«Um Coração Simples», por Gustave Flaubert.
II Capítulo - OUTROS CONTOS
«Um Coração Simples»
Conto de Gustave Flaubert
934- «UM CORAÇÃO SIMPLES»
III
Uma vez feita, à porta, uma genuflexão, ela avançava sob a
alta nave entre as duas fileiras de cadeiras, abria o banco da sra. Aubain,
sentava-se e deixava os olhos vagarem à sua volta.
Os rapazes à direita, as moças à esquerda ocupavam a estala
do coro; o pároco permanecia de pé perto da estante do coro; em um vitral da
abside, o Espírito Santo se elevava sobre a Virgem; um outro mostrava-a de
joelhos diante do Menino Jesus e, atrás do tabernáculo, um grupo em madeira
representava São Miguel subjugando o dragão.
De início, o padre fez um resumo da História Sagrada. Ela
acreditava ver o paraíso, o dilúvio, a torre de Babel, as cidades completamente
em chamas, pessoas que morriam, ídolos derrubados; e guardava desse assombro o
respeito pelo Altíssimo e o temor de sua cólera. Depois, chorou ao ouvir a
Paixão. Por que o haviam crucificado, ele que amava as crianças, alimentava as
multidões, curava os cegos e quisera, por bondade, nascer entre os pobres,
sobre o esterco de um estábulo? A semeadura, a colheita, o lagar, todas essas
coisas familiares de que fala o Evangelho, encontravam-se em sua vida; a
passagem de Deus as havia santificado; e ela sentia mais afecto pelos cordeiros
por amor ao Cordeiro, e pelas pombas, por causa do Espírito Santo.
Era-lhe difícil imaginar sua pessoa; já que não era apenas
uma ave, mas ainda um fogo e, outras vezes, um sopro. Talvez seja sua luz que
paira à noite sobre a margem dos pântanos, sua respiração que empurra as
nuvens, sua voz que torna os sinos harmoniosos; e ela se estendia em uma
adoração, gozando o frescor das paredes e a tranquilidade da igreja.
Quanto aos dogmas, não compreendia absolutamente nada, nem
mesmo se esforçava para compreendê-los. O padre discorria, as crianças
recitavam, ela acabava por adormecer; e acordava de repente, quando os outros,
ao saírem, faziam soar os tamancos sobre o piso.
Foi dessa maneira, de tanto ouvi-lo, que aprendeu o
catecismo, uma vez que sua educação religiosa tinha sido negligenciada na
juventude; e desde aquele momento, imitava todas as práticas de Virgínia,
jejuando como ela, confessando-se com ela. Para a festa de Corpos Christi
fizeram juntas um andor.
A primeira comunhão atormentava-a por antecipação. Preocupou-se com os sapatos, o terço, o livro, as luvas. Com que tremor não ajudou a mãe a vesti-la!
Durante toda a missa, sentiu uma angústia. O Bourais
escondia-lhe um lado do coro; mas logo à frente o bando de virgens usando
coroas brancas sobre os véus abaixados formavam como que um campo de neve; e
reconhecia de longe a menina querida pelo pescoço fino e a atitude recolhida. O
sino tocou. As cabeças se curvaram; fez-se silêncio. Ao som do órgão, os
cantores e a multidão entoaram o Agnus Dei; então começou o desfile dos
meninos; e, depois deles, as meninas se levantaram. Passo a passo e de mãos
juntas andavam em direção ao altar todo iluminado, ajoelhavam-se no primeiro
degrau, recebiam sucessivamente a hóstia e, na mesma ordem, voltavam aos seus
genuflexórios. Quando foi a vez de Virgínia, Felicidade debruçou-se para vê-la
e, com a imaginação dos verdadeiros afetos, parecia ser ela mesma aquela
criança; aquele rosto se tornava seu, aquele vestido a vestia, aquele coração
batia em seu peito; no momento de abrir a boca, fechando as pálpebras, estava a
ponto de desmaiar.
No dia seguinte, logo cedo, apresentou-se na sacristia para
que o padre lhe desse a comunhão. Recebeu-a devotamente, mas não experimentou
as mesmas delícias. A sra. Aubain queria tornar sua filha uma pessoa perfeita
e, como Guyot não pudesse lhe ensinar inglês e tampouco música, resolveu
colocá-la em um pensionato nas Ursulinas de Honfleur.
A criança não fez nenhuma objeção. Felicidade suspirava,
julgando a senhora insensível. Depois considerou que talvez a sua patroa
tivesse razão. Todas essas coisas ultrapassavam sua competência.
Um dia, afinal, uma velha traquitana parou em frente à porta
e dela desceu uma religiosa que vinha buscar a senhorita. Felicidade pôs a
bagagem no carro, fez recomendações ao cocheiro e colocou no baú seis potes de
doces e uma dúzia de peras com um ramalhete de violetas.
Virgínia, no último momento, foi tomada por um grande choro;
abraçava a mãe que a beijava no rosto, repetindo:
— Vamos! Coragem! Coragem!
O degrau foi levantado e o carro partiu.
Então, a sra. Aubain teve um desfalecimento e à noite todos
os amigos — o casal Lormeau, a sra. Lechaptois, as senhoritas Rochefeuille, o
sr. de Houppeville e Bourais — apareceram para consolá-la.
De início, a privação de sua filha foi muito dolorosa. Mas
três vezes por semana recebia uma carta, nos demais dias escrevia-lhe, passeava
no quintal, lia um pouco e, dessa forma, preenchia o vazio das horas.
De manhã, por força do hábito, Felicidade entrava no quarto
de Virgínia e olhava as paredes. Sentia falta de pentear os seus cabelos,
amarrar-lhe as botinas, colocá-la na cama, — e de ver continuamente seu
delicado rosto, de segurá-la pela mão quando saíam juntas. Em sua ociosidade,
tentou fazer rendas. Os dedos pesados demais rompiam os fios; não ouvia nada,
perdera o sono, segundo sua palavra, estava “minada”.
Para “se distrair”, pediu a permissão para receber seu
sobrinho Vítor.
Ele chegava aos domingos após a missa, com as faces rosadas,
o peito nu e cheirando aos campos que atravessara. Imediatamente ela botava a
mesa. Almoçavam um diante do outro e, comendo ela o menos possível para evitar
as despesas, empanturrava-o de tal maneira que ele acabava por adormecer. Ao
primeiro toque das vésperas, ela o acordava, escovava suas calças, apertava-lhe
a gravata e dirigia-se à igreja, apoiada em seu braço com um orgulho maternal.
Seus pais sempre o encarregavam de conseguir alguma coisa,
fosse um pacote de açúcar, sabonete, aguardente, às vezes até mesmo dinheiro.
Trazia suas roupas velhas para remendar; e ela aceitava esse trabalho, feliz
por haver uma oportunidade que o forçasse a voltar.
No mês de Agosto, seu pai enviou-o à marinha.
Era época de férias. A chegada das crianças consolou-a. Mas
Paulo tornara-se caprichoso e Virgínia não tinha mais idade para ser tratada
por “você”, o que colocava um constrangimento, uma barreira entre elas.
Vítor foi sucessivamente a Morlaix, Dunkerque e Brighton; no
regresso de cada viagem ele lhe trazia um presente. Da primeira vez, foi uma
caixa de conchas; da segunda, uma xícara de café; da terceira, um grande boneco
de pão de mel. Estava tornando-se belo, era magro, tinha um bigodinho, olhos
sãos e francos e um pequeno chapéu de couro, que usava para trás como um
piloto. Divertia-a contando histórias repletas de termos de marinheiro.
Em uma segunda-feira, 14 de julho de 1819 (ela não esqueceu
a data), Vítor anunciou que havia sido recrutado para uma longa viagem e que
dali a duas noites, com o navio de Honfleur, iria juntar-se à galé, que deveria
partir do porto do Havre em breve. Ele talvez ficasse fora por dois anos.
A perspectiva de tal ausência deixou Felicidade desolada; e,
para ainda lhe dizer adeus, na quarta-feira à noite, após o jantar da senhora,
vestiu as galochas e percorreu as quatro léguas que separavam Pont-l’Évêque de
Honfleur.
Chegando diante do Calvário, em vez de pegar a esquerda,
pegou a direita, perdeu-se nos canteiros de obras, voltou para trás; as pessoas
que abordava mandavam-na apressar-se. Ela deu a volta na doca repleta de
navios, batia nas amarras; depois o terreno se inclinou, as luzes se
entrecruzaram e ela acreditou estar louca, avistando cavalos no céu.
À margem do cais, outros relinchavam assustados com o mar.
Uma talha, que os levantava, desceu-os no barco onde os viajantes se
acotovelavam entre os barris de sidra, os cestos de queijo, os sacos de grãos;
ouvia-se o barulho das galinhas, o capitão blasfemava e um grumete permanecia
apoiado ao turco da embarcação, indiferente a tudo aquilo. Felicidade, que não
o reconhecera, gritou:
— Vítor!
Ele levantou a cabeça; ela avançou quando, de repente,
retiraram a escada.
O navio, que mulheres cantando puxavam pelas cordas, deixou
o porto. A carcaça estalava, as ondas pesadas fustigavam a proa. A vela virara,
não se via mais ninguém; e, sobre o mar prateado pela lua, o navio deixou uma
mancha negra que se ia empalidecendo, embrenhou-se nas águas, desapareceu.
— Felicidade, ao passar perto do Calvário, quis recomendar a
Deus o que mais amava; e rezou muito tempo de pé, com as faces banhadas em
lágrimas, os olhos em direcção às nuvens. A cidade dormia, os aduaneiros
passeavam; e a água caía sem parar pelos buracos da eclusa com um barulho de
torrente. Soaram duas horas.
O locutório não abriria antes do amanhecer. Um atraso,
certamente, deixaria a senhora contrariada e, apesar do desejo de beijar a
outra criança, ela voltou. As moças do albergue despertavam quando ela entrou
em Pont-l’Évêque.
O pobre rapaz durante meses iria então vaguear sobre as
ondas! Suas viagens precedentes não a haviam assustado. Da Inglaterra e da
Bretanha podia-se voltar; mas a América, as Colónias, as Ilhas, aquilo ficava
perdido em uma região incerta, do outro lado do mundo.
Desde então, Felicidade pensou exclusivamente em seu
sobrinho. Nos dias de sol, atormentava-se com a sede; quando caía um temporal,
temia os raios por ele. Escutando o vento que troava na chaminé e varria as
ardósias, via-o batido pela mesma tempestade, no topo de um mastro despedaçado,
com o corpo todo para trás, sob um lençol e espuma; ou então — lembranças do
livro de geografia estampas — ele era devorado pelos selvagens, aprisionado
pelos macacos em uma floresta, morria ao longo de uma praia deserta. E jamais
falou de suas inquietudes.
A sra. Aubain tinha outras pela filha.
As freiras achavam que ela era afectuosa, mas delicada. A
mínima emoção deixava-a nervosa. Era preciso largar o piano.
A mãe exigia do convento uma correspondência regular. Numa
manhã em que o carteiro não viera, impacientou-se e andava pela sala, da
poltrona até a janela. Era realmente extraordinário! quatro dias, sem notícias!
Para que ela se consolasse com o exemplo, Felicidade
disse-lhe:
— E eu, senhora, já faz seis meses que não recebo nada!...
— Mas de quem?...
A criada replicou suavemente:
— Mas ... de meu sobrinho!
— Ah! seu sobrinho! — E, dando de ombros, a sra. Aubain
retomou seu passo, o que queria dizer: “Eu nem penso nele!... Além disso, pouco
me importa! Um grumete, um miserável, grande coisa!... Enquanto que minha
filha... Imagine só!...
Felicidade, embora crescida em meio à crueldade, indignou-se
com a senhora, depois esqueceu.
Parecia-lhe fácil perder a cabeça em se tratando da menina.
As duas crianças tinham uma importância igual; um lugar em
seu coração as unia e seus destinos deviam ser os mesmos.
O farmacêutico contou-lhe que o barco de Vítor chegara a
Havana. Lera essa informação em uma gazeta.
Por conta dos charutos, ela imaginava Havana como um país
onde não se fazia outra coisa senão fumar, e Vítor circulava entre os negros em
uma nuvem de tabaco. Podia-se “em caso de necessidade” voltar de lá por terra?
A que distância ficava de Pont-l’Évêque? Para sabê-lo, interrogou o sr.
Bourais.
Ele pegou o atlas, depois começou explicações sobre longitudes;
e estampava no rosto um grande sorriso pedante diante do pasmo de Felicidade.
Por fim, com sua lapiseira, indicou nos recortes de uma mancha oval um ponto
negro, imperceptível, acrescentando:
— Aqui está.
Ela se debruçou sobre o mapa; aquela malha de linhas
coloridas cansava a vista, sem lhe ensinar coisa alguma; e a Bourais, o qual
insistia que lhe dissesse o que a perturbava, pediu que lhe mostrasse a casa
onde morava Vítor.
Bourais levantou os braços, espirrou, riu a valer; tamanha
candura excitava sua alegria; e Felicidade não compreendia o motivo, — ela que
esperava talvez ver até o retrato do sobrinho, de tal modo sua inteligência era
limitada!
Foi após quinze dias que Liébard, na hora do mercado, como
de costume, entrou na cozinha e entregou-lhe uma carta enviada pelo cunhado.
Uma vez que nenhum dos dois sabia ler, ela recorreu à patroa.
A sra. Aubain, que contava as malhas de um tricô, colocou-o
de lado, deslacrou a carta, estremeceu e, com uma voz baixa, um olhar profundo:
— É uma desgraça... que lhe é anunciada. Seu sobrinho...
Morrera. Não estava escrito mais nada.
Felicidade caiu sobre uma cadeira, apoiando a cabeça na
parede e fechou as pálpebras, que, de repente, tornaram-se rosadas. Depois, com
a fronte baixa, as mãos caídas, o olhar fixo, repetia em intervalos:
— Pobre menino! Pobre menino!
Liébard via-a soltando suspiros. A sra. Aubain tremia um
pouco.
Ela lhe propôs ir ver a irmã em Trouville.
Felicidade respondeu, com um gesto, que não era preciso.
Fez-se silêncio. Liébard, homem simples, julgou conveniente
se retirar.
Então ela disse:
— Para eles, isso não significou nada!
Sua cabeça baixou; e maquinalmente ela erguia, de tempos em
tempos, as longas agulhas sobre a mesa de costura.
Algumas mulheres passaram no pátio com uma padiola de onde
gotejava a roupa.
Vendo-as pela janela, lembrou-se da roupa lavada; tendo-a
deixado de molho no dia anterior, precisava hoje enxaguá-la; e saiu do
aposento.
A tábua de bater roupa e a tina estavam nos limites do
Toucques. Jogou sobre o talude uma pilha de camisas, arregaçou as mangas, pegou
a tábua de bater; e os fortes golpes que dava eram ouvidos nos outros quintais
ao lado. Os campos estavam vazios, o vento agitava o riacho; ao fundo, a relva
alta se inclinava sobre ele como cabeleiras de cadáveres flutuando na água.
Reteve sua dor, até a noite foi muito corajosa; mas, em seu quarto, jogou-se de
ventre sobre o colchão, com o rosto no travesseiro e os dois punhos contra as
têmporas.
Muito depois, pelo próprio capitão de Vítor, conheceu as
circunstâncias de seu fim.
Haviam-no sangrado demais no hospital, por causa da febre
amarela. Quatro médicos ocuparam-se dele ao mesmo tempo. Morreu imediatamente e
o médico chefe dissera:
— Bem! Mais um!
Os pais sempre o tinham tratado com crueldade. Preferiu não
os rever; e eles não tentaram nenhuma aproximação, por esquecimento ou por
endurecimento dos miseráveis.
Virgínia enfraquecia.
Sufocações, tosse, uma febre contínua e marcas na face
revelavam uma enfermidade profunda. O dr. Poupart aconselhara uma estada na
Provence. A sra. Aubain decidiu-se e teria imediatamente trazido sua filha para
casa, se não fosse pelo clima de Pont-l’Évêque.
Fez um trato com um dono de carros que a levava ao convento
todas as terças-feiras. Há no jardim um terraço de onde se descobre o Sena. Ali
Virgínia passeava de braços dados com ela sobre as folhas caídas das videiras.
Às vezes o sol atravessando as nuvens forçava-a a piscar, en-quanto olhava as
velas ao longe e todo o horizonte, desde o castelo de Tancarville até o farol
do Havre. Em seguida repousavam sob o caramanchão. Sua mãe providenciara um
pequeno barril de excelente vinho de Málaga; e rindo com a idéia de ficar
levemente embriagada, bebia dois dedos, não mais.
Recobrou forças. O outono passou suavemente. Felicidade
tranquilizava a sra. Aubain. Mas, certa noite, quando fora aos arredores fazer
compras, encontrou à porta o cabriolé do sr. Poupart; e ele estava no
vestíbulo. A sra. Aubain amarrava o chapéu.
— Dê-me meu aquecedor, minha bolsa, minhas luvas. Ande, mais
rápido!
Virgínia tinha uma fluxão do peito. Talvez fosse grave.
— Ainda não! — disse o médico; e ambos subiram no carro, sob
os flocos de neve que turbilhavam.
A noite estava por chegar. Fazia muito frio.
Felicidade precipitou-se para a igreja para acender uma vela.
Depois correu atrás do cabriolé, que alcançou uma hora mais tarde, saltou
ligeiramente por trás, segurando-se nas barras, quando lhe veio um pensamento:
“O pátio não estava fechado! e se entrassem ladrões?” E ela desceu.
No dia seguinte, logo de madrugada, apareceu na casa do
médico. Ele tinha chegado e saído novamente para o campo. Depois ela permaneceu
no albergue, acreditando que algum desconhecido lhe entregaria uma carta. Por
fim, ao amanhecer, pegou a diligência de Lisieux.
O convento encontrava-se no fim de uma ruela íngreme.
Aproximadamente no meio, ela ouviu sons estranhos, um toque de finados. “É para
outra pessoa”, pensou ela; e Felicidade puxou violentamente a aldrava.
Ao cabo de alguns minutos, chinelos arrastaram-se, a porta
entreabriu-se e uma religiosa apareceu.
A freira com um ar de compunção disse que “ela acabara de
falecer”. Ao mesmo tempo o sino fúnebre de São Leonardo tocou.
Felicidade chegou ao segundo andar.
Já na soleira do quarto, viu Virgínia estendida de costas,
com as mãos juntas, a boca aberta e a cabeça para trás sob uma cruz negra que
se inclinava sobre ela, entre as cortinas imóveis, menos pálidas que seu rosto.
A sra. Aubain, aos pés do leito que abraçava, soluçava de agonia. A madre
superiora estava de pé à direita: Três candelabros sobre a cómoda faziam
manchas vermelhas e a névoa esbranquiçava as janelas. Algumas religiosas
retiraram a sra. Aubain.
Durante duas noites, Felicidade não deixou a morta. Repetia
as mesmas preces, aspergia água benta sobre os lençóis, voltava a sentar-se e
contemplava-a. Ao final da primeira noite, notou que o rosto havia amarelado,
os lábios azulado, o nariz afinava-se, os olhos afundavam. Beijou-os diversas
vezes e não teria experimentado nenhuma imensa surpresa se Virgínia os houvesse
reaberto; para semelhantes almas o sobrenatural é muito simples. Fez sua
toalete, envolveu-a no lençol, desceu-a para o esquife, colocou-lhe uma coroa,
estendeu seus cabelos. Eram louros e de extraordinário comprimento para sua
idade. Felicidade cortou uma grande mecha, cuja metade deixou deslizar dentro
do peito, decidida a jamais dela se separar.
O corpo foi levado a Pont-l’Évêque, seguindo as intenções da
sra. Aubain, que seguia o féretro em um carro fechado.
Após a missa foram necessárias ainda quatro horas para
alcançar o cemitério. Paulo andava à frente e soluçava. O sr. Bourais vinha
atrás, depois os principais habitantes, as mulheres cobertas de mantas negras e
Felicidade. Sonhava com seu sobrinho e por não haver podido lhe render suas
honrarias, sentia um acréscimo em sua tristeza, como se o estivessem enterrando
com a outra.
O desespero da sra. Aubain foi ilimitado.
Primeiro, revoltou-se contra Deus, julgando injusto de sua
parte ter levado sua filha, — ela que jamais fizera mal algum e cuja
consciência era tão pura! Mas não! ela deveria tê-la levado ao Sul. Outros
médicos a teriam salvado! Acusava-se, queria juntar-se a ela, gritava de
angústia no meio dos sonhos. Um deles, sobretudo, obcecava-a. Seu marido,
vestido como um marinheiro, voltava de uma longa viagem e dizia-lhe chorando,
que havia recebido a ordem de levar Virgínia. Então, planearam juntos de
encontrar um esconderijo em alguma parte.
Certa vez, voltou do quintal, transtornada. Havia pouco (ela
mostrava o lugar) o pai e a filha tinham-lhe aparecido um após o outro e não
faziam nada; observavam-na.
Durante vários meses, permaneceu no quarto, inerte.
Felicidade reprimia-a delicadamente; era preciso conservar-se pelo filho e pela
outra, em memória “dela”.
— Ela? — repetia a sra. Aubain, como que acordando. — Ah!
sim!... sim!... Você não esquece mesmo! — Alusão ao cemitério que lhe haviam
proibido escrupulosamente.
Felicidade lá ia todos os dias.
Às quatro horas precisamente, passava ao longo das casas,
subia a encosta, abria a grade e chegava à tumba de Virgínia. Era uma pequena
coluna de mármore rosa com uma laje por baixo e correntes em volta circundando
um pequeno jardim. Os canteiros desapareciam sob uma cobertura de flores.
Regava as folhas, renovava a areia, ajoelhava-se para melhor trabalhar a terra.
A sra. Aubain, quando podia vir, sentia um alívio, uma espécie de consolo.
Depois os anos passaram, todos iguais e sem outros episódios senão a volta das
grandes festas: Páscoa, Assunção, Todos os Santos. Alguns acontecimentos no
interior da casa marcaram data, a que se reportavam mais tarde. Assim, em 1825,
dois vidraceiros pintaram o vestíbulo; em 1827 uma parte do teto, ao cair no
pátio, quase matou um homem. No verão de 1828, foi a vez de a senhora oferecer
o pão bento; Bourais, nessa época, ausentou-se misteriosamente; e os antigos
conhecidos aos poucos se foram: Guyot, Liébard, a sra. Léchaptois, Robelin, o
tio Gremanville, paralítico havia tempos.
Certa noite, o condutor da mala-posta anunciou em
Pont-l’Évêque a Revolução de Julho. Um novo subprefeito, poucos dias depois,
foi nomeado: o barão de Larsonnière, ex-cônsul na América e que tinha em casa,
além da mulher, a cunhada com três senhoritas, já bem grandes. Eram vistas na
relva vestidas de blusas esvoaçantes; possuíam um negro e um papagaio. A sra.
Aubain recebeu a visita deles e não se esqueceu de fazer a sua. Por mais longe
que fosse de onde aparecessem, Felicidade corria para avisá-la. Mas uma coisa
apenas era capaz de comovê-la, as cartas de seu filho.
Ele não podia seguir nenhuma profissão, por estar absorvido
nos botequins. Ela lhe pagava as dívidas, ele fazia outras; e os suspiros que
soltava a sra. Aubain, tricotando perto da janela, chegavam até Felicidade, que
girava a roca na cozinha.
Elas passeavam juntas ao longo da fileira de árvores e
falavam sempre de Virgínia, perguntando-se se tal coisa lhe teria agradado, em
tal ocasião o que provavelmente teria dito.
Todos os seus pequenos objectos ocupavam um armário no quarto
com duas camas. A sra. Aubain os inspeccionava o menos possível. Certo dia de
verão, resignou-se; e borboletas saíram voando do armário.
Os vestidos alinhavam-se sob uma prateleira onde havia três
bonecas, arcos, uma casinha, a bacia de mãos de que se servia. Elas retiraram
igualmente os saiotes, as meias, os lenços e estenderam-nos sobre os dois
leitos antes de dobrá-los novamente. O sol iluminava aqueles pobres objectos,
fazendo aparecer as manchas e as dobras formadas pelo movimento do corpo. O ar
estava quente e azul, um melro chilreou, tudo parecia viver em uma profunda
tranquilidade. Reencontraram um pequeno chapéu de pelúcia, com longos pelos, de
cor marrom; mas estava todo comido por traças. Fixaram os olhos uma na outra,
eles se encheram de lágrimas; por fim a patroa abriu os braços, a criada neles
se jogou; e abraçaram-se, satisfazendo a dor te em um abraço que as igualava.
Foi a primeira vez de suas vidas, pois a sra. Aubain não era
uma pessoa de natureza expansiva.
Felicidade ficou-lhe grata como por uma caridade e doravante adorava-a com uma devoção bestial e uma veneração religiosa.
A bondade de seu coração desenvolveu-se.
Quando ouvia na rua os tambores de um regimento em marcha
colocava-se à porta com uma moringa de sidra e oferecia de beber aos soldados.
Cuidava dos doentes de cólera. Protegia os poloneses; e
houve mesmo um que declarou querer se casar com ela. Mas eles se desentenderam;
pois certa manhã, ao voltar da igreja, encontrou-o na cozinha, onde entrara e
preparara um molho vinagrete que comia tranquilamente.
Depois dos poloneses, foi a vez do velho Colmiche, conhecido por cometer
atrocidades em 93. Vivia à margem do riacho, nos escombros de uma pocilga. Os
meninos observavam-no pelas fendas do muro e atiravam-lhe pedregulhos que lhe
caíam sobre a enxerga, onde jazia, continuamente abalado por um catarro, com os
cabelos muito longos, as pálpebras vermelhas e no braço um tumor maior que a
cabeça. Ela lhe providenciou roupas, tratou de limpar aquele chiqueiro, sonhava
em instalá-lo na casa do forno, sem que isso incomodasse a senhora. Quando o
câncer rebentou, ela o tratava todos os dias, algumas vezes trazia-lhe um pouco
de bolo, sentava-o no sol sobre um feixe de palha; e o pobre velho, babando e
tremendo, agradecia-lhe com a voz apagada, temendo perdê-la, estendia as mãos
assim que a via afastar-se. Ele morreu; ela encomendou uma missa para o
descanso de sua alma.
Naquele dia teve uma grande felicidade: na hora do jantar, o
negro da sra. de Larsonnière apareceu segurando o papagaio na gaiola, com o
bastão, a corrente e o cadeado. Um bilhete da baronesa anunciava à sra. Aubain
que, na vez que seu marido havia sido promovido para uma prefeitura, eles
partiriam àquela noite; e ela pedia que aceitasse este pássaro como uma lembrança
e testemunho de seu respeito por ela.
Ele já ocupava há muito tempo a imaginação de Felicidade,
pois vinha da América; aquela palavra lembrava-lhe Vítor, tanto que se
informava sobre ele com o negro. Certa vez até disse:
— A senhora é que ficaria feliz em tê-lo!
O negro repetira aquela fala à sua patroa que, não podendo
levá-lo, livrou-se dele dessa maneira.
Gustave Flaubert
(Continua amanhã...)
(Continua amanhã...)
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