21 de Outubro de 1982 - O Prémio Nobel da Literatura é
atribuído ao escritor colombiano Gabriel García Márquez, autor de «Cem Anos de
Solidão».
Poet'anarquista
«Me Alugo para Sonhar»
Sonhos do Carnaval, por Di Cavalcanti
11- ME ALUGO PARA SONHAR
Às nove, enquanto tomávamos o café da manhã no terraço do
Habana Riviera, um tremendo golpe de mar em pleno sol levantou vários
automóveis que passavam pela avenida à beira-mar, ou que estavam estacionados
na calçada, e um deles ficou incrustado num flanco do hotel. Foi uma explosão
de dinamite que semeou pânico nos vinte andares do edifício e fez virar pó a
vidraça do vestíbulo. Os numerosos turistas que se encontravam na sala de
espera foram lançados pelos ares junto com os móveis, e alguns ficaram feridos
pelo granizo de vidro. Deve ter sido uma vassourada colossal do mar, pois entre
a muralha da avenida à beira-mar e o hotel há uma ampla avenida de ida e volta,
de maneira que a onda saltou por cima dela e ainda teve força suficiente para
esmigalhar a vidraça.
Os alegres voluntários cubanos, com a ajuda dos bombeiros,
recolheram os destroços em menos de seis horas, trancaram a porta que dava para
o mar e habilitaram outra, e tudo tornou a ficar em ordem. Pela manhã, ninguém
ainda havia cuidado do automóvel pregado no muro, pois pensava-se que era um
dos estacionados na calçada. Mas quando o reboque tirou-o da parede descobriram
o cadáver de uma mulher preso no assento do motorista pelo cinto de segurança.
O golpe foi tão brutal que não sobrou nenhum osso inteiro. Tinha o rosto
desfigurado, os sapatos descosturados e a roupa em farrapos, e um anel de ouro
em forma de serpente com olhos de esmeraldas. A polícia afirmou que era a
governanta dos novos embaixadores de Portugal. Assim era: tinha chegado com
eles a Havana quinze dias antes, e havia saído naquela manhã para fazer compras
dirigindo um automóvel novo. Seu nome não me disse nada quando li a notícia nos
jornais, mas fiquei intrigado por causa do anel em forma de serpente e com
olhos de esmeraldas. Não consegui saber, porém, em que dedo o usava.
Era um detalhe decisivo, porque temi que fosse uma mulher
inesquecível cujo verdadeiro nome não soube jamais, que usava um anel igual no
indicador direito, o que era mais insólito ainda naquele tempo. Eu a havia
conhecido 34 anos antes em Viena, comendo salsichas com batatas cozidas e
bebendo cerveja de barril numa taberna de estudantes latinos. Eu havia chegado
de Roma naquela manhã, e ainda recordo minha impressão imediata por seu imenso
peito de soprano, suas lânguidas caudas de raposa na gola do casaco e aquele
anel egípcio em forma de serpente. Achei que era a única austríaca ao longo
daquela mesona de madeira, pelo castelhano primário que falava sem respirar com
sotaque de bazar de quinquilharia. Mas não, havia nascido na Colômbia e tinha
ido para a Áustria entre as duas guerras, quase menina, estudar música e canto.
Naquele momento andava pelos trinta anos mal vividos, pois nunca deve ter sido
bela e havia começado a envelhecer antes do tempo. Em compensação, era um ser
humano encantador. E também um dos mais temíveis.
Viena ainda era uma antiga cidade imperial, cuja posição
geográfica entre os dois mundos irreconciliáveis deixados pela Segunda Guerra
Mundial havia terminado de convertê-la num paraíso do mercado negro e da
espionagem mundial. Eu não teria conseguido imaginar um ambiente mais adequado
para aquela compatriota fugitiva que continuava comendo na taberna de
estudantes da esquina por pura fidelidade às suas origens, pois tinha recursos
de sobra para comprá-la à vista, com clientela e tudo. Nunca disse o seu
verdadeiro nome, pois sempre a conhecemos com o trava-língua germânico que os
estudantes latinos de Viena inventaram para ela: Frau Frida. Eu tinha acabado
de ser apresentado a ela quando cometi a impertinência feliz de perguntar como
havia feito para implantar-se de tal modo naquele mundo tão distante e
diferente de seus penhascos de ventos do Quindío, e ela me respondeu de chofre:
- Eu me alugo para sonhar.
Na realidade, era seu único ofício. Havia sido a terceira
dos onze filhos de um próspero comerciante da antiga Caldas, e desde que
aprendeu a falar instalou na casa o bom costume de contar os sonhos em jejum,
que é a hora em que se conservam mais puras suas virtudes premonitórias. Aos
sete anos sonhou que um de seus irmãos era arrastado por uma correnteza. A mãe,
por pura superstição religiosa, proibiu o menino de fazer aquilo que ele mais
gostava, tomar banho no riacho. Mas Frau Frida já tinha um sistema próprio de
vaticínios.
- O que esse sonho significa - disse - não é que ele vai se
afogar, mas que não deve comer doces.
A interpretação parecia uma infâmia, quando era relacionada
a um menino de cinco anos que não podia viver sem suas guloseimas dominicais. A
mãe, já convencida das virtudes adivinhatórias da filha, fez a advertência ser
respeitada com mão de ferro. Mas ao seu primeiro descuido o menino engasgou com
uma bolinha de caramelo que comia escondido, e não foi possível salvá-lo.
Frau Frida não havia pensado que aquela faculdade pudesse
ser um ofício, até que a vida agarrou-a pelo pescoço nos cruéis invernos de
Viena. Então, bateu para pedir emprego na primeira casa onde achou que viveria
com prazer, e quando lhe perguntaram o que sabia fazer, ela disse apenas a
verdade: "Sonho." Só precisou de uma breve explicação à dona da casa
para ser aceita, com um salário que dava para as despesas miúdas, mas com um
bom quarto e três refeições por dia. Principalmente o café da manhã, que era o
momento em que a família sentava-se para conhecer o destino imediato de cada um
de seus membros: o pai, que era um financista refinado; a mãe, uma mulher
alegre e apaixonada por música romântica de câmara, e duas crianças de onze e
nove anos. Todos eram religiosos, e portanto propensos às superstições
arcaicas, e receberam maravilhados Frau Frida com o compromisso único de
decifrar o destino diário da família através dos sonhos.
Fez isso bem e por muito tempo, principalmente nos anos da
guerra, quando a realidade foi mais sinistra que os pesadelos. Só ela podia
decidir na hora do café da manhã o que cada um deveria fazer naquele dia, e
como deveria fazê-lo, até que seus prognósticos acabaram sendo a única
autoridade na casa. Seu domínio sobre a família foi absoluto: até mesmo o
suspiro mais tênue dependia da sua ordem. Naqueles dias em que estive em Viena
o dono da casa havia acabado de morrer, e tivera a elegância de legar a ela uma
parte de suas rendas, com a única condição de que continuasse sonhando para a
família até o fim de seus sonhos.
Fiquei em Viena mais de um mês, compartilhando os apertos
dos estudantes, enquanto esperava um dinheiro que não chegou nunca. As visitas
imprevistas e generosas de Frau Frida na taberna eram então como festas em
nosso regime de penúrias. Numa daquelas noites, na euforia na cerveja,
sussurrou ao meu ouvido com uma convicção que não permitia nenhuma perda de
tempo.
- Vim só para te dizer que ontem à noite sonhei com você -
disse ela. - Você tem que ir embora já e não voltar a Viena nos próximos cinco
anos.
Sua convicção era tão real que naquela mesma noite ela me
embarcou no último trem para Roma.
Eu fiquei tão sugestionado que desde então
me considerei sobrevivente de um desastre que nunca conheci.
Ainda não voltei a
Viena.
Antes do desastre de Havana havia visto Frau Frida em
Barcelona, de maneira tão inesperada e casual que me pareceu misteriosa. Foi no
dia em que Pablo Neruda pisou terra espanhola pela primeira vez desde a Guerra
Civil, na escala de uma lenta viagem pelo mar até Valparaíso. Passou connosco
uma manhã de caça nas livrarias de livros usados, e na Porter comprou um
livro antigo, desencadernado e murcho, pelo qual pagou o que seria seu salário
de dois meses no consulado de Rangum. Movia-se através das pessoas como um
elefante inválido, com um interesse infantil pelo mecanismo interno de cada
coisa, pois o mundo parecia, para ele, um imenso brinquedo de corda com o qual
se inventava a vida.
Não conheci ninguém mais parecido à ideia que a gente tem de
um papa renascentista: glutão e refinado. Mesmo contra a sua vontade, sempre
presidia a mesa. Matilde, sua esposa, punha nele um babador que mais parecia de
barbearia que de restaurante, mas era a única maneira de impedir que se
banhasse nos molhos. Aquele dia, no Carvalleiras, foi exemplar. Comeu três
lagostas inteiras esquartejando-as com mestria de cirurgião, e ao mesmo tempo
devorava com os olhos os pratos de todos, e ia provando um pouco de cada um,
com um deleite que contagiava o desejo de comer: as amêijoas da Galícia, os
perceves do Cantábrico, os lagostins de Alicante, as espardenyas da Costa
Brava. Enquanto isso, como os franceses, só falava de outras delícias da
cozinha, e em especial dos mariscos pré-históricos do Chile que levava no
coração. De repente parou de comer, afinou suas antenas de siri, e me disse em
voz muito baixa:
- Tem alguém atrás de mim que não pára de me olhar.
Espiei por cima de seu ombro, e era verdade. Às suas costas,
três mesas atrás, uma mulher impávida com um antiquado chapéu de feltro e um
cachecol roxo, mastigava devagar com os olhos fixos nele. Eu a reconheci no
ato. Estava envelhecida e gorda, mas era ela, com o anel de serpente no dedo
indicador.
Viajava de Nápoles no mesmo barco que o casal Neruda, mas
não tinham se visto a bordo. Convidamos para mulher a tomar café em nossa mesa,
e a induzi a falar de seus sonhos para surpreender o poeta. Ele não deu
confiança, pois insistiu desde o princípio que não acreditava em adivinhações
de sonhos.
- Só a poesia é clarividente - disse.
Depois do almoço, no inevitável passeio pelas Ramblas,
fiquei para trás de propósito, com Frau Frida, para poder refrescar nossas
lembranças sem ouvidos alheios. Ela me contou que havia vendido suas
propriedades na Áustria, e vivia aposentada no Porto, Portugal, numa casa que
descreveu como sendo um castelo falso sobre uma colina de onde se via todo o
oceano até as Américas. Mesmo sem que ela tenha dito, em sua conversa ficava claro
que de sonho em sonho havia terminado por se apoderar da fortuna de seus
inefáveis patrões de Viena. Não me impressionou, porém, pois sempre havia
pensado que seus sonhos não eram nada além de uma artimanha para viver. E disse
isso a ela.
Frau Frida soltou uma gargalhada irresistível. "Você
continua o atrevido de sempre", disse. E não falou mais, porque o resto do
grupo havia parado para esperar que Neruda acabasse de conversar em gíria
chilena com os papagaios da Rambla dos Pássaros. Quando retomamos a conversa,
Frau Frida havia mudado de assunto.
- Aliás - disse ela -, você já pode voltar para Viena.
Só então percebi que treze anos haviam transcorrido desde
que nos conhecemos.
- Mesmo que seus sonhos sejam falsos, jamais voltarei -
disse a ela. - Por via das dúvidas.
Às três, nos separamos dela para acompanhar Neruda à sua
sesta sagrada. Foi feita em nossa casa, depois de uns preparativos solenes que
de certa forma recordavam a cerimônia do chá no Japão. Era preciso abrir umas
janelas e fechar outras para que houvesse o grau de calor exato e uma certa
classe de luz em certa direção, e um silêncio absoluto. Neruda dormiu no ato, e
despertou dez minutos depois, como as crianças, quando menos esperávamos.
Apareceu na sala restaurado e com o monograma do travesseiro
impresso na face.
- Sonhei com essa mulher que sonha - disse.
Matilde quis que ele contasse o sonho.
- Sonhei que ela estava sonhando comigo - disse ele.
- Isso é coisa de Borges - comentei.
Ele me olhou desencantado.
- Está escrito?
- Se não estiver, ele vai escrever algum dia - respondi. -
Será um de seus labirintos.
Assim que subiu a bordo, às seis da tarde, Neruda
despediu-se de nós, sentou-se em uma mesa afastada e começou a escrever versos
fluidos com a caneta de tinta verde com que desenhava flores e peixes e
pássaros nas dedicatórias de seus livros. À primeira advertência do navio
busca- mos Frau Frida, e enfim a encontramos no convés de turistas já íamos
embora sem nos despedir. Também ela acabava de despertar da sesta.
- Sonhei com o poeta - nos disse.
Assombrado, pedi que me contasse o sonho.
- Sonhei que ele estava sonhando comigo - e minha cara de
assombro a espantou.
- O que você quer? Às vezes, entre tantos sonhos,
infiltra-se algum que não tem nada a ver com a vida real.
Não tornei a vê-la nem a me perguntar por ela até que soube
do anel em forma de cobra da mulher que morreu no naufrágio do Hotel Riviera.
Portanto não resisti à tentação de fazer algumas perguntas ao embaixador
português quando coincidimos, meses depois, em uma recepção diplomática. O
embaixador me falou dela com um grande entusiasmo e uma enorme admiração.
"O senhor não imagina como ela era extraordinária", me disse. "O
senhor não resistiria à tentação de escrever um conto sobre ela." E
prosseguiu no mesmo tom, com detalhes surpreen- dentes, mas sem uma pista que
me permitisse uma conclusão final.
- Em termos concretos - perguntei no fim -, o que ela fazia?
- Nada - respondeu ele, com certo desencanto. - Sonhava.
Gabriel García Marquez
(Março de 1980)
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