quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

OUTROS CONTOS

«Um Homem não é nenhum Moiro», por Alves Redol.

«Um Homem não é nenhum Moiro»
Conto de Alves Redol

943- «UM HOMEM NÃO É NENHUM MOIRO»

O velho caminhava à sua frente pelo carril do valado, gingando com o peso do reumático, que parecia desconjuntar-lhe o corpo magrizela. Acendera o cachimbo, antes de sair da palhoça, e lá ia a fumegar, contente como um gaio, com a cana de pesca ao ombro e a caixa pintada de verde pendurada na mão. O rapaz tocava a gaita de beiços, levando a sua cana segura pelo antebraço esquerdo, e fingia-se cansado, para que o ferrador ainda se julgasse o mesmo andarilho de outros tempos.

Na véspera tinham preparado em sociedade os remelhões das minhocas, que não faltavam mesmo à porta do barracão – era dar uma enxadada e agarrar não sei quantas. O velho ensinara-lhe a preparar os anzóis e contara-lhe das suas pescas noutros tempos, quando ainda morava em Vila Franca. Sempre que podia, escapava-se para ali. Gostava da Lezíria, tanto como se ali tivesse nascido, e acabara por arranjar aquele casebre para viver com a amante. Ela não era daqueles sítios. Não sabia a sua nação, nem isso importava. Era uma mulher que lhe servia e estava tudo dito.

Iam pescar sem destino, descansar da chateza daquela vida bruta. – Gostava d’ir até ao esteiro do Ruivo, mas é longe, as pernas já não me levam até lá, disse o velho.

– Mas anda que nem um rapaz!

– Lá vens tu... Troco as minhas com as tuas, valeu?

Passaram a uma aberta, o velho farejou de um lado para o outro e achou que podiam ficar ali mesmo. Perto havia um salgueiro de sombra larga, e entre o valado e o rio surgia uma nesga de terra coberta de mostarda e de lírios brancos.

A Mariana preparara-lhes o almoço, uns fritos de bacalhau e azeitonas, e Alcides bem percebera que ela ficara radiante por estar só todo o dia. Gostava de poder espreitá-la, sem que ela soubesse, e ser capaz de compreender o motivo daquela garridice ofensiva. Provocava os homens, passando perto deles e tocando-lhes com o corpo se os via distraídos; deixava-os prenderem-lhe as mãos e beliscarem-lhe os braços e as ancas, sorrindo sempre, com os olhos a entornarem doçura e maldade picante. Sabia que a sua voz os tocava de uma magia sensual, de tal maneira eles se transformavam quando ela falava. E não era bonita, não senhor.

Mas havia nela um misto de candura e de perversão, de frieza calculada e de inocência, que desvairava os homens. Tinha uma boca desmedida, sempre aberta, em sorrisos, talvez para mostrar uns dentes frescos, embora incertos; um nariz pontudo, de ventas sensíveis, como se fossem duas flores inquietas pelo jogo da luz e das sombras; uns olhos talvez feios, pequeninos e travessos, que tanto pareciam quentes, da cor do acaju do seu cabelo liso, como esverdeados e frios, talvez cínicos. E havia aquela covinha marota na fase esquerda, tão atrevida, tão provocadora, que sem ela a Mariana seria uma mulher vulgar, desajeitada mesmo, tamanha magreza se apossara do seu corpo esguio.

– Em que estás a pensar?, perguntou o Mula Brava.

– Em nada.

– Não falavas...

– E o Ti João? Também nada dizia.

– Na minha idade já custa a pensar. A cabeça embrulha-se...

Tinham-se sentado perto de uma seara de trigo já a chegar-se à foice; lutavam nela o verde-tenro e o amarelo da maturidade e ouviam-se as espigas estalar sob a brasa do sol.

– Que pensas tu da Mariana?

Alcides fingiu-se atento para a bóia da sua linha. A maré devia estar na enchente e tornava difícil o perceber se alguma enguia picara o anzol.

– Não ouves, Ruço?

Ele não respondera, convencido de que o velho se arrependeria de repetir a pergunta.

– Que dizes tu da Mariana?... Sim, que é que achas nela?...

– Que é sua amiga.

– Não foi isso que te quis perguntar. Se já viste alguma coisa de mal.

Sim, uma liberdade maior com algum deles. Vão lá tantos!

– Ela brinca com todos. Uma mulher nova precisa de se distrair.

– Que é nova já eu sei, disse o Mula Brava com a voz agressiva. Ela quando veio para a barraca já sabia que eu era velho. Mas fizemos uma jura. E há juras que não se quebram até ao fim.

Ruço de Má Pêlo levantou-se para puxar a cana e deu um grito de entusiasmo.

O velho começou a rir quando viu o anzol a dançar sem nada. O rapaz é que sabia porque premeditara aquela cena.

– As enguias não querem nada comigo, ‘stá visto. O Ti João já apanhou algumas quatro.

– Da primeira vez apanha-se sempre pouco. A gente quando é novato toma tudo a sério e as mãos tremem na cana. Eu tenho a certeza que as enguias lá em baixo sentem na água as nossas mãos a tremer. É como eu lá na barraca. Não vejo. Os olhos quase não me servem. Mas há coisas que tocam na pele da gente, que vêm no ar, assim como o vento e o cheiro da terra ou das flores. O amor é uma coisa assim mais ou menos. Tem cheiro. Cheira como a terra molhada com as primeiras chuvas. E bole nas nossas mãos como as aragens do sul, o vento palmelão, que transtorna o gado nas pastagens.

O rapaz começou a rir, num riso nervoso.

– Tu que te ris é porque sabes alguma coisa, Ruço.

O velho pôs a cana de lado e aproximou-se. Tacteou-lhe os cabelos com as mãos inquietas e puxou-o depois para si, obrigando-o também a levantar-se. A seguir chegou os seus olhos doentes e quase vazios para o rosto do rapaz.

– Tu sabes dalguma coisa, Ruço!, gritou-lhe o Mula Brava, sacudindo-o pela camisa.

– Já lhe disse que não sei, Ti João. E se acha que eu o engano, vou-me hoje mesmo embora. Não gosto de ser ferrador. Quando atravessei o Tejo, nunca pensei ficar ali.

– Hum! Então não gostas de ser ferrador... Porque disseste que sim?

– Tinha fome.

– Não te disse para nunca fazeres coisas de que não gostasses? Isso é pior que ter fome. Fazer o que se não gosta é mil vezes pior do que passar fome. Comias mostarda, comias erva, comias terra...

O velho voltou para junto da sua cana, mas nunca mais a agarrou. Parecia inquieto, voltado para as bandas do Cabo, onde tinha a taberna.

– Se quiseres, vai-te embora. Mas é pena. Eu já não posso viver muito tempo e podias ficar com a oficina. A Mariana é tua amiga... (Caiu um silêncio entre os dois). Não é?!

– Não sei.

– Gostas dela?

– Não, não gosto. Ela podia ser minha mãe. Mas se pensa que alguma vez eu lhe faltei ao respeito...

– Nunca pensei nisso. Mas ela não é a mesma. Mudou há coisa de duas semanas. Fala menos, já não gosta de brincar com os homens. O amor cheira, é o que te digo. Sabes quem é o Chico Malhado?

– Sei.

– Tu estavas a ferrar uma égua do patrão Jaquim. Aquela égua porcelana e desconfiada... Eu cheguei-me à taberna e parei cá fora da porta. Não se ouvia uma mosca. Como sabes, ela fala sempre. Nunca ‘stá quieta. É uma égua roaz. Julguei que os ia apanhar agarrados, mas pra mim foi o mesmo. Estavam longe um do outro, mas era como se as mãos dele fossem do canto da mesa, cá à entrada da porta, até ao balcão, onde ela estava. Eu disse bom dia, e a minha voz fez um eco danado. A minha voz nunca fez um eco daqueles. Ele respondeu-me e tudo ficou quieto. Quieto e pesado. Eu fui direito a ela e custou-me a andar. Parecia que atravessava uma tempestade. Julgo que ainda se não passou nada entre os dois, mas as coisas não vão ficar assim por muito tempo. Ela não é mulher pra isso!

– Talvez não...

João Mula Brava casquinou de troça – talvez troçasse dele.

– Nunca gostei que tivessem pena de mim, Ruço de Má Pêlo! Nem o meu filho.

Foi por causa dela que perdi a sua amizade e nunca me arrependerei disso. Pareço andar aqui por arames, tão magro estou, e velho, e cansado, mas este arame é de aço. Não torce, quebra-se. E quando se quebrar é por uma vez. Pra que diabo preciso eu de uma mulher com esta idade? Não é o que tu perguntas? É o que todos perguntam, eu sei. Tu dormes ao lado da gente e naquela casa é o mesmo que dormires na nossa cama. És capaz de guardar um segredo?

– Pode falar à sua vontade, Ti João. E se quiser, eu ponho-me à tesa com ela, porque enquanto eu estiver à sua beira ninguém fará pouco de si.

– Não, não é isso. Eu ainda sou capaz de me defender. Não tenho medo da morte. E aquela espingarda que lá tenho serve para queimar os miolos a quem calhar. Entendes? Pois é assim mesmo.

O atropelo das palavras tinha-o cansado e ele arfava. Deitou-se sobre a erva com os olhos fechados e continuou a falar.

– Encontrei-a no Porto Alto e achei-lhe graça. Eu vinha numa carrocita que tinha nesse tempo, já lá vão três anos, e parara ali para matar a sede e dar dois dedos de conversa com o meu compadre. Ela guizalhava como é seu costume e queria uma boleia para ir apanhar o comboio. Ofereci-lhe um lugar na carroça, metemo-nos de conversa e combinámos tudo. Eu precisava de uma mulher para companhia, talvez só pra me lembrar de todas que tive. E perguntei-lhe se ela queria viver comigo. «E o que me dá vossemecê?», respondeu ela. Gostei daquela franqueza. Uma mulher nova quando se obriga a ficar ao pé de um homem como eu tem sempre alguma coisa em mira. É melhor jogo franco: pão pão, queijo queijo. Eu disse-lhe: ponho uma taberna em teu nome, trabalho de ferrador, e quando morrer é tudo pra ti. Mas nunca m’enganarás, é só o que te peço. Brinca, conversa e ri, mas nunca m’enganes. E ela jurou-me. Acho que me jurou plas cinco chagas de Cristo. Não sei bem o que ela me disse, mas só interessa a combinação feita. Eu ainda não faltei a coisa nenhuma.

O cão sentara-se entre os dois e lambia as mãos do velho.

– Agora, já vai pra dois anos que não tenho nada com ela. Dormimos juntos e tu sabes bem: já não somos homem e mulher. Tens ficado muitas noites a ouvir.

É ou não verdade? Fala à vontade, Ruço! Já és um homem... e podes dizer essas coisas que não te ficam mal.

– É verdade.

João Mula Brava abriu os olhos e sorriu para o rapaz.

– Mas agora as coisas vão complicar-se. Ela mudou. O Chico Malhado deu-lhe volta à cabeça. Eu sei que é só pra ter a mulher e mais nada. Há muitos a gabarem-se, mas nunca nenhum a teve. Ele julga que dou pasto à eguazinha, mas engana-se. Se a quiser, leva-a com ele e nunca mais me passa à porta. Ou talvez não a leve, porque sou capaz de o baldear antes que isso suceda. Não vou agora em velho deixar algum gajo rir-se de mim. Viste como ela ficou contente por sairmos?

Ela ficou contente, eu sei. Vai tremer sempre com receio que eu lhe apareça de um momento para o outro e nada fará. Mas quer falar com ele, e saber o que ele pensa, e perguntar-lhe...

– Ele é novo, Ti João. Ela talvez não lhe pergunte nada.

– Tens razão.

Levantou-se apressado. Pegou no chapéu e enfiou-o na cabeça.

– É isso o que tu dizes, Ruço. Ele é novo e quem sabe o que lá vai a esta hora.

Tenho passado noites inteiras sem dormir, agarrando-a, porque às vezes penso que se adormeço ela me pode vir cá pra fora... Está agora a aproximar-se o tempo danado pra isso. As noites de Verão. Os dias de Verão. Quando eu era moço, eu desvairava sempre por esta altura.

Pegou na cana e pô-la sobre o ombro; foi buscar a caixa verde, onde tinha as enguias, e deixou-a ao pé do rapaz.

– Fica-te aí, toma banho no Tejo, se quiseres, que eu volto. Já agora peço-te...

– O quê, Ti João?

– Nada. Nunca gostei de pedir coisa nenhuma. Faz o que quiseres. O mundo pra ti é livre. Até logo.

E abalou apressado com o cão atrás de si. Alcides ficou no mesmo sítio até o velho desaparecer na curva do valado e foi depois para a margem do Tejo, à sombra do salgueiro. O calor começava a apertar. Tirou a camisa, estendeu-se na erva e tentou adormecer. Mas as palavras do ferrador tinham-se-lhe agarrado ao sangue. Ele nunca vira a Mariana como naquele momento. Para si ela não era uma mulher. E agora sentia-lhe as mãos.

«O amor cheira», dissera o velho.

Alves Redol

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