«Bailarinas Cambojanas»
Bailarina Sagrada Apsara
(Templo de Angkor/ Cambodja)
434- «BAILARINAS CAMBOJANAS»
Era naquela parte do alto Camboja presa entre o mar e a
montanha, para o lado da fronteira do Sião. Lá só há uma estrada cada vez pior
e que para, vencida, diante do mar. A serra do Elefante a ladeia até o fim e
mergulha no calmo golfo de Ream, onde algumas ilhotas ainda se notam, cada vez
mais raras. Algumas aldeiazinhas pobres estão semeadas à beira da estrada,
enfiadas na floresta. Pela tarde elas se acendem; grandes fogueiras de lenha
verde e pesadas colunas de fumaça resinosa embalsamam o campo.
Essa lokhon, essa dançarina, ia de aldeia em
aldeia. Quando chegou a Bem-Teai, eu estava lá por acaso. Um pequeno tam-tam
monótono anunciava-a desde a manhã; sem trégua ela chamava, implorava que se
viesse vê-la; caída a noite, os caminhos ficaram cheios de curiosos, de
mulheres e homens vindos de outras aldeias.
Quando cheguei, a palhoça estava escura e já repleta de
gente. No meio, sobre um estrado nu, a lokhon já estava dançando.
Lamparinas fumarentas pareciam isolá-la do resto do mundo e da noite. Uma velha
cambojana, num canto da palhoça, agachada, cantava uma melopeia de ritmo duro.
Sua voz era vazia e rouca. Sua voz era feia, mas ela sabia colocar na voz a
paixão de um ritmo impecável; por vezes, para segui-lo, ela gritava, não
podendo mais cantar, e seu grito parecia de desespero. Essa lembrança sempre
continua para mim como uma visão:
A moça dança; ainda é jovem e, no entanto, sua beleza é
madura e já pronta para o sacrifício do declínio.
Vestida de outros falsos embaçados, está mal maquiada, maquiada
com cal. Seus ombros estão nus e os braços também. Deve ter andado por longos
dias debaixo do sol, pois o pescoço está queimado. A pele do braço é branca e
fresca e os pesados braceletes parecem mordê-la.
Ela não sabe dançar, é uma pagã, uma falsa lokhon. Dá
sua dança a todos, dá sua juventude, não sabe guardar nada e, terminada a
dança, dá seu corpo pelo resto da noite. Ninguém a quereria como criada, ela só
dança à noite. De dia, dorme em alguma valeta ou anda pelas estradas com sua
velha cantora, que só tem a ela.
Graças a sua dança, compreendi a dança khmer, aquela
que desde de séculos alimenta um povo com as magia e carrega um [grande]
cerimonial até nessa palhoça escura e …
Ela e a velha começam juntas. As primeiras notas cantadas
são baixas e sombrias, mas sente-se logo que elas chamam outras, mais
distantes.
A dança se inicia sobriamente, como se dedicasse uma extrema
atenção para nascer no momento exato. Começa com uma batida de saltos; depois
sobe, sinuosa e lenta até os quadris. Espalha-se e vive intensamente no
torso que logo se torna uma coisa fechada, infinitamente preciosa, de onde a
dança tenta escapar sem se fartar.
Os quadris imobilizam-se, as pernas separam-se uma da outra
e os pés fixam-se sabiamente. Então os braços e o busto recebem de repente a
graça e são tomados pela necessidade da dança. Os braços flexíveis parecem
partidos pelo eflúvio que recebem de repente a graça e são tomados pela
necessidade da dança. Os braços flexíveis parecem partidos pelo eflúvio que
recebem. Por vezes eles vivem contrariamente; um atrás rechaçando e defendendo,
o outro levado à frente, com a palma inflamada, implorando. A mão, a divina mão
está quebrada como por um peso grande demais. Está rígida e sofre
infinitamente.
Uma vez que começa, ela improvisa, sem dúvida. Pensa-se na
derradeira atenção da dançarina de corte aprisionada em sua dança, essa segunda
vida que a designou e que a possui. Já esta, esta é livre, e trama a sua dança
numa solidão perfeita consigo mesma.
Dir-se-ia que ela se estira para fora do próprio corpo, de
repente cansada de [abranger] tão pouco espaço, de não poder ir mais longe fora
de si mesma.
Depois a dança pára.
A dançarina volta a seu pequeno corpo acanhado e lasso.
Ofegante e fosca pelo calor, ela descansava. Todos consideravam com uma
curiosidade baixa e cruel. Despida pela primeira vez, sua nudez de aparato
ficava exposta; e os homens a desejavam de repente por causa dessa fadiga que a
entregava a eles.
Ela teve de dançar a noite toda. Por longo tempo o pequeno
tambor lançou seu apelo menor. Só parou quando a fresca madrugada entrou na
palhoça, esgotada.
Ela se foi com o dia, pois era daquelas que não podem parar
em lugar algum.
A preciosíssima dançarina de corte riria de sua dança e de
sua sorte, sem compreender que ela também foi designada para levar aos campos
longínquos a mensagem de sua dança mal aprendida.
Marguerite Duras
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