«A Choca»
A Galinha e os Pintos, por José de Sousa Moura Girão (1884)
16- «A CHOCA»
Ao Senhor Emídio Navarro
Aquela tarde, a Choca recolhera ao poleiro mais cedo do que
o costume. Atrás dela, lembrando doze novelitos de ouro a mexerem-se
como por milagre, os doze filhinhos tinham seguido a mãe, – e lá dentro, qual
deles com mais dificuldade, um a um tinham-se encarrapitado no velho cesto de
palha onde faziam a cama, aninhando-se, o melhor que puderam, debaixo da asa materna.
Eles mesmos tinham estranhado recolher tão cedo aquela
tarde, os pequenitos; – mas, cá fora, o rancho das outras galinhas atribuía
isso à doença da Choca, porque a pobre, com o gogo, metia dó com tamanho
sofrer! Um pouco aterradas, tinham assistido havia três dias a essa operação
que a Choca sofrera, e que certas delas, na grei, sabiam muito dolorosa. A pena
que lhe espetara no pescoço a velha que cuidava delas, fora o mesmo que nada, –
e se mal estava, pior ficara, a pobre! Ainda a trazia, essa pena, mas quase
seca porque não purgava; e entretanto, sem bem lhe fazer, afligia-a como se
fosse um estigma, – tanto ou mais que a própria doença...
Por isso recolhera cedo, a Choca; deixando fora, pelo
terreiro, gozando ainda o seu resto de tarde, o rancho das companheiras.
Ai, eram bem felizes, essas! Pelo buraco do poleiro,
sentia-as agora cacarejar, – e não tardaria que o milho do recolher, que a
velha, todas as tardes, trazia para elas no seu mandil, alvoroçasse no
prazer do costume, em que por via de um grão, às vezes, havia entre todas rixas
alegres, o bando das companheiras...
Só ela, doente, quase já não sabia o que era comer; – e
ainda essa tarde, morta de sede, invejara a gotinha de água que um ou outro dos
seus pintainhos, beberricando na pia, deixava, depois de saciado, cair do
biquinho como uma pérola.
Mas nem comer nem beber, ela, que era muita a gosma, e não
podia! E pelo que tocava a cacarejar, nem o bastante para a ouvirem os filhos,
para os admoestar, para os dirigir, – quanto mais para uma dessas tiradas que
outrora lhe haviam feito, ao romper da manhã, a sua fama de cantadeira! Galos
que ela apaixonara, ciúmes em que fizera arder tantas rivais, ralhos, intrigas,
combates, – como tudo isso ia longe, agora! Nos bebedouros, ela mesma senamorara da
sua figura esbelta, muitas vezes; – e que o não adivinhara na devoção dos
galos, de tantos que a tinham amado, e que ao aclarar das manhãs, todos os
dias, lhe declaravam o seu amor dos poleiros à roda,– adivinhara-o na
inveja das outras, esse prestígio mágico da sua beleza...
Certo galo, sobretudo, agora já velho, – e, como ela, agora
já também sem entusiasmos, dir-se-ia que o enfeitiçara; e agora mesmo, vendo-a
recolher cedo com a ninhada, esse velho e trôpego apaixonado (mas belo, ainda
assim, na sua justa decrepitude) não tardara a recolher-se também. Subtil,
passara, sumira-se ao fundo na sombra densa; e erguendo um voo pesado,
sentira-o aninhar-se onde passava as noites, numa trave a um canto do poleiro.
Cansaço talvez da vida, talvez doença também, – quem lhe dizia a ela, entretanto,
que ele se não recolhera por a ver recolher, por a ver doente, por um impulso
de compaixão, que era agora, talvez, como a agonia do seu velho amor?!
Pelo que respeitava às companheiras, as da sua geração eram
já poucas; e essas, como ela própria, mais saudosas da mocidade, do que
lembradas; e quanto às novas, muitas criara-as ela, – e, sobretudo, não era já
dela que tinham ciúmes...
De resto, ela mesmo era boa companheira; e tirante algum
fogacho de génio por amor dos filhos, se tinha de os proteger ou se lhos
ofendiam, até no comedouro era moderada e no bebedouro; – e muitos pintainhos
doutras ninhadas queriam-lhe como se fosse avó, e os frangos, uma vez por
outra, ela própria, de manhã, ensinava-os a cacarejar.
Ah, mas esse bom tempo ia passado! Já chocara a ninhada com
pouca saúde; e surpreendendo-se, às vezes, sem paciência para aturar os filhos,
ignorava se seria por isso, se por a verem talvez doente, que eles mesmos,
coitadinhos, pareciam às vezes também doentes!
...Entretanto, eles tinham-se aninhado todos, o melhor
que lhes fora possível, debaixo da asa materna; – e embora muito enferma, ela
era feliz, ainda assim, por ter tão quentes os seus pequeninos, – e agora, por
certo, todos a dormir e talvez sonhando..
Trindade Coelho, Os Meus Amores, Lisboa, 1891
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