«O Marido Padre»
Conto de Marquês de Sade
927- «O MARIDO PADRE»
Entre a cidade de Menerbe, no condado de Avinhão, e a de
Apt, em Provença, há um pequeno convento de carmelitas isolado, denominado
Saint-Hilaire, assentado no cimo de uma montanha onde até mesmo às cabras é
difícil o pasto; esse pequeno sítio é aproximadamente como a cloaca de todas as
comunidades vizinhas aos carmelitas; ali, cada uma delas relega o que a
desonra, de onde não é difícil inferir quão puro deve ser o grupo de pessoas
que frequenta essa casa. Bêbados, devassos, sodomitas, jogadores; são esses,
mais ou menos, os nobres integrantes desse grupo, reclusos que, nesse asilo
escandaloso, o quanto podem ofertam a Deus almas que o mundo rejeita. Perto dali,
um ou dois castelos e o burgo de Menerbe, o qual se acha apenas a uma légua de
Saint-Hilaire - eis todo o mundo desses bons religiosos que, malgrado sua batina
e condição, estão, entretanto, longe de encontrar abertas todas as portas de
quantos estão à sua volta.
Havia muito o padre Gabriel, um dos santos desse
eremitério, cobiçava certa mulher de Menerbe, cujo marido, um rematado corno,
chamava-se Rodin. A mulher dele era uma moreninha, de vinte e oito anos, olhar
leviano e nádegas roliças, a qual parecia constituir em todos os aspectos lauto
banquete para um monge. No que tange ao sr. Rodin, este era homem bom,
aumentando o seu património sem dizer nada a ninguém: havia sido negociante de
panos, magistrado, e era, pois, o que se poderia chamar um burguês honesto;
contudo, não muito seguro das virtudes de sua carametade, era ele sagaz o
bastante para saber que o verdadeiro modo de se opor às enormes protuberâncias
que ornam a cabeça de um marido é dar mostras de não desconfiar de os estar
usando; estudara para tornar-se padre, falava latim como Cícero, e jogava bem
amiúde o jogo de damas com o padre Gabriel que, cortejador astuto e amável,
sabia que é preciso adular um pouco o marido de cuja mulher se deseja possuir.
Era um verdadeiro modelo dos filhos de Elias, esse padre Gabriel: dir-se-ia que
toda a raça humana podia tranquilamente contar com ele para multiplicar-se; um
legítimo fazedor de filhos, espadaúdo, cintura de uma alna, rosto perverso e
trigueiro, sobrancelhas como as de Júpiter, tendo seis pés de altura e aquilo
que é a característica principal de um carmelita, feito, conforme se diz,
segundo os moldes dos mais belos jumentos da província. A que mulher um
libertino assim não haveria de agradar soberbamente? Desse modo, esse homem se
prestava de maneira extraordinária aos propósitos da sra. Rodin, que estava
muito longe de encontrar tão sublimes qualidades no bom senhor que os pais lhe
haviam dado por esposo. Conforme já dissemos, o sr. Rodin parecia fazer vistas
grossas a tudo, sem ser, por isso, menos ciumento, nada dizendo, mas ficando
por ali, e fazendo isso nas diversas vezes em que o queriam bem longe.
Entretanto, a ocasião era boa. A ingénua Rodin simplesmente havia dito a seu
amante que apenas aguardava o momento para corresponder aos desejos que lhe
pareciam fortes demais para que continuasse a opor-lhes resistência, e padre Gabriel, por seu
turno, fizera com que a sra. Rodin percebesse que ele estava pronto a
satisfazê-la... Além disso, num breve momento em que Rodin fora obrigado a sair
, Gabriel mostrara à sua encantadora amante uma dessas coisas que fazem com que
uma mulher se decida, por mais que hesite... só faltava, portanto, a ocasião.
Num dia em que Rodin saiu para almoçar com seu amigo de Saint-Hilaire, com a
ideia de o convidar para uma caçada, e depois de ter esvaziado algumas garrafas
de vinho de Lanerte, Gabriel imaginou encontrar na circunstância o instante
propício à realização dos seus desejos.
– Oh, por Deus, senhor magistrado, -
diz o monge ao amigo - como estou contente de vos ver hoje! Não poderíeis ter
vindo num momento mais oportuno do que este; ando às voltas com um caso da
maior importância, no qual haveríeis de ser a mim de serventia sem par.
– Do
que se trata, padre?
– Conheceis Renoult, de nossa cidade. – Renoult, o
chapeleiro.
– Precisamente. – E então?
– Pois bem, esse patife me deve cem
écus, e acabo de saber que ele se acha às portas da falência; talvez agora,
enquanto vos falo, ele já tenha abandonado o Condado... preciso muitíssimo
correr até lá, mas não posso fazê-lo.
– O que vos impede?
– Minha missa, por
Deus! A missa que devo celebrar; antes a missa fosse para o diabo, e os cem
écus voltassem para o meu bolso.
– Não compreendo: não vos podem fazer um
favor?
– Oh, na verdade sim, um favor! Somos três aqui; se não celebrarmos
todos os dias três missas, o superior, que nunca as celebra, nos denunciaria à
Roma; mas existe um meio de me ajudardes, meu caro; vede se podeis fazê-lo; só
depende de vós.
– Por Deus! De bom grado! Do que se trata?
– Estou sozinho aqui
com o sacristão; as duas primeiras missas foram celebradas, nossos monges já
saíram, ninguém suspeitará do ardil; os fiéis serão poucos, alguns camponeses,
e quando muito, talvez, essa senhorazinha tão devota que mora no castelo de...
a meia légua daqui; criatura angélica que, à força da austeridade, julga poder
reparar todas as estroinices do marido; creio que me dissestes que estudastes
para ser padre.
– Certamente.
– Pois bem, deveis ter aprendido a rezar a missa.
– Faço-o como um arcebispo.
– Ó meu caro e bom amigo! - prossegue Gabriel
lançando-se ao pescoço de Rodin – são dez horas agora; por Deus, vesti meu
hábito, esperai soar a décima primeira hora; então celebrai a missa,
suplico-vos; nosso irmão sacristão é um bom diabo, e nunca nos trairá; àqueles
que julgarem não me reconhecer, dir-lhes-emos que é um novo monge, quanto aos
outros, os deixaremos em erro; correrei ao encontro de Renoult, esse velhaco,
darei cabo dele ou recuperarei meu dinheiro, estando de volta em duas horas. O
senhor me aguardará, ordenará que grelhem os linguados, preparem os ovos e
busquem o vinho; na volta, almoçaremos, e a caça... sim, meu amigo, a caça
creio que há de ser boa dessa vez: segundo se disse, viu-se pelas redondezas um
animal de chifres, por Deus! Quero que o agarremos, ainda que tenhamos de nos
defender de vinte processos do senhor da região!
– Vosso plano é bom - diz Rodin - e, para vos fazer um favor, não há, decerto, nada que eu não faça; contudo, não haveria pecado nisso?
– Vosso plano é bom - diz Rodin - e, para vos fazer um favor, não há, decerto, nada que eu não faça; contudo, não haveria pecado nisso?
– Quanto a pecados, meu amigo, nada direi;
haveria algum, talvez, em executar-se mal a coisa; porém, ao fazer isso sem que
se esteja investido de poderes para tanto, tudo o que dissestes e nada são a
mesma coisa. Acreditai em mim; sou casuísta, não há em tal conduta o que se
possa chamar pecado venial.
– Mas seria preciso repetir a liturgia?
– E como
não? Essas palavras são virtuosas apenas em nossa boca, mas também esta é
virtuosa em nós... reparai, meu amigo, que se eu pronunciasse tais palavras
deitado em cima de vossa mulher, ainda assim eu havia de metamorfosear em deus
o templo onde sacrificais... Não, não, meu caro; só nós possuímos a virtude da
transubstanciação; pronunciaríeis vinte mil vezes as palavras, e nunca faríeis
descer algo dos céus; ademais, bem amiúde connosco a cerimónia fracassa por
completo; e, aqui, é a fé que faz tudo; com um pouco de fé transportaríamos
montanhas, vós sabeis, Jesus Cristo o disse, mas quem não tem fé nada faz...
eu, por exemplo, se nas vezes em que realizo a cerimónia penso mais nas moças
ou nas mulheres da assembleia do que no diabo dessa folha de pão que revolvo em
meus dedos, acreditais que faço algo acontecer? Seria mais fácil eu crer no
Alcorão que enfiar isso na minha cabeça. Vossa missa será, portanto, quase tão
boa quanto a minha; assim, meu caro, agi sem escrúpulo, e, sobretudo, tende
coragem.
– Pelos céus, - diz Rodin - é que tenho uma fome devoradora! Ainda
faltam duas horas para o almoço!
– E o que vos impede de comer um pouco? Aqui tendes
alguma coisa.
– E a tal missa que é preciso celebrar?
– Por Deus! O que há de
mal nisso? Acreditais que Deus se há de macular mais caindo numa barriga cheia
em vez de numa vazia? O diabo me carregue se não é a mesma coisa a comida estar
em cima ou embaixo! Meu caro, se eu dissesse em Roma todas as vezes que almoço
antes de celebrar minha missa, passaria minha vida na estrada. Além disso, não
sois padre, nossas regras não vos podem constranger; ireis tão-somente dar
certa imagem da missa, não ireis celebrá-Ia; consequentemente, podereis fazer
tudo o que quiserdes antes ou depois, inclusive beijar vossa mulher, caso ela
aqui estivesse; não se trata de agir como eu; não é celebrar, nem consumar o
sacrifício.
– Prossigamos - diz Rodin - hei de fazê-lo, podeis ficar tranquilo.
– Bem - diz Gabriel, dando uma escapadela, depois de fazer boas recomendações
do amigo ao sacristão... – contai comigo, meu caro; antes de duas horas estarei
aqui – e, satisfeito, o monge vai embora. Não é difícil imaginar que ele chega
apressado à casa da mulher do magistrado; que ela se admira de vê-lo,
julgando-o em companhia de seu marido; que ela lhe pergunta a razão de visita
tão imprevista.
– Apressemos-nos, minha cara - diz o monge, esbaforido –
apressemos-nos! Temos para nós apenas um instante... um copo de vinho, e mãos à
obra!
– Mas, e quanto a meu marido?
– Ele celebra a missa.
– Celebra a missa?
–
Pelo sangue de Cristo, sim, mimosa – responde o carmelita, atirando a sra.
Rodin ao leito – sim, alma pura, fiz de seu marido um padre, e, enquanto o
farsante celebra um mistério divino, apressemo-nos a levar a cabo um profano...
O monge era vigoroso; a uma mulher, era difícil opor-se-lhe quando ele a
agarrava: suas razões, por sinal, eram tão convincentes... ele se põe a
persuadir a sra. Rodin, e, não se cansando de fazê-lo a uma jovem lasciva de
vinte e oito anos, com um temperamento típico da gente de Provença, repete
algumas vezes suas demonstrações.
– Mas, meu anjo – diz, enfim, a beldade,
perfeitamente persuadida – sabeis que se esgota o tempo... devemos nos separar:
se nossos prazeres devem durar apenas o tempo de uma missa, talvez ele já
esteja há muito no ite missa est.
– Não, não, minha querida – diz o carmelita,
apresentando outro argumento à sra. Rodin –, deixai estar, meu coração, temos
todo o tempo do mundo! Uma vez mais, minha cara amiga, uma vez mais! Esses
noviços não vão tão rápido quanto nós... uma vez mais, vos peço! Apostaria que
o corno ainda não ergueu a hóstia consagrada. Todavia, mistério foi que se
despedissem, não sem promessas de se reverem; tracejaram novos ardis, e Gabriel
foi encontrar-se com Rodin; este havia celebrado a missa tão bem quanto um
bispo.
– Apenas o quod aures – diz ele – embaraçou-me um pouco; eu queria comer
em vez de beber, mas o sacristão fez com que eu me recompusesse; e quanto aos
cem écus, padre?
– Recuperei-os, meu filho; o patife quis resistir, peguei de
um forcado, dei-lhe umas pauladas, juro-vos, na cabeça e noutras partes.
Entretanto, a diversão termina; nossos dois amigos vão à caça e, ao regressar,
Rodin conta à sua mulher o favor que prestou a Gabriel.
– Celebrei a missa –
dizia o grande tolo, rindo com todas as forças – sim, pelo corpo de Cristo! Eu
celebrava a missa como um verdadeiro vigário, enquanto nosso amigo media as
espáduas de Renoult com um forcado... Ele dava com a vara; que dizeis disso,
minha vida? Colocava galhos na fronte; ah! boa e querida mãezinha! como essa
história é engraçada, e como os cornos me fazem rir! E vós, minha amiga, o que
fazíeis enquanto eu celebrava a missa?
– Ah! meu amigo – responde a mulher –
parecia inspiração dos céus! Observai de que modo nos ocupavam de todo, a um e
a outro, as coisas do céu, sem que disso suspeitássemos; enquanto celebráveis a
missa, eu entoava essa bela oração que a Virgem dirige a Gabriel quando este
fora anunciar-lhe que ela ficaria grávida pela intervenção do Espírito Santo.
Assim seja, meu amigo! Seremos salvos, com toda certeza, enquanto acções tão
boas nos ocuparem a ambos ao mesmo tempo.
Marquês de Sade
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