«O Bode Imarcescível»
Ilustração de Álvaro Dias
420- «O BODE IMARCESCÍVEL»
Julião amava os animais. Tinha um gato siamês teólogo e
desdenhoso, dois perdigueiros de olhos tristes e um basset activo e escavador.
Também uma gaiola com três periquitos protestantes e tivera um papagaio de que
se vira obrigado a separar-se, dadas as constantes críticas e comentários do
mesmo acerca da situação vigente.
Mas o que realmente o encantava era o bode. Trouxera-o para casa ao voltar de
umas férias na montanha. O bode acompanhara-o sem fazer questão e isso comovera
Julião. Era um bode jovem mas já com barba digna, que ficava a olhar para tudo
com desdém, como prevendo inúmeras desgraças. Afeiçoaram-se um ao outro. Julião
esmerava-se no tratamento e o bode, compreendendo que estava numa casa de
respeito, passara a marrar apenas em polícias e cobradores. Mas comia, comia
muito, comia tudo.
Antes de ir para a repartição Julião cuidava carinhosamente dos animais. Os
cães no quintal, o gato livre de tomar decisões as mais ousadas, os periquitos
com milho painço, pevides e cânhamo. Quanto ao bode, deixava-o em casa, com
couves abundantes na cozinha, não sem antes o passear pelas traseiras e ter uma
conversa séria com ele.
Um dia aconteceu o inesperado. Ao voltar a casa, à tarde, Julião encontrou o
bode no escritório, sentado e a comer, voraz, a edição monumental de OS LUSÍADAS encadernada em couro azul-escuro e com ilustrações de Lima de Freitas.
Só restava a capa, que era dura, e um pouco do canto nono. Ficou amargurado.
Que fazer? Como resolver aquilo? O bode podia voltar a ter
apetências, lá se ia o Fernando Namora, o Eça, o Aquilino, sabe-se lá que mais!
Não podia ser. E a solução surgiu-lhe. Levar o bode com ele para a repartição.
No dia seguinte, após as tarefas matinais, disse ao bode:
- Vamos lá, meu velho.
Saíram. O bode comportou-se, sempre ao lado de Julião, olhando as montras.
Apenas tentou investir com um polícia mas conteve-se, entre a simpatia dos
passantes.
Na repartição foi um alvoroço. «Olha um bode, olha um bode!» O espanto era
geral mas o bode, indiferente, sentou-se ao lado de Julião.
E assim passaram os dias.
O bode ia de manhã para a repartição, almoçava na cantina com o Julião, passava
a tarde sentado, observando a actividade múltipla da casa e indo lá dentro de
vez em quando, e voltava à tarde ao lado de Julião, vendo as montras e mirando
os polícias de través.
O diabo foi que um dia o bode teve um apetite feroz, como na altura de OS
LUSÍADAS. Foi à secretária do chefe e comeu todos os processos em andamento que
faziam a cabeça em água aos funcionários. Não deixou senão os agrafos e as
molas das pastas de arquivo.
O chefe agarrou-se à cabeça e mandou chamar o Julião.
- Que é isto? - disse, de sobrolho franzido, quando Julião entrou.
- Isto o quê, senhor doutor?
- Isto - o chefe apontava para as sobras.
Julião observou bem e respondeu, humilde:
- Parecem restos de agrafos, não parecem, senhor doutor?
- Foi o seu bode, senhor Julião. O seu bode. Não pode ser, isto é impossível -
e gesticulava, apopléctico.
Aí o Julião não achou bem.
- Desculpe, senhor doutor, mas não tenho nada com isso. Não intervenho, nunca
intervim, na vida de bode nenhum nem de qualquer outra pessoa. O bode é livre,
fale com ele.
E, pela primeira vez na sua vida de funcionário, virou as costas ao chefe e
saíu, ofendido.
O chefe aveio-se com o bode. Parece que se entenderam.
O Julião não foi incomodado e o bode passou a andar de um lado para o outro,
pelas salas e gabinetes.
O bode comia os processos, os processos ficavam arrumados. Os funcionários
estavam encantados, escolhiam os melhores, os mais grossos e chamavam o bode.
Os tempos passaram.
Os chefes sucederam-se, os ministérios mudaram. O bode continuava na
repartição, sempre jovem e activo.
Julião, já com o cabelo todo branco, reformara-se. O velho gato siamês fora
juntar-se aos seus antepassados em Bubastis, os cães eram memória melancólica e
a gaiola dos periquitos gritadores estava vazia. Apenas o bode continuava
presente com amizade e ia todos os dias para a repartição. Estava no quadro.
Foi então que se deu o acontecimento decisivo.
Poderoso, imarcescível, o bode entrou pelo gabinete do ministro e comeu, logo
ali, o decreto de mobilização geral que estava a despacho.
Foi eleito deputado pelo povo em delírio.
Mário-Henrique Leiria
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