sábado, 12 de setembro de 2015

OUTROS CONTOS

«Noite na Taverna», por Álvares de Azevedo.

«Noite na Taverna»
Na Taverna/ Jan Steen

612- «NOITE NA TAVERNA»

[Excerto]

Não me odeies, mulher, se no passado
Nódoa sombria desbotou-me a vida,
É que os lábios queimei no vício ardente
E de tudo descri com fronte erguida.
A mascara de Don Juan queimou-me o rosto
Na fria palidez do libertino:
Desbotou-me esse olhar... e os lábios frios
Ousam de maldizer do meu destino.
Sim! longas noites no fervor do jogo
Esperdicei febril e macilento
E votei o porvir ao Deus do acaso
E o amor profanei no esquecimento!
Murchei no escárnio as coroas do poeta,
Na ironia da glória e dos amores:
Aos vapores do vinho, a noite insano
Debrucei-me do jogo nos fervores!
A flor da mocidade profanei-a
Entre as águas lodosas do passado...
No crânio a febre, a palidez nas faces,
Só cria no sepulcro sossegado!
E asas límpidas do anjo em colo impuro
Mareei nos bafos da mulher vendida,
Inda nos lábios me roxeia o selo
Dos ósculos da perdida.
E a mirra das canções nem mais vapora
Em profanada taça eivada e negra:
Mar de lodo passou-me ao rio d'alma,
As níveas flores me estalou das bordas.
Sonho de glórias!... só me passa a furto,
Qual flor aberta a medo em chão de tumbas
— Abatida e sem cheiro...
O meu amor… o peito o silencia:
Guardo-o bem fundo em sombras do sacrário.
Onde ervaçal não se abastou nos ermos.
Meu amor... foi visão de roupas brancas
Da orgia à porta, fria e soluçando,
Lâmpada santa erguida em leito infame,
Vaso templário da taverna à mesa,
Estrela d'alva refletindo pálida
No tremedal do crime.
Como o leproso das cidades velhas
Sei me fugiras com horror aos beijos.
Sei, no doido viver dos loucos anos
As crenças desflorei em negra insânia...
— Vestal, prostitui as formas virgens,
Lancei eu próprio ao mar da coroa as folhas,
Troquei a rósea túnica da infância
Pelo manto das orgias.
Oh! não me ames sequer! Pois bem! um dia
Talvez diga o Senhor ao podre Lázaro:
Ergue-te aí do lupanar da morte,
Revive ao fresco do viver mais puro!
E viverei de novo: a mariposa
Sacode as asas, estremece-as, brilha,
Despindo a negra tez, a baba imunda
Da larva desbotada.
Então, mulher, acordarei do lodo,
Onde Satã se pernoitou comigo,
Onde inda morno perfumou seu molde
Cetinosa nudez de formas níveas.
E a loira meretriz nos seios brancos
Deitou-me a fronte lívida, na insónia
Quedou-me a febre da volúpia à sede
Sobre os beijos vendidos.
E então acordarei ao sol mais puro,
Cheirosa a fronte às auras da esperança!
Lavar-me-ei da fé nas águas d'oiro
De Magdalena em lágrimas!... e ao anjo
Talvez que Deus me dê, curvado e mudo,
Nos eflúvios do amor libar um beijo,
Morrer nos lábios dele!

Álvares de Azevedo

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