«A Dama das Camélias»
Conto de Alexandre Dumas Filho
674- «A DAMA DAS CAMÉLIAS»
[Excerto]
"Existia, no ano da graça de 1845, nesses anos de
abundância e de paz em que todos os dotes da inteligência, do talento, da beleza
e da fortuna aureolavam a França, uma bela e jovem mulher dotada da mais
encantadora figura, cuja simples presença fazia despertar admiração em todo
aquele que, ao vê-la pela vez primeira, não lhe conhecia o nome nem a
profissão.
Nela se conjugavam, da forma mais natural, o olhar inocente,
os modos provocantes, o andar simultaneamente petulante e honesto da mulher da
mais alta sociedade. Tinha um ar grave, o seu sorriso era senhoril, e só de
vê-la caminhar, poder-se-ia dizer o que um dia se disse de uma dama da corte:
“Evidentemente, se não é duquesa, é uma mulher de vida fácil.” Ai! Esta não era
duquesa.
De humilde nascimento, e com os dezoito anos que então
teria, precisava, na verdade, de ser bem atraente para subir tão alto e com
tanta facilidade.
Recordo-me de a ter encontrado um dia, pela primeira vez, no
abominável átrio de um teatro de Boulevard, mal iluminado e repleto dessa
multidão barulhenta que geralmente aprecia os melodramas de sensação. Viam-se
ali mais blusas que casacas, mais gorros do que chapéus de plumas, e mais
casacos coçados do que fatos novos.
Ali falava-se de tudo, de arte dramática e de batatas
fritas; das peças do Ginásio e do pão-de-ló do Ginásio. Pois quando esta mulher
apareceu à entrada daquele lugar estranho, o brilho dos seus olhos como que
impregnou de graça tanta coisa ridícula, apenas com o poder do seu olhar.
Pisava aquele soalho lamacento como se, na verdade,
atravessasse o Boulevard num dia chuvoso; erguia a saia instintivamente, para
não tocar naquela lama seca, e sem pretender mostrar – para quê? – o seu pé,
que rematava uma perna bem torneada coberta por meia de seda de ponto aberto,
miudinho.
No conjunto, a sua toilette coadunava-se bem com aquele
talhe flexível e jovem; o rosto, dum belo oval, um pouco pálido, justificava a
graça que ela derramava em redor como um suave perfume.
Entrou, pois, e atravessou, de cabeça erguida, por entre
aquela multidão assombrada.
Eu e Liszt ficamos muito surpreendidos ao vê-la sentar-se
familiarmente no banco onde estávamos, pois nunca nenhum de nós lhe tinha
falado.
Mulher espirituosa, de gosto apurado e de bom senso,
dirigiu-se logo ao grande artista, dizendo-lhe que o ouvira havia pouco e que a
sua música a deixara extasiada.
Ele, entretanto, como esses instrumentos sonoros sensíveis
ao primeiro sopro da brisa de Maio, escutava, enlevado, aquela bela linguagem
cheia de ideias, aquela língua sonora, eloquente e sonhadora ao mesmo tempo.
Com esse instinto maravilhoso de que é dotado, e essa grande
prática das mais altas esferas sociais, ele perguntava a si próprio quem seria
aquela mulher desconhecida, de modos tão familiares e tão nobres, que se lhe
dirigia assim inopinadamente e que, logo após trocarem as primeiras palavras, o
tratava com certa altivez, como se lhe tivesse sido apresentado em Londres, nas
salas da rainha ou da duquesa de Sutherland.
Entretanto, tinham ecoado na sala as três pancadas solenes
do contra-regra, e o voyeurismo esvaziara-se de toda aquela chusma de
espectadores e críticos.
A desconhecida ficara só connosco. Aproximara-se mesmo do
fogo e estendera os pés tiritantes na direcção das achas ardentes, de forma que
a podíamos apreciar à nossa vontade, desde as pregas bordadas da saia de baixo
aos caracóis do cabelo negro.
A sua mão enluvada mais parecia uma pintura; o seu lenço era
maravilhosamente ornado de fina renda; nas orelhas ostentava duas pérolas do
oriente capazes de causar inveja a uma rainha. Trazia todos esses pequenos
requintes de elegância como se tivesse nascido entre sedas e veludos, sob
qualquer tecto dourado dos bairros elegantes, com uma coroa sobre a cabeça e um
mundo de aduladores a seus pés.
Assim, o seu porte correspondia a linguagem, o seu
pensamento ao sorriso, a sua toilette à pessoa, e em vão se procuraria nas
mais altas camadas sociais uma criatura que estivesse em mais bela e mais
completa harmonia com a sua personalidade, os seus hábitos e as suas aliciantes
conversas.
Entretanto Liszt, muito espantado por encontrar tal
maravilha em semelhante lugar, entregava-se inteiramente à sua fantasia. Ele
não é apenas um grande artista, mas também um homem eloquente. Sabe falar às
mulheres, passando como elas de uma ideia à outra, e escolhendo as mais
opostas.
Adora o paradoxo, conversa em tom sério, ou burlesco, e
ser-me-ia impossível dizer com que arte, com que tacto, com que gosto infinito
ele percorreu, com essa mulher cujo nome não conhecia, todas as gamas vulgares
e todos os floreios elegantes da conversação quotidiana.
(…) Passou esse
Inverno e depois o Verão, e, no Outono seguinte outra vez, mas então em todo o
esplendor de um espectáculo de benefício, em plena ópera, vimos de súbito
abrir-se, com estrondo, um dos camarotes do proscénio, e aparecer-nos na
frente, com um ramalhete na mão, essa mesma beleza que avistáramos no
Boulevard.
Era ela!
Mas, nessa noite, o seu vestuário constituía o expoente máximo
da moda feminina, e brilhavam nela todos os esplendores da conquista.
O seu penteado era primoroso, e nos belos cabelos viam-se
diamantes e flores misturados com essa graça estudada que lhes dava o movimento
e a vida; no colo e nos braços nus ostentava colares, pulseiras e esmeraldas.
Na mão segurava um ramalhete: de que cor? Não me seria
possível dizê-lo; é necessário possuir olhos de mancebo e imaginação de criança
para distinguir a cor verdadeira de uma flor sobre a qual se debruça um rosto
formoso.
Na nossa idade, apenas atentamos na beleza da face e no
brilho do olhar, pondo-se de parte os acessórios; e se, por acaso, nos
entretemos a tirar consequências, tira-mo-las da própria pessoa, o que, na
verdade, já nos dá bastante que fazer. (…)"
Alexandre Dumas Filho
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