«O Canto da Cigarra»
Francisco José Viegas
587- «O CANTO DA CIGARRA
[Excerto]
O canto da cigarra já não entristece os mortos. Se o
ouvisses poderias ficar louco. Ouvi-lo na sua pujança infinita e religiosa
intermitentemente, nas tardes terríveis em que o calor funde o ar - é a possibilidade
de enlouquecer eternamente. Esse canto que se estende desde o infinito até ti é
mais profundo que a verdade, nada mais para lá dele.
Elas cantarão milhares de vezes, far-se-ão ouvir de um lado ao outro do mundo e
então serão terríveis as consequências, milhares de vezes anunciarão o futuro e
o passado, os regatos profundos virão à superfície e tu enlouquecerás. Ouve o
seu canto. Não o ouças. Esquece e não o ouças.
(...) é tremendo o canto da cigarra, espalha-se por todos os
sítios, vem de aldeia para aldeia, cantai bichos invisíveis e terríveis, cantai
até que a noite invada o mundo, cantai, pois, e espalhai-vos até aos confins do
universo, cantai, invadi as sombras e tornai-as fogo, com o vosso canto tremem
os céus, cantai até ao fim da vida, esse canto toca o interior das estrelas, o
interior do mundo, o interior do rio.
Cantai ainda terrivelmente desde o invisível de tudo,
quebrai o silêncio do mundo, o rumor das searas e tornai impossível o horizonte
para lá do vosso canto, cantai, cantai na luz e da luz fazei treva imensa, mais
poderosa que a escuridão, cantai, pois, de um lado ao outro do mundo é imenso o
silêncio que tendes a quebrar, cantai até ser tarde para o silêncio.
Francisco José Viegas
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