quinta-feira, 17 de setembro de 2015

OUTROS CONTOS

«A Abóbada», por Alexandre Herculano.

Por aqui- OUTROS CONTOS/ [I Capítulo/ O Cego]
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Por aqui- OUTROS CONTOS/ [IV Capítulo/ Um Rei Cavaleiro]

«A Abóbada»
Mosteiro da Batalha

617- «A ABÓBADA»

[V e Último Capítulo/ O Voto Fatal]

Rica de galas, a Primavera tinha vestido os campos da Estremadura do viço de suas flores: a madressilva, a rosa agreste, o rosmaninho e toda a casta de boninas teciam um tapete odorífero e imenso, por charnecas, cômoros e sapais e pelo chão das matas e florestas, que agitavam as frontes sonolentas com a brisa de manhã puríssima, mostrando aos olhos um baloiçar de verdura compassado com o das searas rasteiras, que, mais longe, pelas veigas e outeiros, ondeavam suavemente. Eram 7 de Maio da era de 1439 ou, como os letrados diziam, do ano da Redenção 1401. Quatro meses certos se contavam nesse dia, depois daquele em que, numa das quadras do aposento real no Mosteiro da Batalha, se passara a cena que no antecedente capítulo narrámos e que extraímos do famoso manuscrito mencionado no capítulo II, com aquela pontualidade e verdade com que o grande cronista Frei Bernardo de Brito citava só documentos inegáveis e autores certíssimos, e com aquela imparcialidade e exacção com que o filósofo de Ferney referia e avaliava os factos em que podia interessar a religião cristã.

Assistiu o leitor à promessa que mestre Afonso Domingues fez a D. João I de que dentro de quatro meses lhe daria posto o remate na abóbada da casa capitular de Santa Maria da Vitória, e lembrado estará de como el-rei lhe prometera, também, mandar ir de Guimarães todos os oficiais portugueses que, despedidos da Batalha por mestre Ouguet, como menos habilidosos que os estrangeiros, haviam sido mandados para a obra, posto que grandiosa, menos importante, de Santa Maria da Oliveira, hoje desaportuguesada e caiada e dourada e mutilada pelo mais bárbaro abuso da riqueza e da ignorância clerical. A palavra do Mestre de Avis não voltara atrás, não por ser palavra de rei, mas por ser palavra de cavaleiro daqueles tempos, em que tão nobres afectos e instintos havia nos corações de nossos avós que de bom grado lhes devemos perdoar a rudeza. Tendo partido de Alcobaça para Guimarães, onde nesse ano se ajuntavam cortes, apenas aí chegara tinha mandado partir para Santa Maria da Vitória os oficiais e obreiros mais entendidos, que vieram apresentar-se a mestre Afonso.

Este, resolvido, também, a cumprir o prometido, metera mãos à obra. O Capítulo foi desentulhado: aproveitaram-se as pedras da primeira edificação que era possível aproveitar, lavraram-se outras de novo, armaram-se os simples e, muito antes do dia aprazado, o fecho ou remate da abóbada repousava no seu lugar.

Durante estes quatro meses os sucessos políticos tinham trazido D. João I a Santarém, onde se fizera prestes com bom número de lanças, besteiras e peões para ir ajuntar-se com o Condestável, e entrarem ambos por Castela, cuja guerra tinha recomeçado, por se haverem acabado as tréguas. Para esta entrada se aparelhara el-rei com uma lustrosa companhia de seus cavaleiros e, caminhando pela margem direita do Tejo, acampara junto a Tancos, onde se havia de construir uma ponte de barcas, para passar o exército e seguir avante até o Crato, que era o lugar aprazado com o Condestável, para juntos irem dar sobre Alcântara.

Em Vale de Tancos estava assentado o arraial da hoste de el-rei: os petintais que tinham vindo de Lisboa trabalhavam na ponte de barcas que se devia lançar sobre o Tejo; os besteiros alimpavam suas bestas e folgavam em lutas e jogos; os cavaleiros corriam pontas, atiravam ao tavolado, monteavam ou matavam o tempo em banquetes e beberronias. Tinham chegado àquele sítio a 5 de Maio, e no dia seguinte el-rei partira aferradamente para a Batalha, porque não se esquecera de que os quatro meses que pedira Afonso Domingues para alevantar a abóbada eram passados, e fora avisado por Frei Lourenço de que a obra estava acabada, mas que o arquitecto não quisera tirar os simples senão na presença de el-rei.

Antes de partir de Lisboa, D. João I mandara sair dos cárceres em que jaziam bom número de criminosos e de cativos castelhanos, que, com grande pasmo dos povos, e rodeados por uma grossa manga de besteiros, tomaram o caminho da Batalha, sem que ninguém aventasse o motivo disto. Todavia, ele era óbvio: el-rei pensou que, assim como a abóbada do Capítulo desabara, da primeira vez, passadas vinte e quatro horas depois de desamparada, assim podia agora derrocar-se em cima dos obreiros, no momento de lhe tirarem os prumos e traveses sobre que fora edificada. Solícito pela vida de seus vassalos, parente do povo por sua mãe, e crendo por isso que a morte de um popular também tinha seu trance de agonia e que lágrimas de órfãos pobres eram tão amargas ou, porventura, mais que as de infantes e senhores, não quis que se arriscassem senão vidas condenadas, ou pela guerra ou pelos tribunais, e que, naquela, se tinham remido pela covardia e, nestes, pela piedade ou, antes, pelo esquecimento dos juízes. E se da primeira vez lhe não acorrera esta ideia, fora porque, também, na memória de obreiros portugueses não havia lembrança de ter desabado uma abóbada apenas construída.

Seguido só por dois pajens, D. João I atravessou a vila de Ourém pelas horas mortas do quarto de modorra, e antes do meio-dia apeou-se à portaria do mosteiro.

Os oficiais que trabalhavam em vários lavores, pelos telheiros e casas ao redor do edifício, viram passar aquele cavaleiro e os dois pajens, mas não o conheceram: D. João I vinha coberto de todas as peças e, ao galgar o ginete pelo outeiro abaixo, tinha descido a viseira.

– Benedicite! – dizia el-rei, batendo devagarinho à porta da cela de Frei Lourenço.

– Pax vobis, domine! – respondeu o prior, que logo reconheceu el-rei e veio abrir a porta.

– Não vos incomodeis, reverendíssimo – disse D. João, entrando na cela e sentando-se em um tamborete –, deixai-me resfolegar um pouco e dai-me uma vez de vinho.

– Não vos esperava tão de salto – tornou Frei Lourenço; e, abrindo um armário, tirou dele uma borracha e um canjirão de madeira, que encheu de vinho e, pegando com a esquerda em uma escudela de barro de Estremoz, cheia de uma espécie de bolo feito de mel, ovos e flor de farinha, apresentou a el-rei aquela colação.

– Excelente almoço – dizia el-rei, descalçando o guante ferrado e cravando a espaços os dedos dentro da escudela, donde tirava bocados do bolo, que ajudava com alentados beijos dados no canjirão. Depois que cessou de comer, limpando a mão ao forro do tonelete, pôs-se em pé, enquanto Frei Lourenço guardava os despojos daquela batalha.

– Bofé – disse D. João I, rindo – que não ando a meu talante, senão com o arnês às costas! Cada vez que o visto, parece-me que torno à mocidade e que sou o Mestre de Avis ou, antes, o simples cavaleiro que, confiado só em Deus, corria solto pelo mundo, monteando edomas inteiras, e tendo sobre a consciência só os pecados de homem e não os escrúpulos de rei.

– E então – atalhou o prior – o vosso confessor Frei Lourenço era um pobre frade, cujos únicos cuidados se encerravam em saber as horas do coro e em ler as sagradas escrituras, porém que hoje tem de velar muitas noites, pensando no modo de não deixar afrouxar a disciplina e boa governança de tão alteroso mosteiro. Mas, segundo vosso recado, que ontem recebi, vindes para assistir ao tirar dos simples da mui famosa abóbada, o que mestre Domingues aporfia em só fazer perante vós?

– A isso vim, porém de espaço; que não será nestes cinco dias que esteja pronta a ponte de barcas que mandei lançar no Tejo, para passar minha hoste. Durante eles, com vossos mui religiosos frades me aparelharei para a guerra, entesourando orações e recebendo absolvição de meus erros.

– Os príncipes pios – acudiu o prior, com gesto de compunção – são sempre ajudados de Deus, principalmente contra hereges e cismáticos, como os perros dos Castelhanos, que a Virgem Maria da Vitória confunda nos infernos.

– Ámen! – respondeu devotamente el-rei.

– Avisarei, pois, mestre Afonso de vossa vinda, para que ponha tudo em ordenança de se tirarem os simples. Pediu-me que o mandasse chamar apenas fôsseis chegado.

Frei Lourenço saiu e, daí a pouco, voltou acompanhado do arquitecto, que um rapaz guiava pela mão.

– Guarde-vos Deus, mestre Afonso Domingues! – disse el-rei, vendo entrar o cego. – Aqui me tendes para ver acabada a feitura da mirífica abóbada do Capítulo de Santa Maria, cujos simples não quisestes tirar senão em minha presença.

– Beijo-vo-las, senhor rei, pela mercê: dois votos fiz, se levasse a cabo esta feitura; era esse um deles...

– E o outro? – atalhou el-rei.

– O outro, dir-vo-lo-ei em breve; mas, por ora, permiti que para mim o guarde.

– São negócios de consciência – acudiu o prior. – El-rei não quer, por certo, fazer-vos quebrar vosso segredo.

D. João I fez um sinal de assentimento ao parecer do seu antigo padre espiritual.

El-rei, o prior e o arquitecto ainda se demoraram um pedaço, falando acerca da obra e do que cumpria fazer no prosseguimento dela; mas o cego dissera o que quer que fora, em voz baixa, ao rapaz que o acompanhava, o qual saíra imediatamente, e que só voltou quando os três acabavam a conversação.

– Fernão de Évora – disse o cego, sentindo-o outra vez ao pé de si –, fizeste o que te ordenei, e deste a teu tio Martim Vasques o meu recado?

– Senhor, sim! Envia-vos ele a dizer que tudo está prestes.

– Então vamos a ver se desta feita temos mais perdurável abóbada.

Isto dizia el-rei, saindo da cela de Frei Lourenço e seguindo ao longo do claustro. Já a este tempo se tinha espalhado no mosteiro a nova da sua chegada, e os frades começavam de ajuntar-se para o cortejarem. Do mosteiro rompera a notícia, espalhando-se pela povoação, aonde concorrera muita gente dos arredores, principalmente de Aljubarrota, por ser dia de mercado: de modo que, quando el-rei desceu à crasta, já ali se achavam apinhados homens e mulheres que queriam vê-lo e, ainda mais, saber se desta vez a abóbada vinha ao chão, para terem que contar aos vizinhos e vizinhas da sua terra.

As portas da Casa do Capítulo estavam abertas: via-se dentro dela tal máquina de prumos, traveses, andaimes, cabrestantes, escadas, que bem se pudera comparar a composição daqueles simples à fábrica do mais delicado relógio. À porta que dava para a crasta estava um homem em pé, que desbarretou apenas viu el-rei, a cuja direita vinha o arquitecto, seguido por Frei Lourenço e por outros frades.

O pequeno Fernão de Évora disse algumas palavras a Afonso Domingues, o qual lhe respondeu em voz baixa. Então o rapaz acenou ao homem desbarretado, que se chegou timidamente ao cego. Era um mancebo, que mostrava ter de idade, ao mais, vinte e cinco anos; de rosto comprido, tez queimada, nariz aquilino, olhos pequenos e vivos. Chegando-se ao cego, este o tomou pela mão e, voltando-se para el-rei, disse:

– Aqui tendes, senhor, a Martim Vasques, o melhor oficial de pedraria que eu conheço; o homem que, com mais alguns anos de experiência, será capaz de continuar dignamente a série dos arquitectos portugueses.

– E debaixo de meu especial amparo estará Martim Vasques – respondeu el-rei –, que por honrado me tenho com haver em meus senhorios homens que vos imitem.

Ainda bem não eram acabadas estas palavras, sentiu-se um sussurro entre o povo, que girava livremente pela crasta e que se enfileirou aos lados: chegava a gente que devia tirar os simples.
Entre duas alas de besteiros, vinha um bom número de homens, magros, pálidos, rotos e descalços; o porte de alguns era altivo, e em seus farrapos se divisava a razão disso: eram besteiros castelhanos que em diversos recontros e pelejas tinham caído nas mãos dos portugueses. As guerras entre Portugal e Castela assemelhavam-se às guerras civis de hoje: para vencidos não havia nem caridade, nem justiça, nem humanidade: ser metido em ferros era então uma ventura para o pobre prisioneiro; porque os mais deles morriam assassinados pelo povo desenfreado, em vingança dos maus tratos que em Castela padeciam os cativos portugueses. Com os castelhanos vinham de envolta vários criminosos condenados à morte por suas malfeitorias.

– Misericórdia! – bradou toda aquela multidão, ao passar por el-rei: e caíram de bruços sobre as lajes do pavimento.

– Convosco a tenho, mesquinha gente – disse el-rei comovido. – Se tirardes os simples, que vedes acolá, e a abóbada não desabar sobre vós, soltos e livres sereis. Erguei-vos, e confiai na ciência do grande arquitecto que fez essa mirífica obra. Mandar-vos comprar vossa soltura a custo de tão leve risco, quase que é o mesmo que perdoar-vos.

Os presos ergueram-se; mas a tristeza lhes ficou embebida no coração e espalhada nas faces; o terror fazia-lhes crer que já sentiam ranger e estalar as vigas dos simples e que, às primeiras pancadas, as pedras desconformes da abóbada, desatando-se da imensa volta, os esmagariam, como o pé do quinteiro esmaga a lagarta enrascada na planta viçosa do horto.

Neste momento quatro forçosos obreiros chegaram à porta do Capítulo, trazendo sobre uma paviola uma grande pedra quadrada. Martim Vasques, que já lá estava, gritou ao cego arquitecto:

– Mui sabedor mestre Afonso, que quereis se faça do canto que para aqui mandastes trazer?

– Assentai-o bem debaixo do fecho da abóbada, no meio desse claro, que deixam os prumos centrais dos simples.

Os obreiros fizeram o que o arquitecto mandara; este então voltou-se para el-rei e disse:

– Senhor rei, é chegado o momento de vos declarar meu segundo voto. Pelo corpo e sangue do Redentor jurei que, assentado sobre a dura pedra, debaixo do fecho da abóbada, estaria sem comer nem beber durante três dias, desde o instante em que se tirassem os simples. De cumprir meu voto ninguém poderá mover-me. Se essa abóbada desabar, sepultar-me-á em suas ruínas: nem eu quisera encetar, depois de velho, uma vida desonrada e vergonhosa. Esta é a minha firme resolução.

Dizendo isto, o cego travou com força do braço de Fernão de Évora, e encaminhou-se para a porta do Capítulo.

– Esperai, esperai! – bradou el-rei. – Estais louco, dom cavaleiro? Quem, se vós morrerdes, continuará esta fábrica, tão formosa filha de vosso engenho?

– Mestre Ouguet – tornou o cego, parando. – Não sou tão vil que negue seu saber e habilidade. Se a abóbada desabar segunda vez, ninguém no mundo é capaz de a fechar com uma só volta, e para a firmar sobre uma coluna erguida ao centro, mestre Ouguet o fará. Quanto ao resto do edifício, fazei senhor rei que se prossiga meu desenho: é o que ora vos peço tão-somente.

E o velho e o seu guia sumiram-se por entre as bastas vigas que sustinham as traves dos simples: el-rei, Frei Lourenço e os mais frades ficaram atónitos e calados.

– Que tão honrado mestre corra parelhas no risco com esses perros castelhanos, cousa é que não pode sofrer-se; mas o voto é voto, senão...

Estas palavras partiam da boca de uma gorda velha, cuja tez avermelhada dava indícios de compleição sanguínea e irritável, e que de mãos metidas nas algibeiras, na frente de uma das alas do povo, presenciava o caso.

– Tendes razão, tia Brites de Almeida; e por ser voto me calo eu – acudiu el-rei, voltando-se para a velha. Mas juro a Cristo, que estou espantado de só agora vos ver! Porque me não viestes falar?

– Perdoe-me vossa mercê – replicou a velha. – Eu vim trazer pão à feira, e aí soube da chegada de vossa real senhoria. Corri... se eu correria para vos falar! Mas estes bocas-abertas não me deixaram passar. Abrenúncio! Depois estive a olhar... Parecíeis-me carregado de semblante. Que é isso? Temos novas voltas com os excomungados Castelhanos? Se assim é, trosquiai-mos outra vez por Aljubarrota, que a pá não se quebrou nos sete que mandei de presente ao diabo, e ainda lá está para o que der e vier.

Soltando estas palavras, a velha tirou as mãos das algibeiras e, cerrando os punhos, ergueu os braços ao ar, com os meneios de quem já brandia a tremebunda e patriótica pá de forno que hoje é glória e brasão da gótica vila de Aljubarrota.

– Podeis dormir descansada, tia Brites – respondeu el-rei, sorrindo-se. – Bem sabeis que sou português e cavaleiro, e a gente de nossa terra é cortês; el-rei de Castela veio visitar-nos várias vezes: agora ando eu na demanda de lhe pagar com usura suas visitações.

Enquanto este diálogo se passava entre o herói de Aljubarrota e a sua poderosa aliada, Martim Vasques tinha posto tudo a ponto; e, dando as suas ordens da porta, as primeiras pancadas de martelo, batendo nos simples, ressoaram pelo âmbito da casa capitular. Fez-se um grande silêncio, e todos os olhos se cravaram em Martim Vasques.

Passada uma hora, aquele montão de vigas, barrotes, tábuas, cambotas, cabrestantes, réguas e travessas tinha passado pela crasta fora em colos de homens, e os presos tinham sido postos em liberdade, com grande raiva da tia Brites, ao ver ir soltos os besteiros castelhanos. Apenas no centro da ampla quadra se via uma pedra, sobre a qual, mudo e com a cabeça pendida para o peito, estava assentado um velho.

A este velho rogava el-rei, rogavam frades, rogava o povo, sem todavia se atreverem a entrar, que saísse dali; mas ele não lhes respondia nada. Desenganados, enfim, foram-se, pouco a pouco, retirando da crasta, onde, ao pôr do Sol, começou a bater o luar de uma formosa noite de Maio.

Três dias se passaram assim. Mestre Afonso, assentado sobre a pedra fria, nem sequer cedera às rogativas de Ana Margarida, que, obrigada pela boa amizade que tinha a seu amo, se atrevera a cruzar os perigosos umbrais do Capítulo, para ver se o movia a tomar alguma refeição. Tudo recusou o cego: a sua resolução era inabalável. Também a abóbada estava firme, como se fora de bronze. No terceiro dia à tarde, el-rei, que tinha passado o tempo em aparelhar-se para a guerra com actos de piedade, desceu à crasta, acompanhado de Frei Lourenço e de outros frades, e, chegando à porta do Capítulo, viu Martim Vasques e Ana Margarida junto à pedra fria de Afonso Domingues, e este, pálido e com as pálpebras cerradas, encostado nos braços deles.

O mancebo e a velha choravam e soluçavam, sem dizerem palavra.

– Que temos de novo? – perguntou el-rei, chegando à porta e vendo aqueles dois estafermos. – Completam-se ora os três dias de voto: ainda mestre Afonso teimará em estar aqui mais tempo?

– Não senhor – respondeu Martim Vasques, com palavras mal articuladas –, não estará aqui mais tempo; porque o seu corpo é herança da terra; a sua alma repousa com Deus.

– Morto!? – bradaram a uma voz el-rei e Frei Lourenço, e correram para o cadáver do arquitecto, olhando, todavia, primeiro para a abóbada com um gesto de receio.

– Nada temais, senhores – disse Martim Vasques. – As últimas palavras do mestre foram estas: «A abóbada não caiu... a abóbada não cairá!»

O arquitecto, gasto da velhice, não pôde resistir ao jejum absoluto a que se condenara. No momento em que, ajudado por Martim Vasques e Ana Margarida, se quis erguer, pendeu moribundo nos braços deles, e aquele génio de luz mergulhou-se nas trevas do passado.

El-rei derramou algumas lágrimas sobre os restos do bom cavaleiro, e Frei Lourenço rezou em voz baixa uma oração fervente pela alma generosa que, até ao último arranco, escrevera sobre o mármore o hino dos valentes de Aljubarrota.

Na pedra sobre a qual mestre Afonso expirara ordenou el-rei se tirasse, parecido quanto fosse possível retratando-se um cadáver, o vulto do honrado arquitecto, e que esta imagem fosse colocada em um dos ângulos da casa capitular, onde, durante mais de quatro séculos, como as esfinges monumentais do Egipto, tem dado origem às mais desvairadas hipóteses e conjecturas. À pobre Ana Margarida, que ficava sem arrimo, doou D. João I, também, as casas em que o mestre morava, fazendo-lhe, além disso, assinaladas mercês.

Mestre Ouguet, pelo que o cego dissera a el-rei acerca da sua capacidade para o substituir, e porque, enfim, era estrangeiro, foi logo restituído ao cargo que ocupara, e quando, nos serões do mosteiro, alguém falava nos méritos de Afonso Domingues e na sua desastrada morte, cortava o irlandês a conversação, dizendo com riso amarelo:

– Olhem que foi forte perda!

Alexandre Herculano

1 comentário:

Anónimo disse...

De grande nível cultural este espaço de leitura e artes. Magnífico o conto de Alexandre Herculano, um dos grandes escritores da língua portuguesa. Parabéns ao Poet'anarquista, fazendo votos para que nos continue a brindar com as excelentes publicações como tem vindo a fazer. Quanto à sua poesia, um caso sério a merecer toda a atenção de entidades competentes.

Muito obrigado!