segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

OUTROS CONTOS

«Um Coração Simples», por Gustave Flaubert.

(Por ser um pouco extenso, o conto é publicado em cinco capítulos)

«Um Coração Simples»
Conto de Gustave Flaubert

932- «UM CORAÇÃO SIMPLES»

I

Durante meio século, os burgueses de Pont-l’Évêque invejaram a Sra. Aubain por sua criada Felicidade.

Por cem francos ao ano, ela cozinhava e limpava a casa, costurava, lavava, passava, sabia arrear cavalos, engordar aves, bater a manteiga; permaneceu fiel à sua patroa, que, no entanto, não era uma pessoa agradável.

Ela esposara um belo rapaz sem fortuna, que falecera no começo de 1809, deixando-lhe duas crianças pequenas e uma quantidade considerável de dívidas. Então, vendeu seus imóveis, excepto as terras arrendadas de Toucques e de Geffosses, cujos rendimentos atingiam, no máximo, 5 mil francos, e deixou sua casa de Saint-Melaine para morar em outra menos dispendiosa que pertencera a seus ancestrais, localizada atrás do mercado.

Essa casa, revestida de ardósia, situava-se entre um beco e uma ruela que terminava no riacho. Seu interior tinha desníveis que faziam tropeçar. Um vestíbulo estreito separava a cozinha da sala onde a Sra. Aubain permanecia durante o dia, sentada em uma poltrona de palha, perto da janela. Encostadas no lambri, pintado de branco, alinhavam-se oito cadeiras de acaju. Um velho piano sustentava, sob um barómetro, um pilha piramidal de caixas variadas, algumas de papelão. Duas “bergères” em tapeçaria, ladeavam a lareira em mármore amarelo, em estilo Luís XV. O relógio, no meio, representava um templo de Vesta — e todo o ambiente cheirava um pouco a mofo, pois o piso era mais baixo do que o quintal.

No primeiro andar, havia primeiro o quarto da “senhora”, muito grande, forrado com um papel de flores desbotadas, contendo o retrato do “senhor”, de aparência janota. Ele se comunicava com um quarto menor, onde se viam duas camas de crianças sem colchões. Depois, vinha a sala de visitas, sempre fechada, cheia de móveis cobertos por lençóis. Em seguida, um corredor levava a um escritório; livros e papéis lotavam as prateleiras de uma estante que tomava três lados de uma escrivaninha grande em madeira escura. Dois painéis, por sua vez, desapareciam sob desenhos em bico de pena, paisagens a guache e gravuras de Audran, lembranças de um tempo melhor e de um luxo perdido. Uma lucarna, no segundo andar, clareava um pouco o quarto de Felicidade, com vista para os campos.

Felicidade levantava-se com a madrugada, para não perder a missa, e trabalhava até a noite, sem interrupção; depois, terminado o jantar, a louça em ordem e a porta bem fechada, ela cobria de cinzas a acha de lenha e adormecia diante da lareira com o rosário na mão. Ninguém, nas redondezas, demonstrava mais perseverança. Quanto à limpeza, o brilho de suas panelas levava ao desespero as outras criadas. Económica, ela comia com lentidão e recolhia com os dedos as migalhas de pão — um pão de doze libras, especialmente feito para ela, que durava vinte dias.

Em todas as estações do ano, ela usava um lenço indiano fixado nas costas por um alfinete, uma touca escondendo-lhe os cabelos, meias cinzas, um saiote vermelho e sobre a camisola, um avental inteiriço, como o das enfermeiras de hospital.

Seu rosto era magro e sua voz aguda. Com vinte e cinco anos, davam-lhe quarenta. A partir dos cinquenta, não aparentava mais nenhuma idade; e, sempre silenciosa, postura erecta e gestos comedidos, parecia uma mulher de madeira, funcionando de maneira automática.

Gustave Flaubert 

(Continua amanhã...)

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