«Retrato de uma Londrina»
Virginia Woolf/ Roger Eliot
1068- «RETRATO DE UMA LONDRINA»
Casas particulares em Londres têm tendência a serem muito
parecidas. A porta se abre para um vestíbulo escuro, ergue-se uma escada
estreita; do patamar superior abre-se uma dupla sala de estar e nessa dupla
sala de estar vê-se dois sofás, um de cada lado de um fogo crepitante, seis
poltronas e três compridas janelas dando para a rua. Sempre é matéria de
considerável conjectura o que acontece na segunda metade da sala dos fundos
debruçando-se para os jardins de outras casas. Mas é com a sala de estar da
frente que estamos preocupados; pois era ali que mrs. Crowe sentava-se
sempre numa poltrona junto ao fogo; era ali que sua existência transcorria; era
ali que ela servia o chá.
Que tenha nascido no campo, embora estranho, parece ser um
fato; que ela às vezes deixasse a cidade, naquelas semanas de verão em que
Londres não é Londres, também é verdade. Mas para onde ia ou o que fazia quando
saía de Londres, quando sua poltrona estava vazia, sua lareira apagada e a mesa
desfeita, ninguém sabia ou podia imaginar. Pois conceber mrs. Crowe
com seu vestido preto, seu véu e seu chapéu caminhando num campo de nabos ou
subindo um monte de pasto está além da mais desvairada imaginação.
Ali, junto à lareira no inverno ou à janela no verão,
sentara-se ela por 60 anos — mas não sozinha. Havia sempre alguém na poltrona
oposta, fazendo uma visita. E antes que o primeiro visitante estivesse sentado
por dez minutos, a porta sempre se abria e a criada Maria, de olhos e dentes
proeminentes, que por 60 anos abrira a porta, abria-a mais uma vez e anunciava
um segundo visitante; e a seguir um terceiro, e logo depois um quarto.
Nunca se soube de um tête-à-tête com mrs. Crowe. Ela
não gostava de tête-à-têtes. Era uma peculiaridade que compartilhava com muitas
anfitriãs, a de nunca ser especialmente íntima de alguém. Por exemplo, havia
sempre um homem idoso no canto junto ao armário; e que parecia tanto fazer
parte daquela admirável mobília do século XVIII quanto seus pegadores de
bronze. Mas mrs. Crowe sempre se dirigia a ele como mr. Graham; nunca
John, nunca William; embora, às vezes, o chamasse de “caro mr. Graham”
como para sublinhar que já o conhecia havia 60 anos.
A verdade é que não desejava intimidade, desejava conversa.
A intimidade é um dos caminhos para o silêncio, e mrs. Crowe abominava o
silêncio. Era preciso haver conversa, e que esta fosse geral e que abarcasse
tudo. Não devia ser profunda demais nem inteligente demais, pois se progredisse
muito nessas direções alguém certamente se sentiria de fora, e ficaria sentado
ali, balançando a xícara de chá, sem dizer nada.
Portanto, a sala de estar de mrs. Crowe tinha pouco em
comum com os celebrados salões dos memorialistas. Gente inteligente ia lá com
frequência — juízes, médicos, membros do parlamento, escritores, músicos,
viajantes, jogadores de pólo, atores e completos anónimos —mas se alguém
dissesse uma coisa brilhante isto era sentido quase como uma gafe, um acidente
que se ignorava, como um acesso de espirros ou alguma catástrofe com um
bolinho. A conversa de que mrs. Crowe gostava e que a inspirava era uma
versão glorificada do mexerico da cidade. A cidade era Londres, e o mexerico
era sobre a vida de Londres. Mas o grande dom de mrs. Crowe consistia em
tornar a grande metrópole tão pequena quanto uma aldeia, com uma igreja, um
solar e 25 chalés. Mrs. Crowe tinha informação de primeira mão sobre cada
peça, cada exposição de pintura, cada julgamento, cada caso de divórcio. Ela
sabia quem estava casando, quem estava morrendo, quem estava na cidade e quem
estava fora. Ela mencionava o fato de que acabara de ver o carro de lady Umphleby
passar, e arriscava o palpite de que ia visitar a filha cujo bebê nascera na
noite anterior, exatamente como uma mulher da aldeia fala sobre a esposa do
juiz de paz dirigindo até a estação para receber mr. John, que estaria
voltando da cidade.
E enquanto mrs. Crowe fazia essas observações pelos
últimos 50 anos ou algo assim, adquiria um surpreendente arquivo sobre a vida
de outras pessoas. Quando mr. Smedley, por exemplo, disse que sua filha
estava noiva de Arthur Beecham, mrs. Crowe observou imediatamente que
nesse caso ela seria uma prima em terceiro grau de mrs. Pirebrace, e num
certo sentido sobrinha de mrs. Burns, pelo primeiro casamento com mr.
Minchin de Blackwater Grange. Mas mrs. Crowe não era nem um pouco esnobe.
Era apenas uma cultivadora de relações; e sua surpreendente habilidade nesse
campo servia para dar um caráter familiar e uma personalidade doméstica às suas
colheitas, pois muitas pessoas se espantariam de serem primos em vigésimo grau,
se soubessem disso.
Portanto, ser admitido na casa de mrs. Crowe
significava tornar-se membro de um clube, e o pagamento exigido era a
contribuição com um número de tópicos de mexerico por ano. O primeiro
pensamento de muita gente quando a casa incendiava ou os canos rebentavam ou a
criada fugia com o mordomo deve ter sido: “Vou correr até mrs. Crowe e lhe
contar isso.” Mas nisso também as distinções precisavam ser observadas. Certas
pessoas tinham o direito de aparecer na hora do almoço; outras, em maior
número, podiam ir entre cinco e sete horas. A classe que tinha o privilégio de
jantar com mrs. Crowe era pequena. Talvez somente mr. Graham
e mrs. Burke realmente jantassem com ela, pois mrs. Crowe não era
rica. Seu vestido preto estava um tantinho gasto; seu broche de diamante era
sempre o mesmo broche de diamante. Sua refeição favorita era chá, porque a mesa
do chá pode ser suprida economicamente, e há uma elasticidade no chá que
combinava com o temperamento gregário de mrs. Crowe. Mas fosse almoço ou
chá, a refeição mostrava um caráter distinto, exatamente como um vestido ou a
jóia que usava combinavam com ela à perfeição, traziam em si uma moda própria.
Haveria um bolo especial, um pudim especial, algo peculiar à casa e tanto parte
dela quanto Maria, a velha criada, ou mr. Graham, o velho amigo, ou o
velho chintz da poltrona, ou o velho carpete no assoalho.
É verdade que mrs. Crowe deve ter saído algumas vezes,
convidada para almoços e chás de outras pessoas. Mas em sociedade ela parecia
furtiva, fragmentária e incompleta, como se tivesse meramente passado para uma
espiada no casamento ou na reunião noturna ou no funeral, a fim de recolher as
migalhas de notícias de que precisava para completar seu próprio estoque. Por
isso, era raramente induzida a sentar-se; estava sempre voando. Parecia
deslocada entre as mesas e cadeiras dos outros; precisava ter seus
próprios chintzes, seu próprio armário e seu próprio mr. Graham junto
a ele a fim de ser completamente ela própria. À medida que os anos foram
passando, as pequenas incursões no mundo exterior praticamente
cessaram. Mrs. Crowe construiu seu ninho de modo tão compacto e completo
que o mundo exterior não tinha uma pena ou um graveto a lhe acrescentar. Além
disso, seus próprios camaradas lhe eram tão fiéis que podia confiar neles para
transmitir qualquer noticiazinha que ela devesse acrescentar à sua coleção. Era
desnecessário que abandonasse a própria poltrona junto ao fogo no inverno, ou
junto à janela no verão. E com a passagem dos anos seu conhecimento não se
tornou mais profundo — a profundidade não era a linha de nossa anfitriã — e sim
mais redondo e completo. Deste modo, se uma nova peça fazia um grande
sucesso, mrs. Crowe conseguia no dia seguinte não só registrar o fato com
uma pitada de mexerico divertido dos bastidores, como também podia remeter-se a
outras estréias, nos anos 1880, 1890, e descrever o que Ellen Terry usara, o
que Duse tinha feito, o que o querido mr. Henry James comentara — nada
muito notável talvez; mas enquanto falava, era como se todas as páginas da vida
de Londres nos últimos 50 anos fossem levemente folheadas para sua diversão.
Havia muitas, e suas ilustrações eram vivas e brilhantes, e de pessoas famosas;
mas mrs. Crowe de modo nenhum vivia no passado, de modo nenhum o exaltava
acima do presente.
Na verdade, era sempre a última página, o momento presente
que mais importava. O delicioso de Londres era que sempre dava ao indivíduo
algo novo para observar, algo fresco sobre o que falar. Era preciso apenas
manter os olhos abertos e sentar em sua própria poltrona das cinco às sete
horas todos os dias da semana. Enquanto mrs. Crowe sentava-se com os
convidados em torno de si, dava de tempos em tempos uma rápida olhadela de
pássaro por sobre o ombro para a janela, como se tivesse meio olho na rua, meio
ouvido para os carros e ônibus e os gritos dos jornaleiros lá fora. Ora, algo
novo podia estar acontecendo naquele mesmo instante. Não se podia passar tempo
demais no passado: não se devia dar uma atenção total ao presente.
Nada era mais característico e talvez um pouco
desconcertante do que a ansiedade com a qual mrs. Crowe erguia os olhos e
interrompia a frase no meio quando a porta sempre se abria e Maria, que se
tornara muito corpulenta e um pouco surda, anunciava uma nova visita. Quem
estaria prestes a entrar? O que teria a acrescenta à conversa? Mas sua
habilidade em extrair fosse o que fosse que poderiam oferecer e sua destreza em
atirar a notícia no cotidiano, eram tais que nenhum dano ocorria; e fazia parte
de seu peculiar triunfo que a porta jamais se abrisse com demasiada freqüência;
o círculo nunca ultrapassava sua possibilidade de controle.
Assim, para conhecer Londres não apenas como um espetáculo deslumbrante,
um mercado, uma corte, uma colméia de indústria, mas como um lugar onde pessoas
se encontram, conversam, riem, casam-se e morrem, pintam, escrevem e atuam,
mandam e legislam, era essencial conhecer mrs. Crowe. Era em sua sala de
estar que os inúmeros fragmentos da vasta metrópole pareciam juntar-se num todo
animado, compreensível, divertido e agradável. Viajantes ausentes por anos,
homens esgotados e ressecados pelo sol, recém-chegados da Índia ou da África,
de remotas viagens e aventuras entre selvagens e tigres, iam direto para a
casinha na rua quieta para serem conduzidos novamente ao coração da civilização
numa única pernada. Mas nem a própria Londres podia manter mrs. Crowe viva
para sempre. E é fato que um dia ela já não estava sentada na poltrona junto ao
fogo quando o relógio bateu cinco horas; Maria não abriu a porta; mr.
Graham separara-se do armário. Mrs. Crowe está morta; e Londres, embora
Londres ainda exista, jamais será de novo a mesma cidade.
Virginia Woolf
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