«A Canção de Marchar»
Conto de Herta Muller
941- «A CANÇÃO DE MACHAR»
Sempre que o domingo, conforme dizia papá, chegava ao céu,
papá encontrava esses estilhaços na sopa. Papá, na condição de herói alemão da
guerra, tinha três deles no pulmão. Eles se mudavam de um lugar a outro. Papá
tinha medo de que um dia se mudassem para o coração. Aí será o fim, disse papá.
Um dia, os estilhaços chegaram ao rosto de papá, e papá não
fez a barba durante vários dias.
Quando eu olhava, papá punha a colher sobre os estilhaços ou
enterrava-os debaixo de um bolinho de batata ou de um pedaço de legume. Na hora
de lavar a louça, os estilhaços tiniam em seu prato.
Um dia nós estávamos visitando a irmã de papá e ela serviu
uma sopa rala. Papá mais uma vez encontrou os estilhaços em seu prato. E como
não pôde enterrá-los debaixo de um bolinho de batata ou de um pedaço de legume,
papá engoliu os estilhaços. Todos haviam acabado com a sopa de seus pratos e
elogiado os dotes culinários de minha tia.
Depois da refeição as mulheres dançaram umas com as outras. Minha mãe, pequena e seca, dançava, suando, com minha tia gorda. A irmã de meu pai ria, e suas bochechas tremiam o tempo todo.
Os homens haviam ficado à mesa e cantavam canções de guerra
alemãs. Quando as mulheres passavam por eles dançando, os homens davam palmadas
em suas bundas grossas e saltitantes. As mulheres riam alto, davam passos de
dança ainda mais saltitantes e movimentavam os braços para cima e para baixo.
Papá seguia o compasso, batendo com sua mão imensa sobre o tampo da mesa:
"E minha noiva, a Loiva, ela é igualzinha a mim".
Quando estava anoitecendo, papá se levantou e cantou, em pé
e com os lábios tremebundos e os olhos vermelhos, a canção de marchar. Minhas
tias balançavam as pequenas cabeças e tinham os olhos húmidos.
Na terceira estrofe papá se curvou de dor.
Desde aquele dia nós íamos todos os anos visitar a irmã de
papá e nos era servida uma sopa rala. Depois da refeição as mulheres dançavam
umas com as outras. Minha mãe ficava sempre sentada, pálida e passando frio, a
um canto da sala. Seus olhos ficavam molhados e ela voltava a puxar de volta à
testa as lágrimas tépidas que insistiam em forçar passagem através de seu
nariz. Ela embolava seu lenço na mão congelada, soluçava, dizendo que meu pai
era inesquecível, que ele continuava sendo o mesmo para ela. Também a irmã de
meu pai afundava em uma cadeira e chorava longas frases. E suas bochechas
tremiam nas palavras afogadas.
Os homens que haviam ficado à mesa cantavam canções de
guerra. Sempre, quando anoitecia, eles se levantavam. Ficavam parados em volta
da mesa. De seus olhos vermelhos, um brilho profundamente vermelho se deitava
sobre a toalha de mesa, entre suas grandes mãos. Eles olhavam paralisados
dentro desse brilho vermelho e cantavam, com lábios tremebundos, a canção de
marchar.
Todos os anos um deles se curvava de dor na terceira estrofe
e morria.
No ano passado nós mais uma vez estávamos visitando a irmã de papá e nos foi servida uma sopa rala. Depois da refeição as mulheres se levantaram e a mesa estava vazia. Cada uma das tias sentou-se, pálida e passando frio, a um canto da sala e chorou, pressionando o lenço sobre as lágrimas tépidas, sobre o rosto, e soluçou dizendo que seu marido era inesquecível e continuava sendo o mesmo para ela.
Quando estava anoitecendo as mulheres se levantaram e
puseram-se em volta da mesa. E através do vão da porta do armário semifechada,
soou a fita com a canção de marchar. Minhas tias ficaram paradas, imóveis e
mudas. Na segunda estrofe minha mãe pequena e seca cantarolou junto, sem abrir
a boca. Na comissura de seus lábios movia-se uma sombra fraca. Quando chegaram
à terceira estrofe, a irmã gorda de papá cantarolou junto, de boca fechada. A
canção tremeu em suas bochechas e sua testa estava branca.
Na quarta estrofe a minha tia mais gorda cantarolou junto.
Ela respirava profundamente em meio à canção e sobre seus seios os botões em
suas molduras finas e douradas brilhava como se fossem medalhas.
Quando a canção chegou ao fim, a irmã de papá estava diante
do armário. Suas mãos estavam pesadas da luz do crepúsculo, e com as pontas
mudas dos dedos ela fechou a porta do armário.
O cantarolar ainda pairou por longo tempo no ar da sala. O
cantarolar já estava monótono e cansado. E ele era ilimitado no crepúsculo.
Herta Muller
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