«O Coração das Trevas»
Romance de Joseph Conrad
580- «O CORAÇÃO DAS TREVAS»
[Excerto]
« Deviam tê-lo ouvido falar ‘Meu marfim’. Eu ouvi. ‘Minha
Prometida, meu marfim, meu posto, meu rio, meu…’, tudo lhe pertencia. Fez com
que prendesse minha respiração na expectativa de ouvir a floresta rebentar numa
prodigiosa explosão de riso, que deslocaria do lugar as estrelas do céu. Tudo
lhe pertencia, mas isso não importava. A questão era saber a quem ele
pertencia, quantos poderes das trevas reclamavam-lhe a posse. Essa era a
reflexão que provocava arrepios de horror. Era impossível — de nada adiantava,
também — tentar imaginar. Ele havia galgado uma alta posição entre os demónios
da Terra — literalmente, quero dizer. Vocês não podem compreender. Como
poderiam?
Tendo o chão firme sob os pés, cercados do apoio ou da crítica de
vizinhos gentis, andando delicadamente entre o açougueiro e o policial, no
santo terror de escândalos, prisões e hospícios, como poderiam vocês imaginar a
que particular região de primitivas eras os pés desimpedidos de um homem seriam
capazes de conduzi-lo, por força da solidão — uma solidão absoluta, sem nenhum
policial — ao caminho do silêncio — um silêncio absoluto, onde nenhuma voz de
advertência de um vizinho amável pode ser ouvida sussurrando à opinião pública?
São essas pequenas coisas que fazem a grande diferença. Quando elas
desaparecem, você tem de recorrer à sua força inata, à sua capacidade de ser
fiel a si próprio. É claro que você pode ser tolo o bastante para cometer erros
— estúpido demais até para perceber que está sendo assaltado pelos poderes das
trevas. Suponho que nenhum tolo chegou a barganhar sua alma com o diabo; ou o
tolo é tolo demais, ou o diabo demasiadamente diabólico — não sei qual é o
caso. Ou pode ser que você seja uma criatura tão fantasticamente superior a
ponto de ficar surda e cega a tudo que não diga respeito a visões e sons
celestiais. A Terra passa, então, a ser apenas um lugar de espera — e, se você
perde ou ganha assim, não sei dizer. No entanto, a maioria de nós não é uma
coisa nem outra. A Terra para nós é um lugar para viver, onde temos de lidar
com visões, sons… e odores, também, por Deus! — respirar carne podre de
hipopótamo, por assim dizer, e não ser contaminado. E aí, não percebem? Nossa
força aparece, a fé em nossa capacidade de cavar buracos discretos para
enterrar a coisa — nosso poder de devoção, não a si próprio, mas a um obscuro e
extenuante trabalho. E isso é bastante difícil. Vejam, não estou tentando
desculpar-me ou mesmo explicar… Estou tentando compreender mais claramente quem
era… o Sr. Kurtz… o espectro do Sr. Kurtz. Aquele iniciado fantasma proveniente
do fundo de lugar nenhum honrou-me com sua surpreendente confidência antes de
desaparecer completamente.
Foi porque podia falar inglês comigo. O Kurtz
original fora em parte educado na Inglaterra, e — como ele próprio teve a bondade
de dizer-me — suas simpatias inclinavam-se para o lugar certo. A mãe era meio
inglesa, o pai meio francês. A Europa inteira contribuíra para a fabricação de
Kurtz; e, pouco a pouco, aprendi que, muito apropriadamente, a Sociedade
Internacional para a Supressão dos Costumes Bárbaros o incumbira da elaboração
de um relatório, que lhe serviria de guia no futuro. E ele de fato o escreveu.
Eu o vi. Eu o li. Era eloquente, vibrava de eloquência, mas passional demais,
eu acho. Dezassete páginas de escrita miúda, que ele encontrara tempo para
realizar! Porém, isso deve ter sido antes de — vamos dizer — ficar mal dos
nervos, fazendo com que presidisse certas danças à meia-noite que terminavam
com indescritíveis ritos, os quais — tanto quanto relutantemente concluí do que
ouvira diversas vezes — eram oferecidos a ele — compreendem? — ao próprio Sr.
Kurtz. Mas era um belo texto. O parágrafo de abertura, no entanto, à luz de
informação posterior, parece-me agora sinistro. Começa com o argumento de que
nós, brancos, em razão do nível de desenvolvimento a que chegamos, ‘devemos
necessariamente aparecer a eles (selvagens) como seres de natureza sobrenatural
— aproximando-nos deles com a força de uma divindade’, e assim por diante.
‘Pelo simples exercício de nossa vontade, podemos exercer para sempre um poder
praticamente ilimitado’ etc. etc. A partir desse ponto, elevava-se a grande
altura, levando-me junto. O discurso era magnífico, embora difícil de lembrar,
compreendem. Passava a ideia de uma exótica Imensidão governada por uma augusta
Benevolência. Fazia-me vibrar de entusiasmo. Era o ilimitado poder da eloquência…
da palavra… de palavras nobres, inflamadas. Não havia alusões práticas para
interromper o encadeamento mágico das frases, a não ser uma espécie de nota ao
pé da última página, evidentemente rabiscada muito depois, numa caligrafia
irregular, podendo ser considerada como uma exposição do método. Era muito
simples, e, no final daquele apelo comovente a todo sentimento altruísta,
brilhava, luminoso e aterrorizante, como o clarão de um raio em céu sereno:
‘Exterminem todos os bárbaros!’.»
Joseph Conrad
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