terça-feira, 3 de março de 2015

OUTROS CONTOS

«Bailarinas Cambojanas», por Marguerite Duras.

«Bailarinas Cambojanas»
Bailarina Sagrada Apsara
(Templo de Angkor/ Cambodja)

434- «BAILARINAS CAMBOJANAS»

Era naquela parte do alto Camboja presa entre o mar e a montanha, para o lado da fronteira do Sião. Lá só há uma estrada cada vez pior e que para, vencida, diante do mar. A serra do Elefante a ladeia até o fim e mergulha no calmo golfo de Ream, onde algumas ilhotas ainda se notam, cada vez mais raras. Algumas aldeiazinhas pobres estão semeadas à beira da estrada, enfiadas na floresta. Pela tarde elas se acendem; grandes fogueiras de lenha verde e pesadas colunas de fumaça resinosa embalsamam o campo.

Essa lokhon, essa dançarina, ia de aldeia em aldeia. Quando chegou a Bem-Teai, eu estava lá por acaso. Um pequeno tam-tam monótono anunciava-a desde a manhã; sem trégua ela chamava, implorava que se viesse vê-la; caída a noite, os caminhos ficaram cheios de curiosos, de mulheres e homens vindos de outras aldeias.

Quando cheguei, a palhoça estava escura e já repleta de gente. No meio, sobre um estrado nu, a lokhon já estava dançando. Lamparinas fumarentas pareciam isolá-la do resto do mundo e da noite. Uma velha cambojana, num canto da palhoça, agachada, cantava uma melopeia de ritmo duro. Sua voz era vazia e rouca. Sua voz era feia, mas ela sabia colocar na voz a paixão de um ritmo impecável; por vezes, para segui-lo, ela gritava, não podendo mais cantar, e seu grito parecia de desespero. Essa lembrança sempre continua para mim como uma visão:

A moça dança; ainda é jovem e, no entanto, sua beleza é madura e já pronta para o sacrifício do declínio.

Vestida de outros falsos embaçados, está mal maquiada, maquiada com cal. Seus ombros estão nus e os braços também. Deve ter andado por longos dias debaixo do sol, pois o pescoço está queimado. A pele do braço é branca e fresca e os pesados braceletes parecem mordê-la.

Ela não sabe dançar, é uma pagã, uma falsa lokhon. Dá sua dança a todos, dá sua juventude, não sabe guardar nada e, terminada a dança, dá seu corpo pelo resto da noite. Ninguém a quereria como criada, ela só dança à noite. De dia, dorme em alguma valeta ou anda pelas estradas com sua velha cantora, que só tem a ela.

Graças a sua dança, compreendi a dança khmer, aquela que desde de séculos alimenta um povo com as magia e carrega um [grande] cerimonial até nessa palhoça escura e …

Ela e a velha começam juntas. As primeiras notas cantadas são baixas e sombrias, mas sente-se logo que elas chamam outras, mais distantes.

A dança se inicia sobriamente, como se dedicasse uma extrema atenção para nascer no momento exato. Começa com uma batida de saltos; depois sobe, sinuosa e lenta até os quadris. Espalha-se e vive intensamente  no torso que logo se torna uma coisa fechada, infinitamente preciosa, de onde a dança tenta escapar sem se fartar.

Os quadris imobilizam-se, as pernas separam-se uma da outra e os pés fixam-se sabiamente. Então os braços e o busto recebem de repente a graça e são tomados pela necessidade da dança. Os braços flexíveis parecem partidos pelo eflúvio que recebem de repente a graça e são tomados pela necessidade da dança. Os braços flexíveis parecem partidos pelo eflúvio que recebem. Por vezes eles vivem contrariamente; um atrás rechaçando e defendendo, o outro levado à frente, com a palma inflamada, implorando. A mão, a divina mão está quebrada como por um peso grande demais.  Está rígida e sofre infinitamente.

Uma vez que começa, ela improvisa, sem dúvida. Pensa-se na derradeira atenção da dançarina de corte aprisionada em sua dança, essa segunda vida que a designou e que a possui. Já esta, esta é livre, e trama a sua dança numa solidão perfeita consigo mesma.

Dir-se-ia que ela se estira para fora do próprio corpo, de repente cansada de [abranger] tão pouco espaço, de não poder ir mais longe fora de si mesma.

Depois a dança pára.

A dançarina volta a seu pequeno corpo acanhado e lasso. Ofegante e fosca pelo calor, ela descansava. Todos consideravam com uma curiosidade baixa e cruel. Despida pela primeira vez, sua nudez de aparato ficava exposta; e os homens a desejavam de repente por causa dessa fadiga que a entregava a eles.

Ela teve de dançar a noite toda. Por longo tempo o pequeno tambor lançou seu apelo menor. Só parou quando a fresca madrugada entrou na palhoça, esgotada.

Ela se foi com o dia, pois era daquelas que não podem parar em lugar algum.

A preciosíssima dançarina de corte riria de sua dança e de sua sorte, sem compreender que ela também foi designada para levar aos campos longínquos a mensagem de sua dança mal aprendida.

Marguerite Duras

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