terça-feira, 1 de julho de 2014

OUTROS CONTOS

«Cãomício no Calçadão», por José Carlos de Oliveira.

«Cãomício no Calçadão»
Pintura Medieval

192- «CÃOMÍCIO NO CALÇADÃO»
(Crónica Canina)

Reunidos no calçadão central da Avenida Atlântica, entre as Ruas Souza Aguiar e Sá Ferreira, dezenas de cães participaram sábado à tarde de um comício autorizado, em princípio, pela Administração Regional de Copacabana. Eram cachorros das mais variadas raças e dos mais diferentes tamanhos, desde Pastores Alemães até miniaturas Pintcher. Junto ao meio-fio, no local da concentração, um carro-choque do Batalhão de Gatos, armados de unhas e dentes, garantia a ordem.

O primeiro a subir ao tablado, que era um engradado de refrigerantes emborcado, foi um Poodle branquinho, de rabinho cotó.

- Nossos donos são irresponsáveis! - gritou ele.

- Abaixo os donos irresponsáveis! - respondeu a multidão raivosa (embora toda ela vacinada).

- Todo o poder aos cachorros! - prosseguiu veemente o Poodle branco, cujo focinho lembrava vagamente o de Jane Fonda, e que era tido, entre o Posto 6 e o Posto 4, como o líder incontestável do Dog-Power.

Em seguida pediu a palavra um Weimaraner azulado, de olhos tristes. Do alto do caixote, falou ponderadamente:

- Meus modos if... if... (estava chorando o coitado)... Meus modos refletem os do meu dono... Não quero mais passar vergonha sujando a calçada!

- Nós também não! - responderam em uníssono os manifestantes caninos. Lá do meio do povo, alguém latiu com voz de Pointer:

- Nossos donos precisam aprender que lugar de cachorro fazer suas "coisas" é em casa!

- Bravo! Apoiado! - concordou a cãonalhada.

- Pipi-dog! Queremos pipi-dog! - Puseram-se a ladrar cadelinhas Basser - cinco ou seis, provavelmente da mesma ninhada. - Somos moças de família, e portanto temos direito a um lugar no apartamento, onde possamos fazer a nossa toalete sem que os intrusos invadam a nossa  privacidade"

- Muito bem! Falou! Podem crer! - entoaram em coro os cinco Dobermans que moram no Edifício Chopin, um dos mais luxuosos de Copacabana, e que fazem pipi - vejam só a heresia! - na piscina do Copacabana Palace, que fica ali ao lado.

Agora, estava no tablado um musculoso Boxer, com sua cara abobalhada e seu tradicional bom coração.

- Senhoras e senhores - disse ele - sejamos objetivos. Desejo colocar em votação uma proposta simples, de três pontos, a qual, se aprovada, será encaminhada aos nossos donos, em forma de abaixo-assinado. Primeiro ponto:

- "Quero meu pipi-dog no apartamento."

- Apoiado! - gritou a assembleia.

Segundo ponto: ... Mas, antes, para evitar tumulto, prefiro que os distintos companheiros, em vez de latirem, ladrarem, rosnarem e coisa e tal, balancem o rabo em sinal de aprovação. Aqueles que não mais possuem rabo poderiam uivar, mais docemente, pois uma de nossas preocupações principais há de ser a de não agravar a poluição sonora, de maneira a não indispor a opinião publica contra a nossa causa... 

Todos balançaram o rabo, em silêncio. A questão do orador fora aceite. Ele então prosseguiu:

- Segundo ponto: - "Queremos fazer nosso cooper canino apenas no calçadão central da Avenida Atlântica..."

Rabinhos balançaram para lá e para cá: aprovado.

- Terceiro ponto: "É preferível que não nos levem à praia, onde involuntariamente causamos uma porção de doenças!"

Rabinhos alegres: de acordo.

- Desta forma - finalizou o Boxer - poderemos afirmar que somos felizardos e que temos donos educados!

- Nosso dono vai ser super legal! - exclamou a assembleia, esquecendo a recomendação de só balançar o rabo.

Nessa altura, todos ali estavam com vontade de fazer cocó e pipi. Sendo assim, o Poodle branco decidiu dar por encerrada a reunião, recomendando que os manifestantes se dispersassem em ordem.

Mas nesse instante pulou no caixote um autêntico Vira-Lata, magrinho, de olhos famintos, as costelas aparecendo sob o pelo ralo, o rabo entre as pernas.

- Irmãos! - bradou ele, ou melhor, essa palavra num gemido - Irmãos! Todos somos irmãos! Todos os cachorros são iguais! Portanto, o verdadeiro problema não está no pipi-dog doméstico nem no pinicão de apartamento. O necessário é que todos nós, os de pedigrees e os da rua, os de raça e os vira-latas, tenhamos, todos direito aos cuidados veterinários periódicos, à vacinação gratuita, à alimentação farta e balanceada, à coleira protetora com sua placa de identificação, aos banhos seguidos de talcos contra pulgas.. Viva pois a revolução! Todo o poder aos cachorros, sem distinção de raça, cor ou credo!

-Uh! Fora! - gritaram os cães de luxo, que pertencem todos, naturalmente, à Direita, e preferem que as coisas continuem como estão, no plano da justiça social. - Fora! Sarnento! Babão! Comedor de restos! Ralé!

A multidão de sócios do Kennel Club avançou na direção do anarquista, rosnando ameaçadoramente. Foi preciso que os gatos salvassem o Vira-Lata do linchamento inevitável, para o que o cercaram, dispersando a cachorrada com bomba de gás lacrimogéneo.

Em seguida, o Batalhão de Gatos levou o Vira-Lata para o lugar adequado a essa espécie agitadora. Ele agora está sendo processado e é capaz de passar o resto da vida num canil-presídio.

Acusação: trata-se de um CÃOMUNISTA.

José Carlos de Oliveira

1 comentário:

Anónimo disse...

divertido... mas mais do que divertido... é muito sério.