«Os Crânioclastas»
Pequeno Excerto
1078- «OS CRÂNIOCLASTAS»
[Excerto]
“Foi quando nós entrámos. A luz abafada do fogo que morria
pintava sombras na sala de frio.
Mas volto-me e vejo-o ainda sentado nos degraus do Monumento. O padre, de
bronze, faz um aceno qualquer que ninguém decifrará, o gesto da estatuária
inútil, a mesma que anda por aí há séculos abandonada em livros de antiquário.
Vejo-o confusamente, como na sala do casino, como na praia nos vemos ou sob a
amplidão fora do vidro fosco que sufoca ou abafa o nosso hálito. Curva-se
interiormente no meu cérebro acompanhando a exacta concavidade dos ossos.
Tento, em desespero, neste dormir opaco, tocá-lo, leve que seja, para lhe dizer
como as palavras são necessárias entre os homens. Mas ele apenas se inclina com
maior gravidade, recosta-se no cadeirão para escutar as frases estrangeiras que
cavam túneis de horror pelo silêncio. Sinto, nos olhos, a prisão do tecto e do
zimbório que cresce, de vidro, na torre em funil por onde as frases se escoam;
logo, reflectidas, regressam à obsessão de que partiram.
Fujo. Voo pelo descampado até à praia. Sigo uma onda de viés, nos folhos da
espuma, mar que varre toda a costa mais rápido do que eu. Em liberdade,
grito-lhe palavras de júbilo (não há crime ainda) e projecto o som por entre
nuvens, ecos em rosas de jardim ou murmúrios em memórias do quintal; falo da
humidade nos recantos da casa e do silêncio cortado pelo pingar da água. No
pano verde de todos os prados lanço, em glória, o prazer das apostas, reis e
valetes, ases e espadas, copas e oiros. Desfecho, na serra, pela boca fria da
espingarda, as dez balas de chumbo que retinem perdidas pelas fragas.
É quando chego, fatigado, a altas horas da noite. É a mesma porta, sempre. Os
batentes castanhos. É quando rodo a chave. É quando entro. Aqui. É quando subo
a rampa ao encontro da mulher de fogo e ácido que me espera, no chão varrido de
neve, atrás do laranjal.”
João Palma-Ferreira
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