«Ortografia»
Conto de João de Melo
459- «ORTOGRAFIA»
[Excerto do «Dicionário de Paixões]
Dá-se com os olhos nele e já ninguém estranha. Ele está em
toda a parte : nos tapumes das obras daqueles bancos solícitos e hipócritas que
pedem desculpam pelo incómodo e prometem ser breves a devolver aos peões o
passeio público; nos painéis publicitários, nas legendas televisivas, nos placards que
encimam os andaimes dos edifícios em construção. Está também nas coisas da
Câmara; circula nos autocarros do Porto, de Lisboa e de todas as cidades; foi
escrito a giz nos muros — como protesto público, paixão de amor, exercício naïf de
pintura e caligrafia. Na província, atravessando as ruas, vibra nas faixas que
anunciam arraiais, quermesses, eventos desportivos…
Não conhecem o erro ortográfico?
O maior deles é irreversível. Consiste em não o
(re)conhecermos. E esse irreconhecimento fez dele uma instituição secreta.
A correcção linguística e gramatical, pela qual se batem as
gerações da exigência e da cultura, é de tal maneira uma raridade deste alegre
tempo português, que da nossa indignação vamos todos nós pouco a pouco
abdicando. Os professores das disciplinas científicas deixaram de o corrigir —
por o não identificarem ou por a ele se terem já conformado. Os das chamadas
ciências sociais limitam-se a sublinhá-lo a azul ou a amarelo, com a timidez de
quem não tem autoridade nem voz na matéria. Os docentes de língua materna não
sabem que peso atribuir-lhe nem se devem considerá-lo como argumento ou ónus de
avaliação. Vai sendo um castigo e uma temeridade ser-se professor de Português.
Não é só o caso de figurarmos na condição de réus, mas sobretudo o risco de a
todo o instante sermos postos em trabalhos e em tormentos. No intervalo das
aulas, em plena sala de professores, levantam-se vozes contra a ignorância
frásica e a pobreza vocabular dos alunos (dizem-no de dedo apontado a nós,
culpando-nos desse crime de lesa-idioma). Nas compridas e presunçosas reuniões
de escola, havendo à mão um “purista” da escrita, os outros professores
sentem-se dispensados de redigir actas ou quaisquer outros documentos — porque
só Deus sabe como é chato escrever comunicados, relatos, actas, postulados
pedagógicos, redacções… […]
[Os professores de Português] Incompreendidos tentam não
ceder ao desespero. Perderam as ilusões: estão do lado errado de uma cruzada
sem sentido. Não sabem que destino dar a tanto erro ortográfico. Eles bem que
explicam a diferença entre o “há” do verbo haver e o “à” que contrai
uma preposição com um artigo definido. Quanto à conjugação verbal, bem se
esforçam os pobres por levar os alunos a distinguir entre “abraça-se” e
“abraçasse”. É um inferno de loucos, um mundo de surdos. Ninguém é profeta na
sua terra; menos ainda na sua língua.
Aos erros escritos somam-se agora, em grande, profusa e
incontrolada abundância, os chamados erros de “ortografia oral”. De que adianta
um homem emendar “possamos” por “possamos” ou “traze-a” por “trá-la”, com a
respectiva explicação gramatical? Ao cardume dos alunos junta-se a vasta legião
dos conspiradores televisivos, radiofónicos, políticos e desportivos — numa
imensa epidemia de labregos linguísticos. Quando vejo um atleta aceder a
prestar um depoimento, fico logo em guarda: lá vem bombarda!
Ouço os yuppies empresariais,
os jovens repórteres ou certos representantes das associações de estudantes — e
é um pânico. Há tempos, em S. Bento, ao microfone de uma rádio, um rapaz de
Coimbra justificava a turbulência de uma manifestação estudantil dizendo que
“as pessoas estavam um pouco excedidas”. Mas a uma locutora desportiva ouvi eu
que aquela “era uma pista onde a prova tinha sido decorrida…”
A última geração que lê será também a última a não dar erros
ortográficos e a fechar a porta atrás de si. Há quem atribua aos escritores
toda a culpa desta decadência linguística, acusando-os de prescindir da
pontuação e de subverter a sintaxe. Pela parte que me toca, e já que não é
pecado pecar, disponho-me a ir à santa inquisição da língua explicar a minha
transgressão da norma. Sem dúvida que a minha dupla condição de professor/escritor
me levará à fogueira. Mas permitir-me-á também usar a forquilha do Diabo e rir
da gramática, do Acordo Ortográfico […]…
João de Melo
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