«Casa Tomada»
Casa Tomada/ Ilustração de Nora Borges
82- «CASA TOMADA»
Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as
casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus
materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos
pais e de toda a nossa infância.
Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela, o que era uma loucura, pois
nessa casa poderiam viver oito pessoas sem se estorvarem. Fazíamos a limpeza
pela manhã, levantando-nos às sete horas, e, por volta das onze horas, eu
deixava para Irene os últimos quartos para repassar e ia para a cozinha. O
almoço era ao meio-dia, sempre pontualmente; já que nada ficava por fazer, a
não ser alguns pratos sujos. Gostávamos de almoçar pensando na casa profunda e
silenciosa e em como conseguíamos mantê-la limpa. Às vezes chegávamos a pensar
que fora ela a que não nos deixou casar. Irene dispensou dois pretendentes sem
motivos maiores, eu perdi Maria Esther pouco antes do nosso noivado. Entramos
na casa dos quarenta anos com a inexpressada ideia de que o nosso simples e
silencioso casamento de irmãos era uma necessária clausura da genealogia
assentada por nossos bisavós na nossa casa. Ali morreríamos algum dia,
preguiçosos e toscos primos ficariam com a casa e a mandariam derrubar para
enriquecer com o terreno e os tijolos; ou melhor, nós mesmos a derrubaríamos
com toda justiça, antes que fosse tarde demais.
Irene era uma jovem nascida para não incomodar ninguém. Fora sua atividade
matinal, ela passava o resto do dia tricotando no sofá do seu quarto. Não sei
por que tricotava tanto, eu penso que as mulheres tricotam quando consideram
que essa tarefa é um pretexto para não fazerem nada. Irene não era assim,
tricotava coisas sempre necessárias, casacos para o inverno, meias para mim,
xales e coletes para ela. Às vezes tricotava um colete e depois o desfazia num
instante porque alguma coisa lhe desagradava; era engraçado ver na cestinha
aquele monte de lã encrespada resistindo a perder sua forma anterior. Aos
sábados eu ia ao centro para comprar lã; Irene confiava no meu bom gosto,
sentia prazer com as cores e jamais tive que devolver as madeixas. Eu
aproveitava essas saídas para dar uma volta pelas livrarias e perguntar em vão
se havia novidades de literatura francesa. Desde 1939 não chegava nada valioso
na Argentina. Mas é da casa que me interessa falar, da casa e de Irene, porque
eu não tenho nenhuma importância. Pergunto-me o que teria feito Irene sem o
tricô. A gente pode reler um livro, mas quando um casaco está terminado não se
pode repetir sem escândalo. Certo dia encontrei numa gaveta da cômoda xales
brancos, verdes, lilases, cobertos de naftalina, empilhados como num armarinho;
não tive coragem de lhe perguntar o que pensava fazer com eles. Não
precisávamos ganhar a vida, todos os meses chegava dinheiro dos campos que ia
sempre aumentando. Mas era só o tricô que distraía Irene, ela mostrava uma
destreza maravilhosa e eu passava horas olhando suas mãos como puas prateadas,
agulhas indo e vindo, e uma ou duas cestinhas no chão onde se agitavam
constantemente os novelos. Era muito bonito.
Como não me lembrar da distribuição da casa! A sala de jantar, lima sala com
gobelins, a biblioteca e três quartos grandes ficavam na parte mais afastada, a
que dá para a rua Rodríguez Pena. Somente um corredor com sua maciça porta de
mogno isolava essa parte da ala dianteira onde havia um banheiro, a cozinha,
nossos quartos e o salão central, com o qual se comunicavam os quartos e o
corredor. Entrava-se na casa por um corredor de azulejos de Maiorca, e a porta
cancela ficava na entrada do salão. De forma que as pessoas entravam pelo
corredor, abriam a cancela e passavam para o salão; havia aos lados as portas
dos nossos quartos, e na frente o corredor que levava para a parte mais
afastada; avançando pelo corredor atravessava-se a porta de mogno e um pouco
mais além começava o outro lado da casa, também se podia girar à esquerda
justamente antes da porta e seguir pelo corredor mais estreito que levava para
a cozinha e para o banheiro. Quando a porta estava aberta, as pessoas percebiam
que a casa era muito grande; porque, do contrário, dava a impressão de ser um
apartamento dos que agora estão construindo, mal dá para mexer-se; Irene e eu
vivíamos sempre nessa parte da casa, quase nunca chegávamos além da porta de
mogno, a não ser para fazer a limpeza, pois é incrível como se junta pó nos
móveis. Buenos Aires pode ser uma cidade limpa; mas isso é graças aos seus
habitantes e não a outra coisa. Há poeira demais no ar, mal sopra uma brisa e
já se apalpa o pó nos mármores dos consoles e entre os losangos das toalhas de
macramê; dá trabalho tirá-lo bem com o espanador, ele voa e fica suspenso no ar
um momento e depois se deposita novamente nos móveis e nos pianos.
Lembrarei sempre com toda a clareza porque foi muito simples e sem
circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando no seu quarto, por volta das
oito da noite, e de repente tive a idéia de colocar no fogo a chaleira para o
chimarrão. Andei pelo corredor até ficar de frente à porta de mogno
entreaberta, e fazia a curva que levava para a cozinha quando ouvi alguma coisa
na sala de jantar ou na biblioteca. O som chegava impreciso e surdo, como uma
cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa. Também o ouvi, ao
mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que levava daqueles
quartos até a porta. Joguei-me contra a parede antes que fosse tarde demais,
fechei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava colocada do
nosso lado e também passei o grande fecho para mais segurança.
Entrei na cozinha, esquentei a chaleira e, quando voltei com a bandeja do
chimarrão, falei para Irene:
— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos.
Ela deixou cair o tricô e olhou para mim com seus graves e cansados olhos.
— Tem certeza?
Assenti.
— Então — falou pegando as agulhas — teremos que viver deste lado.
Eu preparava o chimarrão com muito cuidado, mas ela demorou um instante para
retornar à sua tarefa. Lembro-me de que ela estava tricotando um colete cinza;
eu gostava desse colete.
Os primeiros dias pareceram-nos penosos, porque ambos havíamos deixado na parte
tomada muitas coisas de que gostávamos. Meus livros de literatura francesa, por
exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene pensou numa garrafa de Hesperidina
de muitos anos. Frequentemente (mas isso aconteceu somente nos primeiros dias)
fechávamos alguma gaveta das cómodas e nos olhávamos com tristeza.
— Não está aqui.
E era mais uma coisa que tínhamos perdido do outro lado da casa.
Porém também tivemos algumas vantagens. A limpeza simplificou-se tanto que,
embora levantássemos bem mais tarde, às nove e meia por exemplo, antes das onze
horas já estávamos de braços cruzados. Irene foi se acostumando a ir junto
comigo à cozinha para me ajudar a preparar o almoço. Depois de pensar muito,
decidimos isto: enquanto eu preparava o almoço, Irene cozinharia os pratos para
comermos frios à noite. Ficamos felizes, pois era sempre incômodo ter que
abandonar os quartos à tardinha para cozinhar. Agora bastava pôr a mesa no
quarto de Irene e as travessas de comida fria.
Irene estava contente porque sobrava mais tempo para tricotar. Eu andava um
pouco perdido por causa dos livros, mas, para não afligir minha irmã, resolvi
rever a coleção de selos do papai, e isso me serviu para matar o tempo.
Divertia-nos muito, cada um com suas coisas, quase sempre juntos no quarto de
Irene que era o mais confortável. Às vezes Irene falava:
— Olha esse ponto que acabei de inventar. Parece um desenho de um trevo?
Um instante depois era eu que colocava na frente dos seus olhos um quadradinho
de papel para que olhasse o mérito de algum selo de Eupen e Malmédy. Estávamos
muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar. Pode-se viver sem pensar.
(Quando Irene sonhava em voz alta eu perdia o sono. Nunca pude me acostumar a
essa voz de estátua ou papagaio, voz que vem dos sonhos e não da garganta.
Irene falava que meus sonhos consistiam em grandes sacudidas que às vezes
faziam cair o cobertor ao chão. Nossos quartos tinham o salão no meio, mas à
noite ouvia-se qualquer coisa na casa. Ouvíamos nossa respiração, a tosse,
pressentíamos os gestos que aproximavam a mão do interruptor da lâmpada, as
mútuas e frequentes insónias.
Fora isso tudo estava calado na casa. Durante o dia eram os rumores domésticos,
o roçar metálico das agulhas de tricô, um rangido ao passar as folhas do álbum
filatélico. A porta de mogno, creio já tê-lo dito, era maciça. Na cozinha e no
banheiro, que ficavam encostados na parte tomada, falávamos em voz mais alta ou
Irene cantava canções de ninar. Numa cozinha há bastante barulho da louça e
vidros para que outros sons irrompam nela. Muito poucas vezes permitia-se o
silêncio, mas, quando voltávamos para os quartos e para o salão, a casa ficava
calada e com pouca luz, até pisávamos devagar para não incomodar-nos. Creio que
era por isso que, à noite, quando Irene começava a sonhar em voz alta, eu
ficava logo sem sono.)
É quase repetir a mesma coisa menos as consequências. Pela noite sinto sede, e
antes de ir para a cama eu disse a Irene que ia até a cozinha pegar um copo
d'água. Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho na cozinha ou talvez no
banheiro, porque a curva do corredor abafava o som. Chamou a atenção de Irene
minha maneira brusca de deter-me, e veio ao meu lado sem falar nada. Ficamos
ouvindo os ruídos, sentindo claramente que eram deste lado da porta de mogno,
na cozinha e no banheiro, ou no corredor mesmo onde começava a curva, quase ao
nosso lado.
Sequer nos olhamos. Apertei o braço de Irene e a fiz correr comigo até a porta
cancela, sem olhar para trás. Os ruídos se ouviam cada vez mais fortes, porém
surdos, nas nossas costas. Fechei de um golpe a cancela e ficamos no corredor.
Agora não se ouvia nada.
— Tomaram esta parte — falou Irene. O tricô pendia das suas mãos e os fios
chegavam até a cancela e se perdiam em baixo da porta. Quando viu que os
novelos tinham ficado do outro lado, soltou o tricô sem olhar para ele.
— Você teve tempo para pegar alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente.
— Não, nada.
Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário do
quarto. Agora já era tarde.
Como ainda ficara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei
com meu braço a cintura de Irene (acho que ela estava chorando) e saímos assim
à rua. Antes de partir senti pena, fechei bem a porta da entrada e joguei a
chave no ralo da calçada. Não fosse algum pobre-diabo ter a ideia de roubar e
entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada.
Julio Cortázar
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