«Uma Vela para Dario»
Conto de Dalton Trevisan
438- «UMA VELA PARA DARIO»
Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo. Assim
que dobra a esquina, diminui o passo até parar, encosta-se a uma parede. Por
ela escorrega, senta-se na calçada, ainda húmida de chuva. Descansa na pedra o
cachimbo.
Dois ou três passantes à sua volta indagam se não está bem. Dario abre a boca,
move os lábios, não se ouve resposta. O senhor gordo, de branco, diz que deve
sofrer de ataque.
Ele reclina-se mais um pouco, estendido na calçada, e o cachimbo apagou. O
rapaz de bigode pede aos outros se afastem e o deixem respirar. Abre-lhe o
paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe tiram os sapatos, Dario
rouqueja feio, bolhas de espuma surgem no canto da boca.
Cada pessoa que chega ergue-se na ponta dos pés, não o pode ver. Os moradores
da rua conversam de uma porta a outra, as crianças de pijama acodem à janela. O
senhor gordo repete que Dario sentou-se na calçada, soprando a fumaça do
cachimbo, encostava o guarda-chuva na parede. Ma não se vê guarda-chuva ou
cachimbo a seu lado.
A velhinha de cabeça grisalha grita que ele está morrendo. Um grupo o arrasta
para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protesta o motorista:
quem pagará a corrida? Concordam chamar a ambulância. Dario conduzido de volta
e recostado à parede - não tem os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.
Alguém informa da farmácia na outra rua. Não carregam Dario
além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito peso. É
largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobrem o rosto, sem que
façam um gesto para espantá-las.
Ocupado o café próximo pelas pessoas que apreciam o incidente e, agora, comendo
e bebendo, gozam as delícias da noite. Dario em sossego e torto no degrau da
peixaria, sem o relógio de pulso.
Um terceiro sugere lhe examinem os papéis, retirados - com vários objetos - de
seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficam sabendo do nome, idade,
sinal de nascença. O endereço na carteira é de outra cidade.
Regista-se correria de uns duzentos curiosos que, a essa hora, ocupam toda a
rua e as calçadas: é a polícia. O carro negro investe a multidão. Várias
pessoas tropeçam no corpo de Dario, pisoteado dezassete vezes.
O guarda aproxima-se do cadáver, não pode identificá-lo - os bolsos vazios.
Resta na mão esquerda a aliança de ouro, que ele próprio - quando vivo - só
destacava molhando no sabonete. A polícia decide chamar o rabecão.
A última boca repete - Ele morreu, ele morreu. A gente começa a se
dispersar. Dario levou duas horas para morrer, ninguém acreditava estivesse no
fim. Agora, aos que alcançam vê-lo, todo o ar de um defunto.
Um senhor piedoso dobra o paletó de Dario para lhe apoiar a cabeça. Cruza as
mãos no peito. Não consegue fechar olho nem boca, onde a espuma sumiu. Apenas
um homem morto e a multidão se espalha, as mesas do café ficam vazias. Na
janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.
Um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver.
Parece morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.
Fecham-se uma a uma as janelas. Três horas depois, lá está Dario à espera do
rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó. E o dedo sem a aliança. O toco
de vela apaga-se às primeiras gotas da chuva, que volta a cair.
Dalton Trevisan
Sem comentários:
Enviar um comentário