«O Citadino Pipote»
Auto-Retrato/ Laurence
Stephen Lowry
596- «O CITADINO PIPOTE»
Ainda bem que Pipote não é judoca. Pipote não passa de
Suspensório Lilás.
Pipote judoca seria o fim.
Pipote entra nos eléctricos a
ombro. Diz com licença depois de ter passado. Cheira a cebola e a camisa de
anteontem. Fala curto. Assim tem mais tempo para chupar os dentes. Pipote usa
elástico de câmara-de-ar a envolver a carteira. Traz negócios de ferro-velho,
traz os filhos nos estudos, traz uma viúva debaixo de olho. Agora que os móveis
(quinanes, principalmente) estão a dar, Pipote vai comprar fragoneta. Já o vejo
agarrado ao volante com medo que a fragoneta desalvore. Já o topo a fazer
mudanças no joelho da viúva.
Contam-se muitas do Pipote. Parvenu, parvo nu, Piparote não
é pior nem melhor, escusam de se estar a rir, que vocês. Piparote começou
difícil. Vocês tiveram colégio, manteiguinha no pão, Bucha & Estica nas
matinés de quinta-feira. Piparote teve cachações e casqueiro ao mata-bicho.
Veio a pulso, Piparote — e com muita honra!
Das que se contam de Piparote, não sei ainda se conte a que
me apetece contar. É que não é nada típica, sabem? Remonta aos 14 anos de
Piparote, quando Piparote, quer dizer, ainda não era Piparote. Era o cédula
Joaquim Serrano Deusdado — Quincarvoeiro para os inimigos.
Não me faço mais rogado.
De como Joaquim Serrano Deusdado, aliás, Quincarvoeiro,
Aliás Pipote, deixou apodrecer os dentes todos menos um.
Às 6 horas da manhã, chutaram Quimcarvoeiro para a consulta
externa de Todos-os-Martírios. Questão dum obcesso bochechado a aguardente e a
raiz de alteia com desinflamação subsequente e recidivas de ganir. Bochecha
infla, bochecha desinfla, a cara do pobre já era como um cartucho e o misérias
estava por tudo.
A quatro de frente, de cara amarrada, a bicha para os
serviços de Odontologia consumia-se e refazia-se ao longo das horas e dum
corredor conventual. Quando chegou à porta da sala dos alicates, Quincarvoeiro
compreendeu, num ápice, a utilidade das bichas: terem cauda. Um menino que saía
da sala segurava os queixos com a manita, vexado de todo, e dava pontapés de
desespero na estúpida mãe caridosa.
Uma cigana (sedentária) apiedou-se do chavalito probecito e
começou a desenrolar uma lamúria meio rezada entrecortada de cuspinhadelas
raivosas para o lado. Um digno velho remendado e limpo reprovava mudamente
tudo, não escondendo, na sua sobranceria, que só o mau destino fora responsável
por ele se encontrar ali, misturado com a gentalha.
“Trezentos e quinze!”, disse uma voz entreportas que parecia
mesmo a voz do creosote. Era a senha do Quincarvoeiro. Este deu um passo ao
lado e uma grande coragem de fugir pôs-lhe as pernas em movimento. Pisgou-se
para a cauda da bicha, a tomar tempo e balanço.
Ainda hoje o citadino Pipote fala com um dentinho de orgulho
desse caso da sua vida de rapazelho. Aliás, é sempre com orgulho que Pipote se
revê em Quincarvoeiro, seu querido filho na perspectiva do tempo. Espero que a
vossa credulidade chegue onde chegou a minha, quando ouvi esta história do
infeliz Pipote: três ou quatro vezes se atrasou para a cauda da bicha, a tomar
tempo e balanço. Ao meio-dia, na derradeira repescagem de senhas não
respondidas, a bicha era Quincarvoeiro. Até que um dentista, alicate em punho,
se avantajou nos umbrais.
Foi apanhado.
Já na cadeira, já de boca ocupada pelos ferros, dedos,
espelhinhos, o cédula Joaquim Serrano Deusdado tentou articular uma queixa,
soprar uma indicação, subtrair-se o mais que podia à mordedura metálica dos
alicates, que andavam, por ali, a planar de mão em mão. Os odontologistas
trabalhavam rápida, firme, irrevogavelmente. Se os deixassem entregues à sua
própria inércia, desdentariam o mundo real o apanhassem a bocejar de tédio.
Três dores agudas, fininhas. Uma patada no estribo da cadeira. Um compasso de
espera com ferros a retinir, torneiras a trepidar, desconhecidos cheiros
violentos a subirem-lhe ao nariz. Depois, um ríspido «abre mais a boca»!. Abriu
mais a boca. Não abriu os olhos. O alicate veio, entrou. Sentiu o choque no
alto da cabeça, por dentro. O alicate mordeu. Queriam virar-lhe a caixa dos
pirolitos do avesso?
Descomandou-se. Gritou… Mas já, triunfante, o diabo-dentista
lhe mostrava o dente, que o alicate continuava a morder.
E Pipote, hoje, comenta, num sorriso de aqueduto em ruínas:
— Sôr Aníbal (eu já lhe disse que não era Aníbal, que era
O’Neill…), Sôr Anibal, a vida é assim: o dente que me tiraram estava bom; o
estragado cá ficou. Já passaram para cima de trinta anos e nunca mais voltei a
esses diabos! Cá me vou governando com os dentes que tenho. Mas digo-lhe a
verdade: o dente que me tiraram foi o único dente bom que tive.
E o aqueduto sorri, enquanto Pipote o vai chupando
paulatinamente.
Alexandre
O’ Neill
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