«Manuscrito»
Jules Verne
454- «MANUSCRITO»
A minha obra ficaria incompleta se, em apêndice
à Viagem ao Centro da Terra, não houvesse o breve Regresso à
Superfície da Terra que hoje venho dar-vos. Foi para o escrever que
abandonei, transitoriamente, o formoso túmulo em que me inumaram, e, envergando
as roupas do guarda deste cemitério (a quem lego, a título de indemnização, os
direitos desta carta), fiz uma peregrinação pelo mundo. Tudo vi. E bem escuso
descrever-vos as novidades que encontrei, pois sobejamente as conheceis.
O meu propósito é outro. À semelhança do que os tártaros
fizeram a Miguel Strogoff, momentos antes de lhe chegarem aos olhos a lâmina
incandescente, quero gritar-vos: Abri os olhos! Abri-os bem, pois estais, como
ele, em riscos de cegueira!
Em breve sabereis que há vida na Lua. Quando? Na noite de
lua-nova em que fizerdes explodir no espaço, qual gigantesco very light,
uma das vossas bombas termo-nucleares. Então vereis os segredos da face
desconhecida da Lua que, pelo facto da velocidade de rotação desse satélite ser
igual à de translação, tem estado, desde o princípio dos tempos, mergulhada em
sombra para os habitantes da Terra. E conhecereis que miríades de estranhos
seres habitam essa face, deslocando-se, sem parança, no sentido do poente, logo
que a luz do Sol se avizinha do horizonte do ponto em que estão. Porquê? Porque
a pequena massa da Lua, a natureza do seu solo, a sua menor superfície em
relação à Terra, bem assim como a maior proximidade do Sol a que se encontra
uma parte da órbita que descreve tornam a vida incompatível com a temperatura
que atinge o solo da face iluminada. Daí que toda uma legião de seres,
anaeróbios mas corpulentos, corra incessantemente atrás da sombra. E, porque a
velocidade de rotação e translação da Lua é suficientemente pequena para o
permitir, assim vão vivendo numa sucessão de pequenos altos em que se nutrem
dos fungos e cogumelos que cobrem as paredes das inúmeras cavernas e galerias
de que a Lua —gigantesca pedra-pomes — está minada, e em que
descansam, se reproduzem e enterram (ou enluam) os
mortos, — autênticos caixeiros-viajantes da vida que são.
Mas vós, meus queridos leitores, fazeis hoje, mentalmente, o
mesmo! Pois que é a vossa vida senão uma corrida sem tréguas na peugada da
sombra que a sinistra bola de fogo das explosões atómicas projecta a milhares
de quilómetros de distância? Todos viveis na insegurança da noite em que poderá
raiar, subitamente, o clarão sinistro da fissuração dos átomos. Essa admirável
conquista da ciência, que o meu Nemo anteviu, e que tão amplas perspectivas de
futuro poderia rasgar aos vossos olhos — não apontei há pouco senão uma
das mais ínfimas! — tornou-se um pesadelo. Por isso recolhi ao
túmulo, angustiado. E só consentirei em reassumir a posição, face à
posteridade, que a vossa gentileza me talhara no mármore, no dia em que
tiverdes conjurado a ameaça que paira sobre a Humanidade, eliminado o perigo
duma guerra!
Amarguradamente vosso,
Júlio Verne
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