«Última Estória»
Serpente Arco-Íris, Ungut
1069- «ÚLTIMA ESTÓRIA»
I
buscou assento na pedra
e olhou para dentro da fresta
donde a torrente saía
e a serpente sairia.
fez da laje a cama quente
para o seu coro quente e liso
na pele da pedra a lisura
de outras antigas entregas.
ajeitou-se para dormir
fechou-se a noite em seu sono:
no alto a lua propícia
ao tempo que está para vir.
luz da lua:
deus a muda
ou deusa muda?
II
em cada nascente tem
uma serpente que a guarda
que aguarda a noite e
interrompe
o permanente labor
de a libertar de areais
para vir alongar o corpo
junto ao corpo de um rapaz
que sonha que é virgem-fêmea
preparada para se dar.
guarda de águas:
quem a guarda
quem a aguarda?
III
e a serpente interrompeu
o seu labor social
para vir enlaçar o corpo
com a fêmea que a lua dava.
a longa noite das águas:
corpo-a-corpo, línguas mansas
no coração e no ventre.
águas há que só se alongam
no tempo que as luas dão.
IV
e quando a lua sumiu
e a bruma se fez no frio
dos lençóis da madrugada
devolveu-se aos areais
a serpente que os limpava
e o rapaz voltou para a casa
que era a sua e abandonara.
V
mãe das águas para vaza-las
nos olhos que a sede vaza
semeava o verde à volta
do seu corpo transmudado.
levava em si a nascente
que a serpente lhe gerara:
verde virava a secura
em que o seu olhar poisava.
VI
saiu pelo mundo a repor
as luas no tempo delas:
a da seiva, a da semente
a que faz tremer as folhas
a das raízes poupadas
a da flor
(que é a do fruto)
e a dos caminhos fechados
pelas searas sazonadas.
a da última verdura
e a da marcha da secura
a do vento que é menor
e a do vento que é maior
a da pequena carência
e a dos pastos já queimados.
depois de novo a da seiva
a da semente e as mais
todas no tempo que é justo
e que assegura a fartura
do tempo que há para cumprir.
VII
cumpriu tudo até ao tempo
da lua que se acrescenta
ao tempo
para indicar
o tempo que está para vir.
e então mais cedo que a estrela
que acompanha o caçador
saiu de novo da casa
que era a sua e a que voltara
VIII
e num lugar que era seco
entrou numa fenda aberta
donde a água não brotava
e ali fez-se uma nascente.
era agora uma serpente
que velava pelas águas
de uma torrente nascida
como as outras mais antigas.
guarda de águas:
quem a guarda
quem a aguarda?
IX
e quando o mundo secou
de novo a pedir alguém
que fecundasse o luar
com as águas do seu olhar
sentiu a nova serpente
que na laje lisa e quente
da nascente que guardava
um rapaz adormecera
fatigado de luar.
no alto a lua propícia
do tempo que está par vir.
X
e a serpente interrompeu
o seu labor social
para vir alongar o corpo
junto ao corpo do rapaz.
a longa noite das línguas:
águas há que só se alongam
no tempo que as luas dão.
luz da lua:
deus a muda
ou deusa muda?
XI
e quando a lua sumiu
e a bruma se fez no frio
dos lençóis da madrugada
o rapaz voltou para a casa
que era a sua e abandonara.
verde virava a secura
em que o seu olhar poisava.
Ruy Duarte Carvalho
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