómoda e seu pedaço de chão como qualquer outra moça do povoado.

Um belo dia, a Loba enamorou-se de um belo rapaz que tinha voltado do serviço militar e que ceifava feno com ela nos campos do notário; mais do que se diz enamorar-se, sentia que lhe ardiam as carnes sob o fustão do corpete, e provar, ao fitá-lo nos olhos a sede das cálidas tardes de junho, em meio da planície. Porém ele continuava ceifar tranquilamente, atento aos feixes, e dizia-lhe: - O que há, dona Pina?

Nos campos imensos, onde só se ouvia o estridular do voo dos grilos, quando caía o sol a prumo, a Loba ceifava gavela após gavela e feixe atrás de feixe, sem se cansar jamais, sem erguer nem um momento o corpo, sem aproximar os lábios do garrafão, com o intuito de estar sempre nos calcanhares de Nanni, que ceifava e ceifava, e lhe perguntava de quando em quando: - O que quer, dona Pina?

Uma noite lhe disse, enquanto os homens dormitavam na eira, cansados, e vagavam os cães pelo campo vasto e negro: - Quero você, que é bonito como um sol e doce como o mel! Quero a ti!

- E eu quero a tua filha, que é mocinha - respondeu Nanni rindo.

A Loba levou as mãos à cabeça, coçou as fontes sem dizer palavra e, e se foi, sem voltar mais na eira. Mas em outubro tornou a ver Nanni, quando se extraía azeite, pois trabalhava perto de sua casa e o ranger da prensa não a deixava dormir a noite inteira.

- Apanha o saco das azeitonas - disse à filha - e vem comigo.

Nanni empurrava com a vara as azeitonas para debaixo da mó, e gritava "upa!" à mula para que não parasse.

- Gosta de minha filha Marica? - perguntou-lhe dona Pina.

- Que a senhora dá para a sua filha Marica? - perguntou Nanni.

- Tem tudo o que era do pai, e, além disso, lhe dou minha casa; a mim me basta que me dê um canto na cozinha onde possa estender um colchão.

- Se é assim, falaremos para o Natal - disse Nanni.

Nanni estava todo besuntado e sujo do azeite e das azeitonas postas a fermentar, e Marica não gostava dele de jeito algum; porém sua mãe agarrou-a pelos cabelos, diante da casa, e lhe disse, apertando os dentes:

- Se você não o pega, te mato!

A Loba parecia doente, e o povo dizia que o diabo quando fica velho se faz ermitão. Já não vivia de lá para cá; já não se punha a soleira com aqueles olhos de endemoninhada. O genro, quando ela lhe olhava com aqueles olhos, desandava a rir, e tirava o escapulário da Virgem para se benzer. Marica ficava em casa amamentando seus filhos, e sua mãe andava pelos campos trabalhando com os homens, como um homem também, lavrando, capinando, conduzindo o gado, podando as videiras, quer soprasse o gregal, o levante de janeiro ou o siroco de agosto, quando mulas abaixavam a cabeça e os homens dormiam de bruços ao abrigo do muro, do norte. "Nessa hora, entre véspera e nona, em que não passeia mulher direita", dona Pina era o único ser vivente a quem se via errar pela campina, sobre os seixos abrasados dos caminhos, entre os secos restolhos dos imensos campos, que se perdiam no cálido ambiente, longe, muito longe, para o Etna nevoento, onde o céu pendia, pesado, sobre o horizonte.

- Acorda - disse a Loba a Nanni, que dormia no valado junto da cerca poeirenta, com a cabeça entre os braços. - Acorda, eu te trouxe vinho para refrescar a garganta.

Nanni abriu os olhos atordoados, entre adormecido e desperto, e viu-a erecta, pálida, prepotente, olhos negros como o carvão, e tocou-lhe as mãos.

- Não! mulher direita não passeia entre véspera e nona! - disse Nanni, escondendo o rosto entre as ervas secas da valada. - Vai, vai! não volte mais à eira!

E a Loba se foi, de fato, reatando as formosas tranças, de olhar fixo ante seus passos nos cálidos restolhos, com os negros como carvão.

Voltou, porém, muitas vezes à eira, e Nanni não lhe disse nada. E até quando tardava a chegar, na hora, entre véspera e nona, ia esperá-la no alto da senda branca e deserta, com o suor na fronte, e depois levava as mãos à cabeça repetindo-lhe sempre:

- Vai, vai, e não volte mais à eira!

Marica chorava dia e noite, e plantava-se ante sua mãe, os olhos ardentes de ciúmes e lágrimas, como uma lobinha, ela também, sempre que a via voltar do campo, pálida e muda.

- Desalmada! - lhe dizia. - Mãe desalmada!

- Cala-te!

- Ladra, ladra!

- Cala-te!

- Vou contar ao brigadeiro!

- Vai!

E foi mesmo, com seus filhos nos braços, sem medo, sem verter uma lágrima, como uma louca, porque agora também ela queria aquele marido que lhe tinham dado à força, besuntado e sujo das azeitonas postas a fermentar.

O brigadeiro mandou chamar Nanni; ameaçou-o até com a prisão e a forca. Nanni desatou a chorar e a puxar os cabelos. Nada negou! Não tentou desculpar-se! - É a tentação - dizia - é a tentação do inferno! - E se se jogou aos pés do brigadeiro, suplicando-lhe que o metesse na cadeia:

- Por caridade, senhor brigadeiro, tire-me deste inferno! Que me matem! Que me encarcerem; contanto que não a veja mais, nunca mais!

- Não! - argumentou a Loba ao brigadeiro. - Eu reservei para mim um canto da cozinha para dormir, quando lhes dei minha casa como dote. A casa é minha; não quero sair!

Pouco depois, Nanni levou um coice de mula, e estava para morrer; mas o pároco recusou-se lhe levar o Senhor se a Loba não saísse da casa. A Loba saiu, e seu genro pôde então se preparar para morrer como bom cristão, e confessou-se e comungou com tais mostras de arrependimento e de contrição, que todos os vizinhos e curiosos choravam junto ao leito do moribundo. Melhor lhe teria sido morrer naquele dia, antes que o diabo voltasse a tentá-lo e a meter-se-lhe na alma e no corpo se restabeleceu.

- Me deixa! - dizia à Loba. - Por caridade, me deixa em paz! Vi a morte com estes dois olhos! A pobre Marica está desesperada. Todo o povoado já sabe! Quando não te vejo é melhor para ti e para mim...

Teria desejado arrancar os olhos para não ver os da Loba, que quando se cravavam nos seus lhe faziam perder a alma e o corpo. Não sabia o que fazer para livrar-se do feitiço. Pagou missas às almas do Purgatório; pediu ajuda ao pároco e ao brigadeiro. Pela Páscoa se confessou e arrastou-se em público, lambendo, em penitência, seis palmos de ladrilhos do adro da igreja. Mas depois, como Loba voltasse a tentá-lo:

- Escuta! - disse-lhe - não volte mais à eira, porque se voltar para me tentar, te mato; tão certo como há Deus.

- Me mata, - respondeu a Loba, eu não me importo; mas não vou ficar sem você.

Quando a viu ao longe, em meio das verdes sementeiras, deixou de cavar as vinhas e foi arrancar o machado do olmo. A Loba viu-o aproximar-se, pálido, com olhos arregalados, de machado brilhando ao sol, e não recuou um só passo; não baixou os olhos, continuou andando ao seu encontro, com as mãos cheias de papoilas vermelhas, devorando-o com seus olhos negros. 

- Ah, maldita seja tua alma! - balbuciou Nanni.

Giovanni Verga

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