«Omeros»
Poeta e Dramaturgo das Antilhas
637- «OMEROS»
[Excerto/ Capítulo I]
I
Foi assim que, num amanhecer, nós talhamos aquelas canoas.”
Philoctete sorri para os turistas, que com suas máquinas fotográficas tentam
tirar sua alma. “Logo que o vento traz a notícia para os laurier-cannelles,
suas folhas se põem a tremer no instante em que o machado da luz do sol fere os
cedros, porque podiam ver os machados em seus próprios olhos. O vento levanta
as samambaias.
Soam como o mar que alimenta [a nós pescadores durante a vida
inteira; e as samambaias se curvaram: [Sim, as árvores têm que morrer! Assim,
punhos premidos nos paletós — porque estava frio nas alturas — e a respiração
fazendo plumas como a névoa, passamos o rum. Quando voltou, a bebida deu ânimo
para a gente se tornar assassinos. Eu ergo o machado e rezo por força nas mãos,
para ferir o primeiro cedro. O orvalho me enchia os olhos, mas atiro mais um
rum branco. Então avançamos.” Por algum dinheiro extra, sob uma amendoeira
marinha, ele lhes mostra uma cicatriz feita por uma âncora enferrujada,
enrolando uma perna das calças com o lamento ascendente de uma concha. Ela
ficou enrugada como a corola de um ouriço-cacheiro. Não explica a sua cura.
“Tem coisas”, sorri, “que valem mais do que um dólar.” Desde que os altos
loureiros tombaram, ele deixou que uma loquaz catarata derramasse o seu segredo
do cimo do La Sorcière, deixou que o grito de acasalamento da pomba-do-mato
passasse a sua nota aos tácitos montes azuis, cujos regatos tagarelas, ao
levá-la para o mar, se tornam charcos preguiçosos, onde os claros peixinhos
disparam e uma garça-real espreita os juncos com um grito rouco, enquanto fura
e perfura a lama com um pé a se erguer. Depois o silêncio é serrado ao meio por
uma libélula, e enguias assinam seus nomes pela areia clara do fundo, quando a
aurora ilumina a memória do rio e ondas de samambaias enormes se agitam ao som
do mar. Embora a fumaça esqueça a terra de onde ela ascende e urtigas guardem
os buracos em que os loureiros morreram, um iguano ouve os machados, toldando
cada lente sobre seu nome perdido, quando a ilha corcovada se chamava
“Iounalao” — “Onde o iguano se encontra”. Mas, sem pressa, o iguano irá escalar
o cordame das lianas num ano, sua barbela em leque, seus cotovelos nos quadris,
sua cauda vagarosa a mover-se com a ilha. As vagens fendidas de seus olhos
amadureceram numa pausa que durou séculos, que se ergueu com a fumaça dos
arauaques até que uma nova raça desconhecida do lagarto se pôs a medir as
árvores. Estas eram os seus pilares que tombaram, deixando um espaço azul para
um Deus único onde antes os velhos deuses se postaram. Foi o primeiro deus uma
gomeira. O gerador começou com um ganido; e um tubarão, de mandíbula enviesada,
mandou lascas que voavam quais cavalas sobre as águas para dentro de ervas
trémulas.
Agora desligam a serra, ainda quente e trepidante, para examinarem a
ferida que fizera. Rasparam o seu musgo gangrenoso, depois arrancaram a ferida
da rede de lianas que ainda a prendia a esta terra, e fizeram sinal com a
cabeça. O gerador chicoteou de volta ao trabalho, e as lascas voaram mais
depressa ainda, [enquanto os dentes do tubarão roíam por igual. Eles cobriam os
olhos ante o ninho estilhaçante. Agora, sobre as pastagens com bananeiras, a
ilha levantava seus chifres. A aurora escoou por seus vales, o sangue se
espalhou sobre os cedros, e o bosque inundou-se com a luz do sacrifício. Uma
gomeira estalava. Suas folhas uma enorme lona que perdera o suporte central. O
som rangente fez que os pescadores saltassem para trás, enquanto o mastro
[oblíquo se inclinava devagar sobre os leitos das samambaias; depois o chão
tremeu em ondas sob os pés; depois as ondas passaram.
II
Achille ergueu os olhos
para o buraco que o loureiro havia [deixado. Viu o buraco sarando silencioso
com a espuma de uma nuvem qual vaga a se quebrar. Depois viu o andorinhão
cruzando a rebentação de nuvens, uma coisa de nada, longe do lar, confundido
pelas ondas de colinas azuladas.
Um espinheiro [agarrou seu calcanhar. Livrou-o
com um puxão. À volta dele, outros barcos tomavam forma com a serra. Com seu
facão ele fez um rápido sinal da cruz, o polegar tocando os lábios, enquanto a
altura ressoava com machados. Ergueu de novo a [lâmina, e amputou os membros do
deus morto, nó por nó arrancando as veias separadas do corpo enquanto rezava:
“Árvore! Você poderá ser uma canoa! Ou então não!”. Os anciãos barbados
suportavam a dizimação de sua tribo sem proferirem uma sílaba sequer daquela
língua que haviam falado como uma nação, a língua ensinada aos rebentos: do
altaneiro rumorejo do cedro até as verdes vogais do bois-campêche. O bois-flot
se calou com o laurier-cannelle, o pau-campeche pele-vermelha suportou na carne
os espinhos, enquanto o patois dos arauaques estalava no cheiro de uma fogueira
resinosa, que tornava as folhas pardas, com suas línguas se enrolando, depois
as mudava em cinza, e sua [fala se perdia. Como bárbaros galgando colunas que
haviam derribado, os pescadores gritavam. Os deuses finalmente estavam caídos. Como
pigmeus, cortavam as trombas de gigantes enrugados por pagaias e remos.
Trabalhavam com a mesma concentração que um exército de formigas lava-pés. Mas
revoltadas com a fumaça, por malsinar sua floresta, dardejantes rajadas de
mosquitos agulhavam o tronco de Achille. Ele esfregou rum branco nos dois
antebraços para que, ao menos, os que esmagasse em asteriscos morressem
bêbados. Os pernilongos buscaram seus olhos. Rodeavam-nos com ataques que o
faziam chorar às cegas. Depois a hoste se retirou para elevado bambuzal, como
arqueiros arauaques fugindo dos mosquetes das toras que se rachavam, dispersa
pela bandeira do fogo e o machado sem remorso que amputava os galhos. Primeiro
os homens ataram as grandes [toras com cânhamo novo, e, como formigas, as
rolaram para um [penhasco para um mergulho entre as altas urtigas. As toras
congregavam [aquela sede pelo mar que era inata em seus corpos enredados nas
lianas. Agora os troncos no anseio de se tornarem canoas sulcavam rebentações
de arbustos, fazendo das rochas feridas abertas, não sentindo a morte dentro
deles, mas o uso... seriam quilhas, o teto do mar. Então, na praia,
colocaram-se carvões em seus ocos desbastados por enxó. Um caminhão de
carroceria aberta carregou seus corpos atados [por cordas. Os carvões,
fumegando, carcomeram por dias os lenhos cavados, até que o calor os alargou
para serem amuradas com balizas. Sob as batidas do cinzel Achille sentiu que seus ocos anelavam tocar o mar,
arremetendo rumo à bruma de ilhotas estampadas-por-pássaros, os bicos de suas
proas [separadas. E então tudo pronto. As pirogas se encolhiam na areia como
cães com gravetos nos dentes. O padre com um sininho as salpicou, depois fez o
sinal do andorinhão. Quando ele sorriu ao ver a canoa de Achille. Em Deus
Confilamos, disse Achille: “Deixe! É minha grafia e a de Deus”. Numa aurora após
a missa as canoas entraram nos leitos dos baixios paramentados, e suas proas
cabeceantes concordaram com as ondas em esquecer suas vidas como árvores; uma
serviria Heitor, e uma outra, Aquiles.
III
Achille espiou a escuridão, e
trancou com o ferrolho a meia-porta. O ar marinho a enferrujara. Içou a
armadilha de pesca com o caranguejo de uma das mãos; no buraco sob a cabana
escondeu o degrau, um bloco de lava endurecida. Ao se [aproximar do depósito,
salgava-o a brisa da aurora subindo a rua cinza por casas ferradas no sono, sob
as colunas de sódio das lâmpadas dos postes, até o asfalto seco que seus pés
raspavam; ele ia contando as pequenas centelhas azuis de estrelas apartadas. As
frondes das bananeiras se curvavam acompanhando a cólera ondulante dos galos,
seus gritos arranhando como giz vermelho que desenha colinas numa lousa. Como
seu professor, à espera, a rebentação se impacientava com seu passo vagaroso.
Pela hora em que se encontraram junto à parede do galpão de [concreto, a
estrela-d’alva já se retirara, detestando o odor de redes e tripas de peixe; a
luz no alto era dura e havia um horizonte. Ele colocou a rede junto à porta do
depósito, depois lavou as mãos na pia. A rebentação não ergueu a sua voz; mesmo
os cães só costelas estavam quietos em volta das canoas; uma garrafa de absinto
circulou entre os pescadores, que faziam sons de estalidos e estremeciam com a
casca amarga de que fora fermentado. Era nessa luz que mais feliz Achille se
sentia. Quando, antes de suas mãos agarrarem a amurada, eles se [preparavam
para que a vastidão do mar entrasse neles, sentindo começar o seu [dia.
Derek Walcott
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