«Um Coração Simples», por Gustave Flaubert.
III Capítulo - OUTROS CONTOS
«Um Coração Simples»
Conto de Gustave Flaubert
935- «UM CORAÇÃO SIMPLES»
IV
Ele se chamava Lulu. Seu corpo era verde, as pontas das asas
rosa, a fronte azul e o pescoço dourado.
Mas tinha a irritante mania de morder seu bastão, arrancava
as penas, espalhava sua sujeira, derramava a água de sua banheira; a sra.
Aubain, a quem aborrecia, deu-o para sempre para Felicidade.
Ela se ocupou a ensiná-lo; logo ele repetia: “Belo rapaz! Às
ordens, senhor! Ave Maria!” Ficava perto da porta e muitos espantavam-se que
não atendesse pelo nome de Jacquot, uma vez que todos os papagaios se chamam
Jacquot. Comparavam-no a um peru, achavam-no estúpido: tantas punhaladas para
Felicidade! Estranha obstinação de Lulu de não falar assim que o observavam!
No entanto procurava companhia; pois aos domingos, enquanto
as senhoritas Rochefeuille, o sr. de Houppeville e novos freqüentadores —
Onfroy o boticário, senhor Varin e o capitão Mathieu — jogavam sua partida de
cartas, ele batia nos vidros com as asas e agitava-se tão furiosamente, que era
impossível ouvir qualquer coisa.
O rosto de Bourais, provavelmente, parecia-lhe muito
engraçado. Logo que o via, começava a rir com todas as forças. Os estalos de sua
voz repercutiam no pátio, o eco repetia-os, os vizinhos colocavam-se às
janelas, rindo também; e, para não ser visto pelo papagaio, o sr. Bourais
passava rente ao muro, dissimulando o perfil com o chapéu, alcançava o riacho,
depois entrava pela porta do quintal; e os olhares que lançava ao pássaro não
tinham nenhuma ternura.
Lulu recebera do empregado do açougueiro um piparote, quando
se permitira afundar a cabeça em seu cesto; e desde então tratava sempre de
beliscá-lo através da camisa. Fabu ameaçava torcer-lhe o pescoço, se bem que
não fosse cruel, apesar das tatuagens nos braços e das grandes suíças. Pelo
contrário! tinha até uma afeição pelo papagaio, querendo mesmo, por brincadeira
jovial, ensinar-lhe alguns palavrões.
Felicidade, a quem estas, maneiras desagradavam, colocou-o
na cozinha. Tirou-lhe a corrente e ele circulava pela casa.
Quando descia as escadas, apoiava sobre os degraus a curva
do bico, levantava a pata direita, depois a esquerda; e ela temia que tal
ginástica lhe causasse tonturas. Ele ficou doente, não podia mais falar nem
comer. Tinha sob a língua uma membrana grossa, como às vezes a tem algumas
galinhas. Ela o curou arrancando essa película com suas unhas. O sr. Paulo,
certo dia, teve a imprudência de soprar-lhe nas narinas a fumaça de um charuto;
uma outra vez a sra. Lormeau provocou-o com a ponta de sua sombrinha, ele
engoliu o aro da mesma, por fim desapareceu.
Ela o havia colocado sobre a relva para refrescá-lo,
ausentando-se por um minuto e, quando voltou, nada do papagaio! Primeiro
procurou-o nas moitas à beira da água e sobre os telhados, sem ouvir sua patroa
que gritava:
— Tome cuidado! Você está louca! Em seguida verificou todos
os quintais de Pont-l’Évêque; e parava os passantes.
— Não viram, por acaso, meu papagaio?
— Àqueles que não conheciam o papagaio, dava uma descrição.
De repente, acreditou distinguir detrás dos moinhos, ao final das ladeiras, uma
coisa verde que esvoaçava. Mas do alto das ladeiras, nada! Um mascate lhe
afirmou que o havia encontrado agora mesmo, em Saint-Melaine, na loja da velha
Simão. Para lá ela correu. Não entendiam o que ela queria dizer. Por fim,
voltou para casa esgotada, os chinelos aos farrapos, com a morte na alma; e
sentada no meio do banco, perto da senhora, contava todas as suas peripécias,
quando um leve peso lhe pousou sobre o ombro. Lulu! Que diabos tinha ele feito?
Talvez tivesse passeado pelos arredores!
Custou-lhe recompor-se, ou melhor, não se recompôs jamais.
Como consequência de um resfriado, ela pegou uma angina; pouco
tempo depois, uma dor nos ouvidos. Três anos mais tarde, ela ficou surda; e
falava muito alto, mesmo na igreja. Ainda que seus pecados pudessem, sem
desonra para ela e sem inconveniência para o mundo, espalhar-se pelos quatro
cantos da diocese, o pároco julgou conveniente não mais ouvir sua
Zunidos ilusórios conseguiam atormentá-la. Frequentemente
sua patroa dizia:
— Meu Deus! Como você é tola!
Ela retrucava:
— Sim, senhora! — procurando alguma coisa à sua volta.
O pequeno círculo de suas ideias encolheu ainda mais e o
badalar dos sinos, o mugido dos bois, não existiam mais. Todos os seres
funcionavam com o silêncio das almas. Um único som chegava agora a seus
ouvidos, a voz do papagaio.
Como que para distraí-la, ele reproduzia o tique-taque do relógio,
o grito agudo de um vendedor de peixes, o serrote do marceneiro que morava em
frente e, ao soar da campainha, imitava a sra. Aubain: “Felicidade! A porta! A
porta!”
Mantinham diálogos, ele recitando à saciedade as três frases
de seu repertório, e ela as respondendo com palavras sem lógica, mas com as
quais seu coração se extravasava, Lulu, em seu isolamento, era quase um filho,
um amado. Ele escalava seus dedos, mordia seus lábios, agarrava-se a seu lenço;
e quando ela se debruçava inclinando a cabeça como as babás, as grandes asas de
sua toca e as asas do papagaio tremiam juntas.
Quando nuvens se acumulavam e trovões estrondavam, ele dava
gritos talvez se recordando das tempestades de sua floresta natal. O cair das
águas excitava seu delírio. Esvoaçava, desvairado subia ao teto, derrubava tudo
e pela janela ia agitar-se no quintal; mas voltava rapidamente sobre um dos
cães da lareira, e saltitando para secar as plumas, mostrava ora o rabo, ora o
bico.
Numa manhã do terrível inverno de 1837, quando ela o
colocara diante da lareira, por causa do frio, encontrou-o morto, no meio da
gaiola, com a cabeça para baixo e as garras nas barras de ferro. Uma congestão,
talvez, o matara? Ela acreditava ter sido um envenenamento pela salsa; e apesar
da ausência de qualquer prova, suas suspeitas recaíram sobre Fabu. Chorou
tanto, que sua patroa lhe disse:
— Bom! Mande empalhá-lo!
Pediu conselho ao farmacêutico, que sempre fora bom com o
papagaio.
Ele escreveu ao Havre. Um certo Fellacher encarregou-se
desse trabalho. Mas, como a diligência por vezes perdia os pacotes, ela
resolveu levá-lo ela mesma até Honfleur.
As macieiras sem folhas sucediam-se à margem do caminho.
Gelo cobria as valas. Cães latiam ao redor das casas e, com as mãos sob o
manto, seus pequenos tamancos pretos e a sacola, andava apressadamente, no meio
da rua.
Atravessou a floresta, passou Haut-Chêne, chegou a volt
Saint-Gatien.
Atrás dela, em uma nuvem de poeira uma mala-posta a todo
galope vinha violentamente, acelerada pela descida. Vendo aquela mulher que nem
se incomodava, o condutor ergueu-se por sobre a capota e o cocheiro também
gritou, enquanto os quatro cavalos, que não conseguia conter, aceleravam a
marcha; os dois primeiros roçaram-na; com uma sacudida nas rédeas, ele os jogou
para fora do caminho, mas furioso levantou o braço, e com toda a força e o
grande chicote acertou-lhe do ventre ao coque um tamanho golpe que ela caiu de
costas.
O primeiro gesto ao recuperar a consciência foi abrir o
cesto. Lulu não tinha nada, felizmente. Sentiu uma queimação na face direita;
as mãos, que a tocaram, estavam vermelhas. O sangue corria.
Sentou-se sobre os pedregulhos, limpou o rosto com o lenço,
depois comeu uma côdea de pão colocada no cesto por precaução e consolou-se de
sua ferida olhando o pássaro.
Chegando ao topo de Ecquemauville, viu as luzes de Honfleur
que cintilavam na noite como um punhado de estrelas; o mar, ao longe,
estendia-se confusamente. Então uma fraqueza fê-la parar; e a miséria de sua
infância, a decepção do primeiro amor, a partida do sobrinho, a morte de
Virgínia, como o fluxo das marés, voltaram ao mesmo tempo e, subindo-lhe pela
garganta sufocavam-na.
Depois quis falar com o capitão do barco e, sem lhe dizer o
que estava enviando, fez-lhe muitas recomendações.
Fellacher ficou por muito tempo com o papagaio. Prometia-o
sempre para a semana seguinte; ao cabo de seis meses, anunciou a remessa de um
caixote; e não se falou mais naquilo. Parecia que Lulu não voltaria jamais.
“Eles o roubaram de mim!” — pensava ela.
Finalmente ele chegou, — e esplêndido, em pé sobre um galho
de árvore, que estava parafusado a um soquete de acaju, com uma das patas no
ar, a cabeça inclinada e mordendo uma noz que o empalhador tinha dourado por
amor ao grandioso.
Ela o trancou em seu quarto.
Neste lugar, onde apenas poucos podiam entrar, havia um
clima ao mesmo tempo de capela e de bazar, de tantos objetos religiosos e
coisas heteróclitas que continha.
Um grande armário dificultava a abertura da porta. Do lado
oposto da janela, dominando o quintal, um olho-de-boi dava para o pátio; uma
mesa, perto da cama de lona, continha um pote de água, dois pentes e um cubo de
sabonete azul em um pratinho lascado. Viam-se nas paredes: terços, medalhas,
diversas Virgens, uma pia batismal talhada em uma casca de coco; sobre a cômoda
coberta com um lençol, como um altar, a caixa de conchas que Vítor lhe havia
dado; depois um regador e uma bola, cadernos, o livro de geografia em estampas,
um par de botinas; e no prego do espelho, preso pelas fitas, o chapéu de
pelúcia! Felicidade cultivava mesmo esse tipo de respeito tão distante que
guardava uma das sobrecasacas do senhor. Todas as velharias que a sra. Aubain
não queria mais, ela levava para o quarto. Assim havia flores artificiais no canto
da cômoda e o retrato do conde de Artois no vão da lucarna.
Com uma prancheta, Lulu foi instalado em um canto da lareira
que avançava para dentro do quarto. Todas as manhãs, ao levantar, ela o via na
claridade da aurora e se lembrava então dos dias passados e de ações
insignificantes em seus menores detalhes, sem dor, com toda a tranquilidade.
Por não se comunicar com ninguém, vivia em um torpor de
sonâmbulo. As procissões de Corpus Christi reanimavam-na. Ela ia até os
vizinhos pedir tochas e esteiras para embelezar os andores que passavam na rua.
Na igreja, sempre contemplava o Espírito Santo observava que
nele havia algo de similar com o papagaio. A semelhança pareceu-lhe ainda mais
evidente em uma imagem de Épinal representando o batismo de Nosso Senhor. Com
as asas de púrpura e o corpo de esmeralda era realmente o retrato de Lulu.
Tendo-o comprado pendurou-o no lugar do conde de Artois — de
maneira que, com um só olhar, via-os juntos. Associavam-se em seu pensamento, o
papagaio santificado pela relação com o Espírito Santo, que por sua vez se
tornava mais vivo a seus olhos e inteligível. O Pai para expressar-se não
deveria ter escolhido uma pomba, uma vez que esses animais não tem voz, mas
antes um dos ancestrais de Lulu. E Felicidade fazia suas preces olhando a
imagem mas, de vez em quando, virava-se um pouco em direção ao pássaro.
Ela teve vontade de entrar para as Filhas de Maria. A sra.
Aubain dissuadiu-a.
Um acontecimento considerável sucedeu: o casamento de Paulo.
Após ter sido primeiro escrivão de cartório, após ter
trabalhado no comércio, na alfândega, nas arrecadações e ter mesmo começado a
pleitear um emprego nas águas e reflorestamento, aos trinta e seis anos, de
repente por uma inspiração dos céus, descobriu seu caminho: o registro! e nele
mostrava tamanha habilidade que um aferidor ofereceu-lhe a filha,
prometendo-lhe proteção.
Paulo, agora homem sério, trouxe-a até a mãe.
Ela denegriu os hábitos de Pont-l’Évêque, agiu com ares de
princesa, ofendeu Felicidade. A sra. Aubain, assim que ela saiu, sentiu um
alívio.
Na semana seguinte, souberam da morte do sr. Bourais, na
Baixa Bretanha, em um albergue. O rumor de um suicídio acabou se confirmando;
levantaram-se dúvidas quanto a sua probidade.
A sra. Aubain conferiu suas contas e não tardou a conhecer
uma infinidade de falcatruas: desvios de pagamentos, vendas de madeira
dissimuladas, falsas quitações etc. Além do mais, tinha um filho natural e
“relações com uma certa pessoa de Dozulé”.
Essas baixezas afligiram-na muito. No mês de março de 1853,
teve uma dor no peito; sua língua parecia coberta de fumaça, as sanguessugas
não acalmaram suas sufocações; e na nona noite ela expirou tendo precisamente
setenta e dois anos.
Julgavam-na mais jovem, por causa dos cabelos castanhos,
cujos bandôs envolviam o rosto macilento, marcado pela varíola. Poucos amigos
entristeceram-se por ela, de tal forma suas maneiras eram de uma altivez que
distanciava.
Felicidade chorou-a como não se costuma chorar os patrões.
Que a senhora morresse antes dela, isso lhe perturbava as ideias, parecia-lhe
contrário à ordem natural das coisas, inadmissível, monstruoso.
Dez dias depois (o tempo de chegarem de Besançon), os
herdeiros apareceram. A nora vasculhou gavetas, escolheu alguns móveis, vendeu
os demais, depois recuperaram o registro.
A poltrona da senhora, sua mesinha redonda, o aquecedor, as
oito cadeiras, foram-se! No lugar das gravuras desenhavam-se quadrados amarelos
no meio das paredes. Eles haviam levado as duas camas e os colchões, e dentro
do armário não se via mais nenhum dos pertences de Virgínia! Felicidade subiu
os andares, ébria de tristeza.
No dia seguinte, havia sobre a porta um cartaz; o boticário
gritou-lhe aos ouvidos que a casa estava à venda.
Ela cambaleou e foi obrigada a se sentar.
O que a desolava principalmente era ter de abandonar seu
quarto, — tão cômodo para o pobre Lulu. Envolvendo-o em um olhar de angústia,
implorava ao Espírito Santo e adquiriu o hábito idólatra de dizer as preces
ajoelhada diante do papagaio. Às vezes, o sol entrando pela lucarna atingia seu
olho de vidro, fazendo jorrar um grande raio luminoso que a fazia entrar em
êxtase.
Tinha uma renda de trezentos e oitenta francos, legados pela
patroa. A horta fornecia-lhe legumes. Quanto as vestimentas, tinha com o que se
vestir até o fim de seus dias, e economizava luz, deitando-se logo ao
crepúsculo.
Ela não saía muito, a fim de evitar a loja do antiquário,
onde estavam expostos alguns dos antigos móveis. Desde seu atordoamento, puxava
uma perna; e, como suas forças minguavam, a velha Simão, que perdera tudo no
armazém, vinha todas as manhãs cortar a lenha e bombear água.
Seus olhos enfraqueceram-se. As persianas não se abriam
mais. Muitos anos se passaram. E a casa nem se alugava, nem se vendia.
Com medo de que fosse mandada embora, Felicidade não pedia
por nenhum conserto. As ripas do telhado apodreciam; durante todo um inverno a
cabeceira de sua cama ficou molhada. Depois da Páscoa, cuspiu sangue. Então a
velha Simão recorreu a um médico. Felicidade quis saber o que tinha. Mas, surda
demais para ouvir, uma única palavra chegou-lhe aos ouvidos: “pneumonia”.
Era-lhe conhecida e replicou suavemente:
— Ah! Como a senhora. — achando natural seguir a patroa.
A época dos altares aproximava-se.
O primeiro era sempre montado ao pé da encosta, o segundo na
frente do correio, o terceiro no meio da rua. Houve disputas a respeito desse
último; e os paroquianos escolheram finalmente o pátio da sra. Aubain.
As sufocações e a febre aumentavam. Felicidade
entristecia-se por nada fazer para o altar. Ao menos, se ela pudesse ter
colocado qualquer coisa sobre ele! Então pensou no papagaio. Não era
conveniente, objetaram os vizinhos. Mas o pároco deu a permissão; ela ficou tão
feliz, que lhe pediu que aceitasse, quando falecesse, Lulu, sua única riqueza.
Da terça-feira ao sábado, na véspera de Corpus Christi, ela
tossiu com mais frequência. À noite, seu rosto estava crispado, os lábios
colavam-se às gengivas, os vômitos surgiram; e no dia seguinte, ao amanhecer,
sentindo-se muito mal, mandou chamar um padre.
Três velhas rodeavam-na durante a extrema-unção. Depois
disse que precisava falar com Fabu.
Ele chegou em trajes de domingo, pouco à vontade naquela
atmosfera lúgubre.
— Perdoe-me — disse ela com um esforço para estender o braço
— Eu acreditava que fora você quem o havia matado!
O que significavam semelhantes asneiras? Ter suspeitado dele
como um assassino, um homem como ele! e indignou-se, ia fazer um alvoroço.
— Ela perdeu o juízo, vocês estão vendo!
Felicidade, vez ou outra, falava com as sombras. As velhas
afastaram-se. A Simone foi almoçar.
Um pouco mais tarde, pegou Lulu e, aproximando-o de
Felicidade:
— Vamos! Diga-lhe adeus!
Embora não fosse um cadáver, os vermes devoravam-no; uma de
suas asas estava quebrada, a estopa saía-lhe do ventre. Mas, cega agora, ela o
beijou na fronte e o mantinha encostado à face. A Simone pegou-o. de volta para
colocá-lo sobre o altar.
Gustave Flaubert
(Amanhã, V e último capítulo de «Um Coração Simples, de Gustave Flaubert)
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