segunda-feira, 12 de outubro de 2015

OUTROS CONTOS

«1. O Autor Implícito», de Orhan Pamuk.

«1. O Autor Implícito»
Escritor Turco, Nobel da Literatura

640- «1. O AUTOR IMPLÍCITO»

[Do romance «Viver e Preocupar-se»]

Faz trinta anos que venho escrevendo. E ultimamente tenho recitado estas palavras com muita frequência. Tanto, na verdade, que deixaram de ser verdadeiras, pois estou entrando no meu trigésimo primeiro ano como escritor. Ainda assim, gosto de dizer que venho escrevendo romances há trinta anos. Embora seja um certo exagero. De tempos em tempos escrevo outras coisas — ensaios, textos críticos, reflexões sobre Istambul ou a política, e discursos para acontecimentos maravilhosos como este. Mas minha verdadeira vocação, aquilo que me prende à vida, é escrever romances. Existem muitos escritores brilhantes que escrevem há mais tempo que eu, que vêm escrevendo há meio século sem dar tanta atenção a isso. Há também os grandes escritores aos quais volto repetidamente, Liev Tolstói, Fiódor Dostoiévski e Thomas Mann, cujas carreiras se estenderam por mais de cinquenta anos. Então por que exagero tanto a importância deste trigésimo aniversário da minha carreira de escritor? Só porque quero falar de escrever, e especialmente de escrever romances, como de um hábito. Para ser feliz, preciso da minha dose diária de literatura. E nisso não sou diferente do doente que precisa tomar uma colher de remédio por dia. Quando eu soube, na infância, que os diabéticos precisavam tomar injecção todo dia, fiquei muito penalizado, como a maioria das pessoas, e posso até ter pensado que eles estavam meio mortos. Minha dependência da literatura deve deixar-me igualmente meio morto. Quando eu era um jovem escritor, principalmente, sentia que os outros me consideravam apartado do mundo real, e por isso condenado a viver meio morto. Ou talvez a expressão correta seja “meio fantasma”. Às vezes cheguei a pensar que estava totalmente morto, e tentava, com a literatura, insuflar de volta alguma vida no meu corpo morto. Para mim, literatura é remédio. Como os medicamentos que as outras pessoas tomam de colher ou em injecções, a minha dose diária de literatura — a minha droga cotidiana, se preferirem — precisa atender a certos padrões. Primeiro, o remédio precisa ser bom. É a sua qualidade que me diz se ele de fato funciona e se é forte o bastante. Ler um trecho denso e profundo de um romance, entrar naquele mundo e acreditar que é verdadeiro — nada me deixa mais feliz, nada me prende mais à vida. E também prefiro que o escritor já tenha morrido, porque nesse caso minha admiração nem corre o risco de ser obscurecida por uma certa nuvem de inveja. Quanto mais velho vou ficando, mais me convenço de que os melhores livros são os dos escritores mortos. E mesmo que eles ainda não tenham morrido, sentir sua presença é como perceber um fantasma. É por isso que, quando vemos um grande escritor na rua, nós o tratamos como um fantasma, custando a acreditar nos nossos olhos ao admirá-lo de longe. Alguns mais corajosos conseguem abordar os fantasmas à cata de autógrafos. Às vezes me ocorre que esses escritores logo hão de morrer, e que depois da sua morte os livros que nos deixam de herança irão ocupar um lugar ainda mais alto no nosso coração. Embora, é claro, nem sempre seja esse o caso... Se a minha dose diária de literatura for alguma coisa que eu mesmo esteja escrevendo, tudo muda de figura. Para aqueles que padecem do meu mal, a melhor de todas as curas, a maior fonte de felicidade é escrever uma boa meia página por dia. Nos últimos trinta anos, passei uma média de dez horas por dia sozinho num aposento, sentado à minha mesa. Se formos contar só o que tinha qualidade suficiente para ser publicado, minha média diária é bem inferior a meia página de texto. A maior parte do que escrevo não consegue atender aos meus padrões de qualidade. E isso, posso lhes dizer, são duas pródigas fontes de sofrimento. Mas por favor não me entendam mal: um escritor tão dependente da literatura como eu nunca poderia ser o tipo de pessoa superficial que encontra a felicidade na beleza dos livros que já escreveu, nem fica se congratulando por já ter escrito certo número de livros ou pelo sucesso de cada um. A literatura não permite a um escritor como esse fazer de conta que salvou o mundo; no máximo, ela lhe dá a oportunidade de salvar um dia de cada vez. E todos os dias são difíceis. Os dias são difíceis quando você não escreve. São difíceis quando não consegue escrever nada. O segredo é encontrar esperança suficiente para chegar ao fim do dia e, se o livro ou o trecho que está lendo for bom, encontrar nele alguma alegria, e felicidade, ainda que só por um dia. Deixem-me explicar o que sinto nos dias em que não escrevi bem, se eu não estiver perdido num livro.

Primeiro, o mundo muda diante dos meus olhos: torna-se insuportável, abominável; e as pessoas que me conhecem percebem quando isso acontece, porque fico parecido com esse mundo que vejo à minha volta. Minha filha, por exemplo, sabe que não escrevi bem naquele dia pela expressão abjecta de desamparo que meu rosto exibe à noite. Eu gostaria de ser capaz de esconder esse sentimento dela, mas não consigo. Nesses momentos sombrios, tenho a sensação de que não existe uma linha divisória entre a vida e a morte. Não quero falar com ninguém, e qualquer pessoa que me veja nesse estado tampouco sente vontade de falar comigo. Uma versão um pouco mais amena desse desespero se abate sobre mim toda tarde, a rigor entre uma e três da tarde, mas aprendi a maneira de tratá-lo com a leitura e a escrita: quando reajo na hora certa, consigo me poupar de um retraimento integral no interior do meu cadáver. Todas as vezes que preciso passar um longo período sem poder recorrer à minha cura de papel e tinta, seja devido a uma viagem, a uma conta de gás que precisa ser paga, ao serviço militar (como me ocorreu), a questões políticas (como foi o caso mais recentemente) ou a qualquer outro de uma série de obstáculos, sinto minha angústia consolidar-se dentro de mim como cimento. Meu corpo tem dificuldade de se deslocar pelo espaço, minhas juntas endurecem, minha cabeça se transforma em pedra, minha transpiração até parece mudar de cheiro. E essa angústia só faz crescer, porque a vida é cheia de prova- ções que separam as pessoas da literatura. Posso estar sentado numa reunião política concorrida, ou conversando com meus colegas de turma num corredor de escola, ou participando de uma refeição festiva com parentes, esforçando-me para travar conversa com uma pessoa de bom coração cujo espírito está a mundos de distância ou então ocupado com o que estiver passando na tela da TV; posso estar em algum importante encontro de negócios, fazendo uma compra comum, a caminho do cartório ou tirando uma foto para um visto de viagem — de repente minhas pálpebras ficam pesadas, e, embora o dia ainda esteja na metade, eu adormeço. Quando estou longe de casa, e portanto não tenho como me recolher para passar algum tempo sozinho, meu único consolo é uma sesta no meio do dia. De modo que a verdadeira fome, no caso, não é de literatura, mas de um aposento onde eu possa ficar sozinho e sonhar. Quando isso é possível, consigo inventar lindos sonhos sobre aqueles mesmos lugares cheios de gente, aqueles mesmos encontros de família, reuniões escolares, refeições festivas e todas as pessoas que os frequentam. Enriqueço as movimentadas refeições dos feriados religiosos com detalhes inventados, e deixo as pessoas mais engraçadas ainda. Nos sonhos, claro, todas as coisas e todas as pessoas são sempre interessantes, cativantes e reais. Crio o mundo novo a partir da substância do mundo conhecido. E aqui chegamos ao ponto crucial. Para escrever bem, primeiro preciso estar extremamente entediado; para ficar extremamente entediado, preciso entrar na vida. É quando sou bombardeado por barulho, sentado num escritório cheio de telefones que tocam, cercado de amigos e parentes ao sol numa praia ou num enterro chuvoso — noutras palavras, no momento exacto em que começo a sentir o pulso da cena que se desenrola à minha volta — que de repente me sinto como se não estivesse mais ali, e sim assistindo a tudo de fora. E começo a sonhar acordado. Se estou me sentindo pessimista, posso pensar sobre o quanto aquilo tudo me entedia. De qualquer maneira, uma voz dentro de mim irá surgir, dizendo-me para voltar para minha sala e me sentar diante da mesa. Não tenho ideia do que a maioria das pessoas faz nessas circunstâncias, mas é isso que transforma as pessoas em escritores. E o meu palpite é que isso não leva à poesia, mas à prosa e à ficção. O que lança um pouco mais de luz sobre as propriedades do remédio que não posso deixar de tomar todo dia. Agora vemos que os seus ingredientes são o tédio, a vida real e a vida da imaginação. 

O prazer que me dá fazer esta confissão, e o medo que sinto quando falo honestamente de mim mesmo — juntos, eles me levam a uma conclusão séria e importante que quero lhes contar agora. E gostaria de propor uma teoria 23 simples que parte da ideia de que escrever é um consolo, um alívio, até mesmo um remédio, pelo menos para os romancistas como eu: escolhemos os nossos temas, e damos forma aos nossos romances, de maneira que atendam à nossa necessidade diária de devaneio. 

Um romance é inspirado por ideias, paixões, fúrias e desejos — isso todos sabemos. Agradar às pessoas que amamos, diminuir os nossos inimigos, falar de alguma coisa que adoramos, deleitar-nos em discorrer com autoridade sobre algo que ignoramos, encontrar prazer em tempos perdidos e relembrados, sonhar com o ato do amor, ou ler, ou militar na política, ou nos entregarmos às nossas preocupações pessoais e hábitos peculiares — esses desejos, e vários outros desejos obscuros ou até sem sentido, são o que nos dá forma, de maneira clara e ao mesmo tempo misteriosa. E são esses mesmos desejos que impelem os devaneios de que falamos aqui. Podemos não entender de onde eles vêm, e podemos não entender o que eles significam, mas quando nos sentamos para escrever, são esses nossos devaneios que nos insuflam a vida, como um vento de quadrante desconhecido. Pode-se até dizer que nos deixamos levar por esse vento misterioso como um capitão que não tem ideia de qual seja o seu destino... Entretanto, ao mesmo tempo, em alguma parte da nossa mente, somos capazes de localizar no mapa o ponto exacto onde nos encontramos, assim como nos lembramos do ponto para onde estamos viajando. Mesmo nas ocasiões em que me entrego incondicionalmente ao vento, eu consigo, pelo menos ao que me dizem outros escritores que conheço e admiro, conservar o meu senso de orientação geral. Antes de partir, terei feito planos, dividido a história que pretendo contar em partes, determinado quais portos meu navio irá visitar, que carga transportará e quanto dela deixará ao longo do caminho, calculado o tempo da jornada e traçado o seu curso no mapa. Mas se o vento, tendo soprado de um quadrante desconhecido e enfunado as minhas velas, decide mudar o rumo da minha história, não me oponho a ele. Pois o que o navio de velas enfunadas procura é uma sensação de plenitude e perfeição. É como se eu estivesse à procura daquele momento preciso e daquele ponto exacto em que tudo se derrama em tudo o mais, em que tudo se liga e tudo está consciente de todo o resto. De uma hora para outra, o vento irá cessar, e eu me surpreenderei imobilizado numa calmaria, num lugar onde nada se move. Sentirei que existem coisas naquelas águas calmas e enevoadas que, se eu for paciente, poderão levar o romance adiante..

Orhan Pamuk

Sem comentários: