«Regresso à Cúpula da Pena»
Cúpula Mourisca de uma Guarita
Sintra - Palácio da Pena
15- «REGRESSO À CÚPULA DA PENA»
[excerto]
Nisto, uma tropa de viajantes
apressados, ajoujados de malas e
sacos, atravessou o largo de corrida, a caminho da estação. Olhei o relógio lá
em cima, e conferi as horas no pulso:
«À 1.50 sai o rápido de Sintra», comentei. E dei um pulo. O cavalheiro que, na
mesa ao lado, se esforçava por ler nas entrelinhas do jornal, sobressaltou de
medo, receando talvez uma agressão. Paguei a despesa, e, atrás do grupo, que já
subia os degraus da entrada, deitei a correr através do largo cheio de sol e de estrépito.
Fui direito à bilheteira:
― Sintra, ida e volta. Ainda apanho o rápido?
O empregado olhou o relógio e respondeu com
placidez:
― Tem cinco minutos.
Era então certo! Surpreendido e feliz, impaciente como há vinte anos com a
lentidão dos ascensores, subi a dois
e dois a escadaria. Era como se tivesse acertado com o número da sorte grande, um júbilo estranho, esta certeza tão minha
de que alguma coisa continuava, um segredo só entre mim e o mundo do meu
regresso... Daí a momentos, encaixado por milagre na carruagem de segunda, com este grato sabor de fumarada na língua, tornei a
ouvir o apito nostálgico da
locomotiva, o mesmo de há... «Mas que seca!», pensei. «Deixe o que lá vai! Hoje
é hoje!»
Aqueles passeios a Sintra tinham sido sempre o meu regalo. Amava as hortas, as praias, os
toiros, o futebol: mas sempre que me apetecia fugir deste simulacro de Inferno aberto em Céu ―
Sintra comigo. Por lá andava todo o santo dia, de chapéu na mão, assobio na
boca, a boa sombra, Seteais, as fontes, almoço no Lawrence (ou no Pombinha, conforme o orçamento), depois os Capuchos,
as ruínas, a Pena... Cheguei mesmo a dormir uma noite, sozinho, nas ameias do
Castelo dos Mouros. Foi no Verão, não há memória dum Agosto assim tão quente. A
coisa mais extraordinária, nunca o hei-de esquecer, foi que o Sol se pôs no
mesmo instante em que a Lua rompeu, e vinha cheia! Um espectáculo como nunca vi
outro, nem sol da meia-noite, nem auroras boreais. Eram dois sóis, qual deles
o maior, qual o mais vermelho, suspensos no horizonte, em lados opostos do
mundo. Parecia uma alucinação ou um caso de espelhismo natural. Durante instantes
tive a ilusão dum «fenómeno» ou cataclismo:
o universo parava, e ficava retido entre aqueles dois bugalhos enormes de luz vermelha e baça... Depois o Sol afundou-se, e a Lua
subiu, empalideceu, esfriou, fez-se uma lua de balada à Soares de Passos. Enfim, lá fiquei essa
noite, e por sinal que me fartei de bater os queixos com frio, sem sobretudo,
no Agosto mais quente de que rezam lendas encantadas.
E aqui vou eu agora a caminho de Sintra, sem mais nem menos, só porque uma tropa fandanga se lembrou de atravessar
o largo, à hora a que dantes havia um rápido, e eu ali sentado a remoer
problemas na esplanada do Suisso!
Olhando a paisagem dura do Cacém, ocorreu-me esta pergunta estúpida: «Se ainda
haverá cisnes pretos no lago?»
Chegado a Sintra, desentorpeci as pernas andando até à vila. O que sempre me
atraía ali eram sobretudo as verduras, as sombras, as fontes, a paisagem, a
altitude. Postado agora na arcaria ogival do Palácio Real, olhei o
alto da Pena, e quis ter asas para galgar os penhascos, roçar os cimos do arvoredo, ir poisar
naquelas torres e ameias dignas
do Walt Disney. Mas, com franqueza, nem asas, nem pernas. Vista cá de baixo, da
vila, a Pena pareceu-me um caso de respeito, ninho de águias, rochedo mitológico, amontoado de ciclopes exasperados, de garras crispadas, a agatanhar o céu. Como é que eu pude
outrora trepar aquilo a pé, depois da caminhada desde Lisboa, como cheguei a
fazer? E o que é que me atraía agora lá acima, que memória, que enamorado
pensamento, que secreto desejo, anseio de galgar o hiato do tempo, desgarradora saudade ou largueza de
vistas? Porque era ali que a vontade me estava chamando.
Corri a tomar uma tipóia que
envelhecia no largo, agarrada às pilecas,
e mandei bater para a Pena.
Não, nem Seteais, nem Capuchinhos, nem sequer a Cruz Alta: a Pena! Daí a pouco,
perna cruzada, chapéu no regaço,
assobio na boca, a alma à larga, a brisa fresca no suor da calva ― por entre o
gemer das molas e o bufar das bestas gastas, eu trepava a serra das serras.
Mandei parar nas fontes e bebi, repetindo os gestos consabidos de quem refaz um velho
conhecimento ou pratica um ritual.
José Rodrigues Miguéis
1 comentário:
As palavras de um Mestre!
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