Conto Segundo
«Templo Sagrado»
JPGalhardas
15- «Quem tem um filho...»
(Durante muitos séculos foi o Deus Endovélico venerado por
celtas, fenícios, cartagineses e romanos, na região que hoje denominamos por
Alentejo. A narrativa que se segue, teve lugar aquando da permanência romana na
península ibérica, numa época já muito próxima da ocupação religiosa pela
crença cristã.)
Texto de lápide votiva encontrada nas ruínas da ermida de S.
Miguel Arcanjo, na herdade da Mota:«ENDOVELLICO SACRVM MARCVS IVLIVS PROCVLVS ANIMO LIBENS VOTVM
SOLVIT».Tradução: Dom consagrado ao deus Endovélico. Marco Júlio
Próculo de boa mente cumpriu o seu voto.
Busto Romano/ Foto: Poet'anarquista
Marco Júlio Próculo era um cidadão romano, já nascido na
península ibérica, que mantinha uma grande casa agrícola, junto à confluência
da Ribeira Sagrada com o Rio Anas, num local hoje conhecido por Sítio das Águas
Frias, ali nas proximidades da actual Aldeia do Rosário. Homem já com uma certa
idade, tinha como desgosto maior o facto de não ter descendentes. Último membro
de uma nobre família romana, há cerca de um século radicada na península,
passara incólume por todas as mudanças políticas operadas na capital do
império. Resistira a todas as intrigas dos nobres, seus pares, e conseguira
manter intacto o prestígio do seu bom nome e da sua família, assim como a
enorme propriedade, herdada dos pais que, por sua vez, já a tinham herdado dos
antepassados.
No ano anterior ao episódio que pretendemos narrar,
deslocara-se a Roma, a fim de dar explicações à família da esposa, sobre as
condições em que esta falecera, vítima de febres desconhecidas, de nada valendo
todos os esforços que fizera para a curar das maleitas porque fora tomada.
Regressou casado de novo. Desta vez, com a irmã mais nova da
anterior mulher. O nobre senador, pai das duas, convencera-o a desposar a
cunhada, justificando essa atitude com a intenção de manter a família agregada.
Os deuses se encarregariam de solucionar a vinda do herdeiro, vital para a
manutenção do património familiar em boas mãos. A rapariga era uma mulher alta,
de pele branca e sedosa, olhos amendoados e cabelos negros. Corpo elegante, a
condizer. Já que o casamento anterior não lhe trouxera filhos, seria a vez da
nova mulher tomar como obrigação esse encargo, pensava Marco Júlio Próculo.
«A nova esposa de Marco Júlio Próculo»
Erotismo, por JPGalhardas
Assim que se instalou na “villae”, junto à foz da Ribeira
Sagrada, manteve debaixo de olho um jovem escravo que tratava das cavalariças.
Era um rapaz de estatura meã, moreno de tez, barbudo, pernas arqueadas de tanto
cavalgar, feito escravo durante uma das frequentes escaramuças entre romanos e
lusitanos. Estes, sempre indomáveis e nunca se dando por vencidos.. Não muito
asseado, reconhecia ela, habituada aos banhos romanos e aos perfumes exóticos.
Mas, à sua maneira, atraente – achava a dona.
Entretanto, Marco Júlio Próculo, que tinha incluído o nativo Deus Endovélico, no mesmo altar dos seus deuses romanos, prometia grandes
dádivas e sacrifícios na ara sagrada se fosse agraciado com a vinda de um
herdeiro. E foi. Foi agraciado com o nascimento de um filho. Exactamente
duzentos e setenta dias depois da sua mulher se ter rebolado com o escravo nos
montes de palha da cavalariça.
«Lápide do Espólio de S. Miguel da Mota»
Museu Nacional de Arqueologia
E a lápide, quase dois milénios depois, aí está para o
atestar. Está embutida na parede do adro coberto da Igreja dos Agostinhos, em
Vila Viçosa, logo à mão direita de quem entra.
FIM
Orson W Calabrese
ATT – Alguns dados incluídos nesta ficção, foram retirados
de ensaios escritos pelo Padre Joaquim Rocha Espanca e pelo cientista Leite de
Vasconcelos.
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