terça-feira, 15 de julho de 2014

OUTROS CONTOS

«Os Fantasmas do Castelo», por Conceição Roque.

«Os Fantasmas do Castelo»
Texto para Teatro de Conceição Roque

205- «OS FANTASMAS DO CASTELO»

Personagens:
Voz off
Brás (o guarda mais velho)
Simão (o guarda mais novo)
Zé Pedrada (o pré-histórico)
Maria Lasca (a pré-histórica)
 Endovélico (o Deus)
Vitélio Rufus Tubulus (o romano)
Alarico (o visigodo)
Galvo (o mouro)
Pêro Rodrigues
Diogo Lopes de Sequeira
Isabel Cerniche (Esposa de Diogo Lopes de Sequeira)

***

Voz of: Estamos na Idade Média, na viragem do século XIV para o XV, fez cem anos que o castelo do Alandroal foi construído. Nas noites de Lua Cheia o castelo recebe visitas especiais, que por ali se passeiam e se cruzam. Cruzam-se sem respeitar épocas, encontram-se e baralham-nos a História.

Brás, o velho guarda, ao longo da sua vida de ronda noturna, conhece bem estes visitantes, e de tão bem os conhecer, domina os tempos - o passado, o presente e o futuro, da Pré- História aos nossos dias. Vamos com eles fazer uma viagem através dos séculos. Com eles, o Brás, o Simão e os fantasmas do castelo!

Simão: Ó Brás!

Brás: Assustaste-me rapaz! Não podes andar por aí aos gritos a esta hora da noite!

Simão: Tens medo que acorde os mortos, é?

Brás: Tens é que os respeitar; e aos vivos também, que trabalham de Sol a Sol, às vezes sabe lá Deus com que saúde… têm que descansar, coitados.

Brás: Olha, vem lá gente. Ah, é o Zé Pedrada e Maria Lasca!

Simão: É lá, isso não é de mal?!

Brás: Não, não é de mal! Eles são da Idade da Pedra, não os conheces?

Simão: Da Idade da Pedra?! Como posso eu conhece-los?! Velho o suficiente para isso és tu, não eu!

Brás: Ora… conheço-os daqui, do castelo. Costumam passear por aqui, sei bem quem são. Vivem no povoado das Águas Frias, mesmo em frente ao Lucefecit.

Zé Pedrada: Olhe que o meu pai é bem conhecido! É o mestre Zé das placas gravadas, único especialista no assunto, nos arredores e nas suas vizinhanças.

Maria Lasca: Eu, meu lindo soldadinho, também tenho sangue de artista, eu e o meu pessoal também temos andado a gravar, mas nas rochas do rio.

Simão: Nas rochas do rio?! Estes pré-históricos são loucos!

Brás: Esses são os romanos.

Simão: Os romanos?!

Brás: Deixa lá…  continuem o vosso passeio que aqui o Simão não as apanha todas.

Zé Pedrada: Ah, percebi. Vamos continuar o nosso passeio sim, está um luar lindo. Então, até depois.

Maria Lasca: Adeus soldadinho!

Simão: Adeus Maria!

Brás: Vão com Deus! Aproveitem esta maravilhosa noite de Lua cheia. Ai o amor…a juventude … quem me dera lá voltar …

Simão: Ó Brás, vem pr`aqui muita gente namorar à noite?

Brás: Se vem… e há-de continuar a vir.

Brás: Ora ora, se não é Sua Sacralidade o deus Endovélico! Por aqui hoje?

Endovélico: Boas noites senhores! Sabes como é Simão, de vez em quando tenho que vir desanuviar. Aquilo lá em cima no cabeço da Mota é uma azáfama maluca! Eles são peregrinos de Sul, eles são peregrinos de Norte… todos querem o meu oráculo: Faço um bom negócio? Vou melhorar do meu abcesso? A minha filha casa bem? Tenham paciência, um Deus também precisa de descansar!

Brás: A treinar o Latim?

Endovélico: Pois sim, tem que ser. Desde que os romanos chegaram é só Latim… tive que aprender, se não, como ia entender os meus novos crentes? Até já sei ler…havias de ver cada ara bonita que eles me oferecem!

Brás: Não te envaideças tanto Endovélico, depois de ti outras divindades se adorarão…

Endovélico: Eu sei Brás, hão-de vir deuses, deusas, santos, santas e muitos devotos. Por exemplo, ultimamente tenho ouvido umas notícias lá dos lados do oriente …mas isso não me preocupa a mim, eu sou dum tempo em que somos muitos!

Simão: Eu cá sou devoto de Santa Maria de Terena, e quando estou aqui de serviço, a minha padroeira é Santa Maria da Graça. Brás: Outra padroeira virá…

Simão: Outra padroeira?! Qual?

Brás: Sim, Nossa Senhora da … esquece Simão, com o tempo hás-de lá chegar.

Endovélico: Olhem meus senhores, vou andando. Vou dar mais uma voltinha por aqui e depois, ala para o cabeço! Boas noites.

Brás: Boa noite sua divindade.

Simão: Olha-me este, armado em Deus.

Brás: E é um Deus Simão, tem muitos devotos, já tinha antes da chegada dos romanos, agora então…

Simão: Pagãos…

Vitélio Rufus: Que tens tu contra os pagãos?

Simão: Quem é este agora?

Brás: Vitélio Rufus Túbulus, como vai essa saúde?

Simão: Ah, ah, ah, Vitelo Cufus Tubus… que raio de nome é esse?

Brás: Simão! Vitélio é o seu nome próprio, Rufus, porque é ruivo e tubulus, tubo de metal, porque ele é ferreiro.

Vitélio Rufus: Tu tem respeitinho rapaz! Eu sou o mestre ferreiro de Vilares.

Simão: De vilares?! Daquelas ruinas?!

Vitélio Rufus: Ruinas?! É uma “villa” bem bonita.

Simão: Vila?! Aquilo nem aldeia é!

Brás: Ai Simão… uma vila romana é um grande monte agrícola, com a bonita casa do proprietário, as casas dos trabalhadores, os jardins, os pomares, o lagar, a carpintaria, neste caso até tem forja.

Vitélio Rufus: Vim aqui hoje exactamente para tratar de um negócio de cobre.

Simão: Negócios, aqui, a esta hora da noite?!

Vitélio Rufus: Não há melhor lugar nem melhor hora. De dia está um calor que nem apetece mexer uma palha! E o mineiro então, coitado, que tem que fazer mexer a mula carregada de cobre desde lá dos lados das minas, quase à beira do Guadiana. Assim, pela fresca e com este luar, o negócio faz-se melhor.

Simão: Minas no tempo dos romanos?!

Vitélio Rufus: Ora pois, o que pensas tu? Temos minas, mineiros e ferreiros. Olhem, tenho que ir andando, combinei encontrar-me com ele lá fora, junto à lagoa. Boa noite aos dois.

Brás: Adeus Vitélio!

Simão: Passa bem Vitelo Cubus Tubus!

Brás: Simão… não te disse já como se chama o homem?

Simão: Um nome daqueles, quem o consegue decorar?! Só a mãe dele!

Brás: Chiu… parece-me que estou a ouvir conversa…

Simão: Deve ser o vitelo que encontrou a mula.

Brás: És um engraçadinho. O outro não vinha para aqui com a mula carregada. Deve ter encontrado outra pessoa no caminho.

Brás: Quem se aproxima?

Alarico: Boas noites!

Brás: És tu, Alarico!

Alarico: Amigo Brás, como vai essa saúde? Tens companheiro novo?

Brás: A saúde vai indo, com o peso dos anos. O novo companheiro é Simão.

Alarico: Alarico, o visigodo, ao seu dispor.

Simão: Visigodo?! Ai que eu fico com vertigens… mesmo agora daqui abalou um romano…

Alarico: Eu sei, tivemos ali um bocado à conversa.

Simão: E conhecem-se…  ai que eu dou em maluco!

Brás: Aqui nas redondezas todos conhecem o Alarico. Já encontraste mais alguma?

Simão: Anda à procura de noiva?

Alarico: Qual noiva… ando à procura das pedras do palácio do meu pai.

Brás: Palácio, Alarico?! Era mais uma casa grande…

Alarico: Fosse como fosse, se tivesse em pé hoje era minha. E mesmo desmantelada, é minha na mesma!

Simão: Por isso é que procuras as pedras? E já encontraste alguma?

Alarico: Encontrar até encontrei, mas espetaram com elas noutras construções. Aqui no castelo, lá em Juromenha, em São Brás dos Matos e sabe-se lá onde mais. Isto tem sido uma trabalheira para mas devolverem… mas um dia eu vou conseguir, e todos poderão ver a casa soberba que o meu pai me deixou!

Alarico: Vem gente, boa altura para eu ir andando, não me posso entreter mais hoje.

Simão: Passa bem e melhor sorte!

Brás: Adeus Alarico. Quem lá vem?

Galvo: Sou eu Galvo, o Mouro.

Brás: Bons olhos o vejam, Galvo.

Galvo: Boas noites. Guarda novo?

Simão: Boa noite, sou Simão, às suas ordens. Lá vejo alguém hoje de quem já ouvi falar!

Brás: Admira-me… e a quem ouviste tu falar de Galvo?

Simão: Tu já me conheces, sabes como sou curioso. Um dia armei-me de coragem e descaramento e quis satisfazer a minha curiosidade. Encontrei o alcaide ali à porta  e como o homem é dos poucos que aqui sabe ler, pedi-lhe que me dissesse do que falam as pedras escritas que estão nas paredes do nosso castelo.

Brás: Ah, então foi assim que ouviste falar dele!

Simão: Dele e de outros, mas o mouro ficou-me cá nas ideias. O construtor do nosso castelo, um mouro…

Galvo: E então? Não te parece bem firme?

Brás: Deixa-o, é uma grande obra sim senhor, para durar ainda muitos séculos!

Simão: Lá estás tu com o que há de vir, como sabes se vai aguentar em pé tanto tempo?

Brás: Eu cá sei. Então já encontraste a tua arca?

Galvo: Deixa-me cá… como sabes, terminei a obra do castelo para a Ordem de Avis, pedi que me guardassem aqui a arca enquanto me ausentava. Fui procurar uns parentes ao Castelo Velho; não encontrei lá vivalma e quando voltei ninguém sabia da minha arca…há cem anos que a procuro!

Simão: Há cem anos?! O outro procura pedras e tu, uma arca…hum… devia estar cheia de ouro.

Galvo: Sim, o meu ouro, que eram os meus planos, os meus instrumentos de trabalho, as minhas roupas, algumas recordações … parte da minha vida…

Brás: Lamento Galvo. Muitos ainda vão dar voltas ao miolo para a encontrar…

Pero Rodrigues: Boas noites meus senhores! Temos tertúlia em noite de Lua Cheia?

Galvo: Ora se não é Pero Rodrigues, ilustre capitão de pouca gente!

Brás: Suba cá, nobre amigo!

Pero Rodrigues: Não subo não, que as pernas já me pesam muito…

Galvo: Pudera, só para recuperar o gado, o que não teve de penar…

Simão: Este ao menos encontrou o que procurava, não?

Brás: Encontrou pois. Este senhor foi nosso alcaide até há algum tempo atrás. Um homem importante na crise que há pouco atravessamos. Nunca ouviste falar dele?

Simão: Bom, eu não sou daqui, sou de Terena, temos lá alcaide. Mas já ouvi falar dele sim senhor; deve ser mesmo importante…

Galvo: Um grande alandroalense! Só por ele valeu a pena ter construído este castelo!

Brás: Se não fossem homens como este, Simão, agora o teu patrão era castelhano!

Pero Rodrigues: Ora, ora, os senhores assim envergonham-me…

Brás: Só tem de que se orgulhar, e a nós também! O alcaide do Alandroal, cavaleiro do Mestre de Avis, o nosso rei D. João!

Galvo: Assim é, Brás. Já que não sobe, Pero Rodrigues, desço eu para ir ter consigo. Vamos os dois dar uma volta junto às muralhas; está uma bela noite para pormos a conversa em dia.

Simão: Que noite…e eu a pensar que isto de ficar de guarda ia ser um grandessíssimo aborrecimento…

Brás: Esta é a tua primeira noite de vigília com Lua Cheia, não vai ser sempre assim.

Simão: Então é por ser noite de Lua Cheia que há tanto movimento por aqui?

Brás: Sim, Simão. Nestas noites todos saem, todos têm que fazer aqui. Uns vêm desanuviar, passear, namorar, dar uma volta nas noites quentes; outros procuram incansavelmente algo; há, ainda, os que desejam encontrar alguém… nem que sejamos nós…

Simão: E eu gosto de os ver por aqui… deixam-me um pouco bocado baralhado, é verdade, mas o que eu fico a saber?!

Brás: Mais ficarás a saber se te portares bem! Para continuares neste posto não te podes esquecer que temos que fazer o giro de vez em quando; não é só guardar a porta e estar na conversa a noite toda!

Simão: Então vamos lá, antes que apareça mais alguém.

Simão: Vês? Não é falta de vontade nossa… quem são estes agora?

Brás: Fala baixo! É Diogo Lopes de Sequeira e a sua esposa … tem um feitio esta senhora…

Simão: Parece que está zangada, a criatura! Deixa lá ouvir que já continuamos a ronda.

Isabel Cerniche: A tua sorte, Diogo, é estar este luar inspirador, se não eu te dizia das boas!

Diogo Lopes de Sequeira: Tu, para me dizeres das boas, estás sempre inspirada.

Isabel Cerniche: Homem, tu não me azedes, que eu solto a língua!

Diogo Lopes de Sequeira: Solta, solta agora que mais ninguém te ouve!

Isabel Cerniche: Casa com ele que ele vai longe, dizia a minha mãe… ai, ai, triste engano…

Diogo Lopes de Sequeira: E não fui longe, Isabelinha?!

Isabel Cerniche: Pois foste, até chegaste à India. Mas se não tivesses metido a mão no que não era teu…

Diogo Lopes de Sequeira: Calúnias, Isabel! Como podes tu acreditar em calúnias?! Eu sempre fui um homem respeitável.

Isabel Cerniche: Sim, sim… viu-se na Conferência de Elvas e Badajoz, em vez de tomares partido pelo nosso rei, D. João III, ficaste do lado dos castelhanos…

Diogo Lopes de Sequeira: Ai mulher, tu fazes-me perder a cabeça! Outra vez essa conversa?! Já te disse que isso foi um mal entendido!

Isabel Cerniche: Mal entendido… olha, vou para casa, que na tua companhia o luar não me inspira.

Diogo Lopes de Sequeira: Vai sim, vai indo à frente, que esse teu mau génio até espanta os demónios!

Simão: Realmente, que feitiozinho! O homem é mesmo como ela diz?

Brás: Não é nada! Foi alcaide do Alandroal, comandante da primeira frota portuguesa a chegar a Malaca e governador da Índia. Não é pouco!

Simão: Houve ali uma parte da conversa que me deixou confuso… não entendi bem aquela do nosso rei D. João III…

Brás: Havias de lá chegar…

Simão: Chegar aonde?

Brás: Chegar ao futuro, Simão. Onde está D. João III.

Simão: Espera ai… Então se D. João III será rei no futuro, e o Diogo Lopes de Sequeira é do seu tempo, então quer dizer…

Brás: Isso Simão, isso.

Simão: Ai homem, dás cabo de mim… gente do passado, gente do futuro… que mais conheces tu?

Brás: Algumas pessoas… e, sobretudo, algumas coisas, que te iam deixar ainda mais perturbado… tantas coisas, Simão, que a tua cabeça, sempre tão imaginativa, nem sonha…

 Simão: Mas que chinfrineira é está?! Estou zonzo… estarão possuídos, os rapazes?! Tu não me digas que isto é um baile do futuro?!

Brás: pareces um velho a falar! Tu é que quiseste saber…

Simão: Brás, Brás…  isto é demais para mim… tanta coisa numa só noite… Afinal quem sou eu, quem és tu, Brás? Porque podemos nós conhecer gente de antes e de depois?!

Brás: Porque tu, Simão, eu e eles... nós somos os Fantasmas do Castelo!

Conceição Roque

3 comentários:

Anónimo disse...

Muito bem Conceição. Adorei os fantasmas do castelo! Parabéns ao texto que escreveste e ao grupo de teatro da universidade sénior.

Amiga

Anónimo disse...

Olha... a arqueóloga também é dramaturga... interessantíssimo o texto e muito bem humorado.

Parabéns!

Anónimo disse...

Mesmo agora aqui cheguei e quero comentar: 5 estrelas
Já li a peça duas vezes e vou lê-la outra vez.
Parabéns à autora e ao elenco!