terça-feira, 11 de agosto de 2015

OUTROS CONTOS

«O Canto da Cigarra», por Francisco José Viegas.

«O Canto da Cigarra»
Francisco José Viegas

587- «O CANTO DA CIGARRA

[Excerto]

O canto da cigarra já não entristece os mortos. Se o ouvisses poderias ficar louco. Ouvi-lo na sua pujança infinita e religiosa intermitentemente, nas tardes terríveis em que o calor funde o ar - é a possibilidade de enlouquecer eternamente. Esse canto que se estende desde o infinito até ti é mais profundo que a verdade, nada mais para lá dele.

Elas cantarão milhares de vezes, far-se-ão ouvir de um lado ao outro do mundo e então serão terríveis as consequências, milhares de vezes anunciarão o futuro e o passado, os regatos profundos virão à superfície e tu enlouquecerás. Ouve o seu canto. Não o ouças. Esquece e não o ouças. 

(...) é tremendo o canto da cigarra, espalha-se por todos os sítios, vem de aldeia para aldeia, cantai bichos invisíveis e terríveis, cantai até que a noite invada o mundo, cantai, pois, e espalhai-vos até aos confins do universo, cantai, invadi as sombras e tornai-as fogo, com o vosso canto tremem os céus, cantai até ao fim da vida, esse canto toca o interior das estrelas, o interior do mundo, o interior do rio.

Cantai ainda terrivelmente desde o invisível de tudo, quebrai o silêncio do mundo, o rumor das searas e tornai impossível o horizonte para lá do vosso canto, cantai, cantai na luz e da luz fazei treva imensa, mais poderosa que a escuridão, cantai, pois, de um lado ao outro do mundo é imenso o silêncio que tendes a quebrar, cantai até ser tarde para o silêncio.

Francisco José Viegas

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