«Não Digam a Ninguém»
Por António Alçada Baptista
455- «NÃO DIGAM A NINGUÉM»
«Foi assim: ninguém tinha o telefone do Herberto Helder, eu
só sabia o nome da rua porque tenho muita dificuldade em decorar números. Foi
então que a Clara propôs irmos à procura do poeta na rua que eu tinha. Só havia
dois prédios de habitação. Um deles era quase uma torre e tinha um painel de
campainhas. A Clara tocou numa delas ao acaso. Daquela gradinha de rede veio
uma voz. «Quem é?». A Clara perguntou se era da casa do poeta Herberto Helder.
«Mas quem é?». Ela disse o meu nome. Então a porta abriu-se e nós subimos.
A
Olga estava à entrada da casa. Eu gosto muito da Olga, primeiro por ela e
depois porque nos toma conta do Herberto. Digamos que ele faz parte do nosso
Património e ela é a Conservadora. Eu disse-lhe baixinho - Olga, o Herberto
ganhou o Prémio Pessoa, são sete mil contos. Como é que isto vai ser?
Ela fez-me uma cara de conformação e só com um gesto de
cabeça fiquei a saber que ele não ia aceitar.
O Herberto estava na sala. Falou à Clara e depois a mim.
Eu disse, meio a brincar meio a sério: - Vimos numa difícil
missão...
Ele, com toda a simplicidade dele, disse-me logo que não,
calculando que era um prémio.
Não foi possível demovê-lo e sentimos que aquilo era tão
fundo e tão importante para ele que não devíamos insistir. Ele disse:
- Vocês não digam a ninguém e dêem o prémio a outro...
- Não pode ser, o júri escolheu-te a ti, a decisão está
tomada; respeitamos que digas que não...
Ele ainda acrescentou:
- Peço que vocês sejam meus mandatários e digam ao júri que
eu agradeço mas não posso aceitar.
Eu queria transmitir bem que não havia aqui nenhuma
arrogância: a sua recusa não era contra ninguém. Era uma decisão do seu eu mais
íntimo, que logo nos mereceu o maior respeito. Eu só lhe disse: - Eu já gostava
de ti e vi agora que é possível ainda gostar mais...
A Clara falou muito com ele porque ambos gostavam de se
conhecer. Ela sabe fazer conversas inteligentes como se fossem banais. A certa
altura viemos embora com alguma comoção por dentro e desabafámos no carro:
- Já ninguém faz isto...
- Todos ganhámos este prémio. Quando a regra é a procura de
dinheiro, é bonito que um homem pobre dê exemplos assim.
Eu, confesso que passou pela cabeça de um bocadinho de mim
que ele pudesse aceitar o prémio. Sempre eram sete mil contos. Talvez uma
segurança até ao fim da vida. A verdade é que quase me apeteceu voltar atrás e
pedir-lhe desculpa por este «mau pensamento». Mas eu era um homem feliz: o Herberto
não nos deixou ficar mal...»
António Alçada Baptista
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