«Um pouco de Silêncio»
Conto de Lya Luft
445- «UM POUCO DE SILÊNCIO»
Nesta trepidante cultura nossa, da agitação e do barulho,
gostar de sossego é uma excentricidade.
Sob a pressão do ter de parecer, ter de participar, ter de
adquirir, ter de qualquer coisa, assumimos uma infinidade de obrigações. Muitas
desnecessárias, outras impossíveis, algumas que não combinam connosco nem nos
interessam.
Não há perdão nem amnistia para os que ficam de fora da
ciranda: os que não se submetem mas questionam, os que pagam o preço da sua
relativa autonomia, os que não se deixam escravizar, pelo menos sem alguma
resistência.
O normal é ser actualizado, produtivo e bem informado. É
indispensável circular, ser bem-relacionado. Quem não corre com a manada,
praticamente nem existe, se não tomar cuidado, põem-no numa jaula: um animal
estranho.
Pressionados pelo relógio, pelos compromissos, pela opinião
alheia, disparamos sem rumo – ou por trilhos determinadas – como hamsters que
se alimentam da sua própria agitação.
Ficar sossegado é perigoso: pode parecer doença. Recolher-se
em casa ou dentro de si mesmo ameaça quem apanha um susto de cada vez que
examina a sua alma.
Estar sozinho é considerado humilhante, sinal de que não «se
arranjou» ninguém – como se a amizade ou o amor se «arranjasse» numa loja.
Além do desgosto pela solidão, temos horror à quietude.
Pensamos logo em depressão: quem sabe terapia e antidepressivos? Uma criança
que não brinca ou salta ou participa de actividades frenéticas está com algum
problema.
O silêncio assusta-nos por retumbar no vazio dentro de nós.
Quando nada se move nem faz barulho, notamos as frestas pelas quais nos espiam
coisas incómodas e mal--resolvidas, ou se observa outro ângulo de nós mesmos.
Damo-nos conta de que não somos apenas figurinhas atarantadas correndo entre a
casa, o trabalho e o bar, a praia ou o campo.
Existe em nós, geralmente nem percebido e nada valorizado,
algo para além desse que paga contas, faz amor, ganha dinheiro, e come,
envelhece, e um dia (mas isso é só para os outros!) vai morrer. Quem é esse que
afinal sou eu? Quais os seus desejos e medos, os seus projectos e sonhos?
No susto que essa ideia provoca, queremos ruído, ruídos.
Chegamos a casa e ligamos a televisão antes de largarmos a carteira ou a pasta.
Não é para assistirmos a um programa: é pela distracção.
O silêncio faz pensar, remexe águas paradas, trazendo à tona
sabe Deus que desconcerto nosso. Com medo de vermos quem – ou o que – somos,
adiamos o confronto com a nossa alma sem máscaras.
Mas, se aprendermos a gostar um pouco de sossego,
descobrimos – em nós e no outro – regiões nem imaginadas, questões fascinantes
e não necessariamente negativas.
Nunca esqueci a experiência de quando alguém me pôs a mão no
ombro de criança e disse:
— Fica quietinha um momento só, escuta a chuva a chegar.
E ela chegou: intensa e lenta, tornando tudo singularmente
novo. A quietude pode ser como essa chuva: nela nos refazemos para voltarmos
mais inteiros ao convívio, às tantas frases, às tarefas, aos amores.
Então, por favor, dêem-me isso: um pouco de silêncio bom,
para que eu escute o vento nas folhas, a chuva nas lajes, e tudo o que fala
muito para além das palavras de todos os textos e da música de todos os
sentimentos.
Lya Luft
Lya Luft
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