«Cãomício no Calçadão»
Pintura Medieval
192- «CÃOMÍCIO NO CALÇADÃO»
(Crónica Canina)
Reunidos no calçadão central da Avenida Atlântica, entre as
Ruas Souza Aguiar e Sá Ferreira, dezenas de cães participaram sábado à tarde de
um comício autorizado, em princípio, pela Administração Regional de Copacabana.
Eram cachorros das mais variadas raças e dos mais diferentes tamanhos, desde
Pastores Alemães até miniaturas Pintcher. Junto ao meio-fio, no local da
concentração, um carro-choque do Batalhão de Gatos, armados de unhas e dentes,
garantia a ordem.
O primeiro a subir ao tablado, que era um engradado de
refrigerantes emborcado, foi um Poodle branquinho, de rabinho cotó.
- Nossos donos são irresponsáveis! - gritou ele.
- Abaixo os donos irresponsáveis! - respondeu a multidão
raivosa (embora toda ela vacinada).
- Todo o poder aos cachorros! - prosseguiu veemente o Poodle
branco, cujo focinho lembrava vagamente o de Jane Fonda, e que era tido, entre
o Posto 6 e o Posto 4, como o líder incontestável do Dog-Power.
Em seguida pediu a palavra um Weimaraner azulado, de olhos
tristes. Do alto do caixote, falou ponderadamente:
- Meus modos if... if... (estava chorando o coitado)... Meus
modos refletem os do meu dono... Não quero mais passar vergonha sujando a
calçada!
- Nós também não! - responderam em uníssono os manifestantes
caninos. Lá do meio do povo, alguém latiu com voz de Pointer:
- Nossos donos precisam aprender que lugar de cachorro fazer
suas "coisas" é em casa!
- Bravo! Apoiado! - concordou a cãonalhada.
- Pipi-dog! Queremos pipi-dog! - Puseram-se a ladrar
cadelinhas Basser - cinco ou seis, provavelmente da mesma ninhada. - Somos
moças de família, e portanto temos direito a um lugar no apartamento, onde
possamos fazer a nossa toalete sem que os intrusos invadam a nossa
privacidade"
- Muito bem! Falou! Podem crer! - entoaram em coro os cinco
Dobermans que moram no Edifício Chopin, um dos mais luxuosos de Copacabana, e
que fazem pipi - vejam só a heresia! - na piscina do Copacabana Palace, que
fica ali ao lado.
Agora, estava no tablado um musculoso Boxer, com sua cara
abobalhada e seu tradicional bom coração.
- Senhoras e senhores - disse ele - sejamos objetivos.
Desejo colocar em votação uma proposta simples, de três pontos, a qual, se
aprovada, será encaminhada aos nossos donos, em forma de abaixo-assinado.
Primeiro ponto:
- "Quero meu pipi-dog no apartamento."
- Apoiado! - gritou a assembleia.
Segundo ponto: ... Mas, antes, para evitar tumulto, prefiro
que os distintos companheiros, em vez de latirem, ladrarem, rosnarem e coisa e
tal, balancem o rabo em sinal de aprovação. Aqueles que não mais possuem rabo
poderiam uivar, mais docemente, pois uma de nossas preocupações principais há
de ser a de não agravar a poluição sonora, de maneira a não indispor a opinião
publica contra a nossa causa...
Todos balançaram o rabo, em silêncio. A questão do orador
fora aceite. Ele então prosseguiu:
- Segundo ponto: - "Queremos fazer nosso cooper canino
apenas no calçadão central da Avenida Atlântica..."
Rabinhos balançaram para lá e para cá: aprovado.
- Terceiro ponto: "É preferível que não nos levem à
praia, onde involuntariamente causamos uma porção de doenças!"
Rabinhos alegres: de acordo.
- Desta forma - finalizou o Boxer - poderemos afirmar que
somos felizardos e que temos donos educados!
- Nosso dono vai ser super legal! - exclamou a assembleia,
esquecendo a recomendação de só balançar o rabo.
Nessa altura, todos ali estavam com vontade de fazer cocó e
pipi. Sendo assim, o Poodle branco decidiu dar por encerrada a reunião,
recomendando que os manifestantes se dispersassem em ordem.
Mas nesse instante pulou no caixote um autêntico Vira-Lata,
magrinho, de olhos famintos, as costelas aparecendo sob o pelo ralo, o rabo entre
as pernas.
- Irmãos! - bradou ele, ou melhor, essa palavra num gemido -
Irmãos! Todos somos irmãos! Todos os cachorros são iguais! Portanto, o
verdadeiro problema não está no pipi-dog doméstico nem no pinicão de
apartamento. O necessário é que todos nós, os de pedigrees e os da rua, os de
raça e os vira-latas, tenhamos, todos direito aos cuidados veterinários
periódicos, à vacinação gratuita, à alimentação farta e balanceada, à coleira
protetora com sua placa de identificação, aos banhos seguidos de talcos contra
pulgas.. Viva pois a revolução! Todo o poder aos cachorros, sem distinção de
raça, cor ou credo!
-Uh! Fora! - gritaram os cães de luxo, que pertencem todos,
naturalmente, à Direita, e preferem que as coisas continuem como estão, no
plano da justiça social. - Fora! Sarnento! Babão! Comedor de restos! Ralé!
A multidão de sócios do Kennel Club avançou na direção do
anarquista, rosnando ameaçadoramente. Foi preciso que os gatos salvassem o
Vira-Lata do linchamento inevitável, para o que o cercaram, dispersando a
cachorrada com bomba de gás lacrimogéneo.
Em seguida, o Batalhão de Gatos levou o Vira-Lata para o
lugar adequado a essa espécie agitadora. Ele agora está sendo processado e é
capaz de passar o resto da vida num canil-presídio.
Acusação: trata-se de um CÃOMUNISTA.
José Carlos de Oliveira
1 comentário:
divertido... mas mais do que divertido... é muito sério.
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