«Um Coração Simples», por Gustave Flaubert.
IV Capítulo - OUTROS CONTOS
«Um Coração Simples»
A Lavadeira/ Honore Daumier
936- «UM CORAÇÃO SIMPLES»
V
As pastagens exalavam o aroma do verão; moscas zumbiam; o
sol fazia brilhar o ribeirão, aquecia as ardósias. A velha Simão, de volta ao
quarto, dormia tranquilamente.
Toques de sino acordaram-na; saía-se das vésperas. O delírio
de Felicidade diminuiu. Sonhando com a procissão, ela a via, como se a tivesse
acompanhado.
Todas as crianças das escolas, os cantores e os bombeiros
andavam nas calçadas, enquanto pelo meio da rua avançavam primeiramente: o
suíço carregando a alabarda, o sacristão com uma grande cruz, o instrutor
vigiando os garotos, a religiosa inquieta com suas meninas — três das menores,
cacheadas como anjos, lançavam no ar pétalas de rosas —, o diácono, com os
braços abertos, moderando a música e dois incensadores voltando-se a cada passo
em direcção ao Santo Sacramento, que o pároco, na sua bela casula, carregava,
sob um pálio de veludo vermelho vivo, segurado por quatro membros da igreja.
Uma multidão seguia atrás, entre as toalhas brancas cobrindo o murro das casas;
e chegou ao final da ladeira.
Um suor frio molhava as têmporas de Felicidade. A Simone a
enxugava com um pano, dizendo que precisaria um dia passar por lá.
O murmúrio da multidão aumentou. Tornou-se muito forte por
um momento, distanciou-se.
Uma rajada de fuzis abalou os ladrilhos. Eram os postilhões
saudando o ostensório. Felicidade virou suas pupilas, e disse, o mais alto que
pode:
— Ele está bem? — angustiada pelo papagaio.
Sua agonia começou. E estertores, cada vez mais frequentes,
erguiam-lhe as costas. Bolhas de espuma escorriam-lhe pelo canto da boca, e
todo seu corpo tremia.
Logo se distinguiu o ronco dos oficlides, as vozes
cristalinas das crianças, a voz grave dos homens. Tudo silenciava de vez em
quando, e a batida dos passos, amortecida pelas flores, fazia o barulho de um
rebanho sobre a relva.
O pároco surgiu no pátio. A Simone subiu em uma cadeira para
alcançar o olho-de-boi, e dessa maneira dominava o andor.
Guirlandas verdes pendiam sobre o altar, ornado por um
falbalá em ponto inglês. Havia no meio um pequeno quadro contendo relíquias,
duas laranjeiras nos cantos e, em todo o comprimento, candelabros de prata e
vasos de porcelana, de onde saíam girassóis, lírios, peônias, dedaleiras,
cachos de hortênsias. Esse amontoado de cores brilhantes descia obliquamente,
do primeiro andar até o tapete, prolongando-se sobre os paralelepípedos; e
objetos estranhos atraíam os olhares. Um açucareiro de prata dourada tinha uma
coroa de violetas, pingentes em pedras de Alençon brilhavam sobre musgo, dois
biombos chineses expunham suas paisagens. Lulu, escondido sob as rosas, só
deixava ver sua testa azul, parecida com uma placa de lápis-lazúli.
Os membros da igreja, os cantores, as crianças
enfileiraram-se nos três lados do pátio. O padre subiu lentamente os degraus e
colocou sobre a renda seu grande sol de ouro que cintilava. Todos se
ajoelharam. Fez-se um grande silêncio. E os incensórios, balançados
vigorosamente, deslizavam em suas correntinhas.
Um vapor azul subiu no quarto de Felicidade. Ela avançou as
narinas, inalando-o com uma sensualidade mística; depois fechou suas pálpebras.
Seus lábios sorriam. Os movimentos de seu coração diminuíram um a um, cada vez
mais vagos, mais suaves, como uma fonte se esgota, como um eco desaparece; e
quando exalou seu último suspiro, ela acreditou ver, nos céus entreabertos, um
papagaio gigantesco, planando acima de sua cabeça.
Gustave Flaubert
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