«O Conto do Vigário»
Conto de Fernando Pessoa
638- «O CONTO DO VIGÁRIO»
Vivia há já não poucos anos, algures, num concelho do
Ribatejo, um pequeno lavrador, e negociante de gado, chamado Manuel Peres
Vigário.
Da sua qualidade, como diriam os psicólogos práticos, falará o bastante a
circunstância que dá princípio a esta narrativa. Chegou uma vez ao pé dele
certo fabricante ilegal de notas falsas, e disse-lhe: «Sr. Vigário, tenho aqui
umas notazinhas de cem mil réis que me falta passar. O senhor quer? Largo-lhas
por vinte mil réis cada uma.» «Deixa ver», disse o Vigário; e depois, reparando
logo que eram imperfeitíssimas, rejeitou-as: «Para que quero eu isso?», disse;
«isso nem a cegos se passa.» O outro, porém, insistiu; Vigário cedeu um pouco
regateando; por fim fez-se negócio de vinte notas, a dez mil réis cada uma.
Sucedeu que dali a dias tinha o Vigário que pagar a uns irmãos negociantes de
gado como ele a diferença de uma conta, no valor certo de um conto de réis. No
primeiro dia da feira, em a qual se deveria efectuar o pagamento, estavam os
dois irmãos jantando numa taberna escura da localidade, quando surgiu pela
porta, cambaleando de bêbado, o Manuel Peres Vigário. Sentou-se à mesa deles, e
pediu vinho. Daí a um tempo, depois de vária conversa, pouco inteligível da sua
parte, lembrou que tinha que pagar-lhes. E, puxando da carteira, perguntou se,
se importavam de receber tudo em notas de cinquenta mil réis. Eles disseram que
não, e, como a carteira nesse momento se entreabrisse, o mais vigilante dos
dois chamou, com um olhar rápido, a atenção do irmão para as notas, que se via
que eram de cem.
Houve então a troca de outro olhar.
O Manuel Peres, com lentidão, contou tremulamente vinte notas, que entregou. Um
dos irmãos guardou-as logo, tendo-as visto contar, nem se perdeu em olhar mais
para elas. O vigário continuou a conversa, e, várias vezes, pediu e bebeu mais
vinho. Depois, por natural efeito da bebedeira progressiva, disse que queria
ter um recibo. Não era uso, mas nenhum dos irmãos fez questão. Ditava ele o
recibo, disse, pois queria as coisas todas certas. E ditou o recibo – um recibo
de bêbedo, redundante e absurdo: de como em tal dia, a tais horas, na taberna
de fulano, e «estando nós a jantar (e por ali fora com toda a prolixidade
frouxa do bêbedo...), tinham eles recebido de Manuel Peres Vigário, do lugar de
qualquer coisa, em pagamento de não sei quê, a quantia de um conto de réis em
notas de cinquenta mil réis. O recibo foi datado, foi selado, foi assinado. O
Vigário meteu-o na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda mais vinho,
e daí a um tempo foi-se embora.
Quando, no próprio dia ou no outro, houve ocasião de se trocar a primeira nota,
o que ia a recebê-la devolveu-a logo, por escarradamente falsa, e o mesmo fez à
segunda e à terceira... E os irmãos, olhando então verdadeiramente para as
notas, viram que nem a cegos se poderiam passar.
Queixaram-se à polícia, e foi chamado o Manuel Peres, que, ouvindo atónito o
caso, ergueu as mãos ao céu em graças da bebedeira providencial que o havia
colhido no dia do pagamento. Sem isso, disse, talvez, embora inocente,
estivesse perdido.
Se não fosse ela, explicou, nem pediria recibo, nem com certeza o pediria como
aquele que tinha, e apresentou, assinado pelos dois irmãos, e que provava bem
que tinha feito o pagamento em notas de cinquenta mil réis. «E se eu tivesse
pago em notas de cem», rematou o Vigário «nem eu estava tão bêbedo que pagasse
vinte, como estes senhores dizem que têm, nem muito menos eles, que são homens
honrados, mas receberiam.» E, como era de justiça foi mandado em paz.
O caso, porém, não pôde ficar secreto; pouco a pouco se espalhou. E a história
do «conto de réis do Manuel Vigário» passou, abreviada, para a imortalidade
quotidiana, esquecida já da sua origem.
Os imperfeitíssimos imitadores, pessoais como políticos, do
mestre ribatejano nunca chegaram, que eu saiba, a qualquer simulacro digno
do estratagema exemplar. Por isso é com ternura que relembro o feito
deste grande português, e me figuro, em devaneio, que, se há um céu para
os hábeis, como constou que o havia para os bons, ali lhe não deve ter
faltado o acolhimento dos próprios grandes mestres da Realidade – nem
um leve brilho de olhos de Macchiavelli ou Guicciardini, nem um sorriso
momentâneo de George Savile, Marquês de Halifax.
Fernando Pessoa
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