«A Espada Japonesa»
Conto de Mário de Andrade
397- «A ESPADA JAPONESA»
O frade Góis, o mais antigo manuseador de manuscritos
do convento, um dia recebeu uma espada japonesa, afiada e comprida. Foi o
último samurai do Japão que lha enviou do leito da morte, lembrado de um
encontro aprazível com o frade, quando ele missionava por lá. Era a única coisa
valiosa que o samurai possuía, e ao frade a deixou.
Ao retirar o legado da sua grande caixa de cartão prensado,
coberta de estranhos caracteres, perante os olhares curiosos e intrigados da
confraria, o frade ficou perplexo. Que fazer com aquela espada? Se ao menos
fosse espada cristã antiga, de punho em cruz, poderia ser pregada numa parede,
simbolizar o grande sacrifício, rezar homem a ela; mas assim, espada pagã,
lisa, funcional de matar só, que fazer com ela?
Opinaram frades velhos que o objecto passasse a fazer parte
do museu do convento. Mas o museu do convento ainda não existia. Era uma
arrecadação escura, num vão de escada, em que desde há muito se arrumava numa
prateleira uma velha lucerna romana, que ninguém sabia ao certo se era romana
ou imitação de feira.
Ficou decidido que a espada seria o segundo objeto do museu
mas, enquanto este não estivesse constituído e exposto, deveria o frade
destinatário ser considerado seu depositário fiel.
Nenhum remédio teve o frade senão convir e lá levou a espada
para a cela, onde foi colocada por cima da parca estante de livros sacros que
possuía.
Mas o aço refulgia. Com o encadeamento mal pôde o
frade engrolar as suas orações e variadas vezes teve que retificar enganos
cometidos.
Sentado à sua mesa de trabalho, a espada evocava-lhe gritos
ferozes, soltares de sangue, baques de corpos, retinires de armas, num alarido
bélico que lhe cortava a concentração e desviava o pensamento dos textos
sacros.
E nem as imagens de cavalgadas e confrontos se lhe
desvaneceram quando tentou pregar olho na sua humilde enxerga.
O frade atribui toda aquela excitação noturna à presença
perto da espada e, levantando-se de rompante, foi escondê-la entre montes de
pergaminhos por decifrar que se acumulavam a um canto da cela.
Nem assim conseguiu adormecer.
Daquelas bandas vinha-lhe um rumor de restolhada, um
zunir de fender ares que o sobressaltava ao tentar dormir. De maneira que
passou o resto da noite a deambular de um lado para o outro, de canto em canto
da cela, escondendo a espada em todos os escaninhos sem resultado, porque ela
vinha-lhe sempre ao pensamento, tesa, cortante, zunidora, homicida…
Durante todo o dia seguinte, o frade arrastou-se pelos
claustros, sonolento, sorumbático, soturno, de cabeça baixa de sono, corpo
estremecido pelo pensamento de impactes lacerantes.
Os outros frades passavam por ele e diziam-lhe:
─ Homem, credo, que tem? Faça-lhe jejuns que
passa, faça-lhe jejuns…
E ele fez jejuns, completou com cilícios apertados, cavou
forte na horta, sob a vigilância severa do frade hortelão, mas parecia que
quanto mais debilitava o corpo, tanto mais as imagens e sons de guerra se lhe
tornavam nítidos, vivazes, e sentia, no fundo do peito, romper um brado bélico,
as mão enclavinharem-se, os ombros quase doerem de não sarilharem em rodas de
cortar ares e cabeças e corpos.
As noites que se seguiram foram de diálogo tenso entre
o frade e a espada. Tinha-a removido do seu invólucro de papéis velhos e
colocado respeitosamente sobre a manta da enxerga. Observava-lhe o brilho, a
luminescência que quase iluminava o quarto, tocava-a com a ponta do dedo,
sentia-lhe os vibrantes subtis, as exigências ocultas. Não tardou a notar que,
em voltas e círculos irregulares e caprichosos, um vermelho reluzia por sobre o
gume, quase lançando chispas fulvas sobre o leito. Na noite em que o notou, o
padre horrorizou-se e benzeu-se vezes e vezes. Depois, começou a apreciar o
halo, a tocá-lo com a ponta dos dedos, a brandir a espada com ambas as mãos,
vendo reluzir no escuro as formas arabescas fugazmente desenhadas pelo brilho
vermelho a faiscar.
Um dia, o hortelão veio queixar-se de que todas as
couves tinham sido cerce cortadas pelo talo, e exibia molhos de verduras
mutiladas. Na manhã seguinte, os frades acordaram tarde porque o sino não
tocou. O sineiro, um frade quase anão, mostrava a altos gritos a corda do sino
cortada. No ofício do dia seguinte, todos os círios e velas estavam talhados em
dois, as chamas deixavam nódoas gordurosas no soalho do lajedo.
─ Alto, que temos o Demónio entre nós! ─ disse
o abade, e ordenou que se fizessem procissões pelos claustros, com muitas rezas
e queimares de incenso. Enxames de frades exorcizaram competentemente todos os
recantos do convento.
Nessa noite, todas as aves de capoeira tiveram o pescoço
cortado.
Os padres montaram vigilância ao diabo, munidos de
água benta e das eficazes orações aprendidas. À cautela, dois deles tiveram à
mão grossos cacetes de marmeleiro, para o que viesse.
Mas nada veio e as coisas aquietaram-se. O convento
voltou à normalidade, o sino foi consertado, a capoeira reposta, a horta
amanhada, e toda a gente pensou que as procissões tinham tido resultados,
embora diferidos. Sossegou o convento e todos os frades passaram a dormir em
paz.
Certa madrugada, o sino voltou a não tocar. Horas
altas, ninguém bulia no convento.
Todos os frades, exceto um, jaziam nos catres, degolados,
num mar de sangue.
Nessa noite, nos arredores de Tóquio, apareceu,
cavalgando, um samurai, de armadura feroz, volteando a espada aos gritos. Ninguém
soube de onde veio.
Eram, no entanto, as feições, tivesse alguém sido atento, do
velho frade Góis, o estudioso de manuscritos.
Mário de Carvalho
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