«Uma Árvore de Natal e um Casamento»
Casamento Russo, por Marc Chagall (1909)
81- «UMA ÁRVORE DE NATAL E UM CASAMENTO»
Um dia destes, vi um casamento… mas não, prefiro falar-vos
de uma árvore de Natal. Achei o casamento bem bonito, mas a árvore de Natal me
agradou mais. Nem sei como, olhando para o casamento, me lembrei da árvore. Eis
como o caso se passou.
Há cerca de cinco anos fui convidado, na véspera de Natal,
para um baile infantil. A pessoa que me convidou era um conhecido homem de
negócios, cheio de relações e maquinações, e, assim, não se há de estranhar que
o baile infantil servisse apenas de pretexto para os pais se reunirem e, no
meio da multidão, se ocuparem de seus interesses materiais com ar inocente e
surpreendido.
Como houvesse chegado ali por acaso e não tivesse nenhum
assunto comum com os outros, passei a noite de maneira muito independente.
Havia mais um cavalheiro que, como eu, não tinha, decerto, conhecidos no grupo,
e participava casualmente da felicidade familiar. Ele deu-me na vista antes de
todos. Era um homem alto, magro, muito sério, vestido muito decentemente.
Notava-se que a felicidade da família não lhe comunicava a menor alegria; mal
se retirava a um cantinho, cessava de sorrir e franzia as sobrancelhas espessas
e negras.
Afora o dono da casa, não conhecia vivalma em todo o baile.
Via-se que ele se entediava horrivelmente, mas que resolvera manter até o fim o
papel do homem que se diverte e é feliz. Soube depois que era um provinciano
vindo à capital a algum negócio importante e complicado. Trouxera carta de
recomendação para o nosso hospedeiro, que o protegia, porém, não com amor, e o
convidara, por cortesia, para o baile infantil. Não jogavam cartas com o
provinciano, ninguém lhe oferecia um charuto nem com ele entabulava
conversação, talvez porque reconhecessem de longe o pássaro pela plumagem, e,
deste modo, o meu cavalheiro via-se obrigado, para ter que fazer das mãos, a
alisar a noite inteira as suas suíças. Eram, aliás, umas suíças realmente belas
– porém ele as acariciava com tanto zelo que a gente, ao fitá-lo, sentia-se
inclinada a pensar que primeiro vieram ao inundo as suíças e só depois o homem,
para cofiá-las, inserido entre elas.
Além desse personagem, que tomava parte na felicidade do
dono da casa, pai de cinco garotos bem nutridos, do modo que acabo de relatar,
outro conviva caíra no meu agrado. Mas este era de aspecto completamente
diverso. Era um personagem a quem os outros chamavam Julião Mastakovitch.
Percebia-se à primeira vista que era ele o convidado de honra. Estava para o
dono da casa como este para o cavalheiro que afagava as suíças. O dono e a dona
da casa falavam-lhe com amabilidade extraordinária, cortejavam-no, enchiam-lhe
o copo, amimavam-no, e lhe apresentavam, recomendando-os, vários convidados, ao
passo que a ele não o apresentavam a ninguém. Notei até uma lágrima nos olhos
do hospedeiro quando Julião Mastakovitch observou que raras vezes passara o
tempo de maneira tão agradável como naquela noite. Comecei a sentir-me
acabrunhadíssimo em presença de semelhante figura, e, depois de haver admirado
as crianças, retirei-me a um pequeno salão, totalmente vazio, e fui sentar-me
sob o florido caramanchão da dona da casa, o qual ocupava quase a metade de
toda a peça.
Eram as crianças incrivelmente gentis, e não queriam, apesar
de todas as exortações das mamãs e das governantas, parecer-se com as pessoas
grandes. Num piscar de olho desmontaram toda a árvore de Natal, e conseguiram
quebrar a metade dos brinquedos antes mesmo de saber a quem eram destinados.
Achei particularmente engraçado um menino de olhos pretos e cabelos frisados
que à viva força me queria matar com a sua espingarda de pau. Entretanto, mais
que todos, atraía-me a atenção sua irmã, menina de onze anos, um amor de
criança, meiga, cismativa, pálida, com grandes olhos sonhadores à flor do
rosto. Parecia
que os amiguinhos a tinham ofendido, pois veio ao salão onde
eu estava sentado e, a um cantinho, pôs-se a brincar com as suas bonecas. Os
convidados apontavam, com respeito, um rico negociante, pai da menina, e alguém
observou, cochichando, que ela já tinha trezentos mil rublos reservados como
dote. Voltei-me para ver quem se interessava por esses pormenores, e o meu
olhar caiu sobre Julião Mastakovitch o qual, de mãos cruzadas atrás das costas
e inclinando a cabeça para um lado, parecia acompanhar com particular atenção o
mexerico de alguns senhores. Pouco depois, não pude furtar-me a admirar a
sabedoria dos anfitriões na distribuição dos brindes às crianças. A menina que
já tinha seus trezentos mil rublos de dote ganhou uma boneca suntuosíssima.
Desde então os presentes foram diminuindo de valor, de
acordo com a diminuição da importância dos pais daquelas crianças felizes.
Afinal, a última’ um menino de dez anos, magrinho, baixinho, sardento e ruivo,
ganhou apenas um livrinho de contos sobre as maravilhas da natureza, das
lágrimas da sensibilidade, etc., sem estampas e até sem vinhetas. Filho da
governanta dos meninos da casa, uma pobre viúva, era um pequeno muitíssimo
encolhido e tímido, metido num pobre paletozinho de nanquim. Recebido o seu
livrinho, andou muito tempo à volta dos brinquedos dos outros. Tinha uma
vontade imensa de brincar com as outras crianças, mas não se atrevia; claro, já
sabia e compreendia a sua situação.
Gosto muito de observar crianças. São sobremodo curiosas as
suas primeiras manifestações independentes na vida. Notei, pois, que o menino
ruivo se deixava seduzir pelos brinquedos dos outros, sobretudo pelo teatro, em
que ele se empenhava para representar um papel qualquer, a ponto de aviltar-se.
Pegou a sorrir para os outros, a cortejá-los, deu a sua maçã a um pequeno gordo
que já tinha o lenço cheio de presentes, e até se ofereceu para carregar outro,
só para que não o afastassem do teatro. No entanto, poucos minutos após um
rapazinho arrogante deu-lhe uma boa surra. O ruivinho nem teve coragem de
chorar. Logo apareceu sua mãe, a governanta, e ordenou-lhe não se intrometesse
nos brinquedos alheios. O menino retirou-se para o salão onde estava a menina
bonita. Esta o deixou aproximar-se, e as duas crianças entraram a enfeitar a
suntuosa boneca.
Fazia já meia hora que eu estava sentado no caramanchão de
hera, e quase adormecera ao zunzum da conversa entre o ruivinho e a menina dos
trezentos mil rublos de dote, que se entretinham a respeito da boneca, quando
de repente vi entrar no salão Julião Mastakovitch. Aproveitando a distracção dos
presentes com uma briga surgida entre as crianças, saíra do salão principal sem
fazer barulho.
Notara eu, poucos minutos antes, que ele mantinha animada
palestra com o pai da futura noiva rica, a quem mal acabara de conhecer,
explicando-lhe as vantagens de qualquer emprego público sobre os demais. Parou
à porta, tomado de hesitação, e parecia calcular alguma coisa nas pontas dos
dedos.
- Trezentos. . . trezentos – murmurava.- Onze.. . doze.. .
treze… até dezasseis, são cinco anos… Façamos de conta que sejam quatro por
cento, são doze… cinco vezes doze, sessenta; estes sessenta… bem, calculados
por alto, ao cabo de cinco anos serão quatrocentos. Está certo… Mas naturalmente
o malandro não os terá colocado a quatro por cento! Talvez receba oito ou até
dez por cento. Suponhamos que sejam quinhentos, no mínimo, sim, quinhentos mil,
na certa. .. o excedente gasta-se no enxoval, hum…
Acabou a meditação, assoou-se, e, indo a sair do salão,
súbito avistou a menina e estacou. Como eu estivesse assentado atrás dos vasos
de flores, não me pôde ver. Tive a impressão de que o homem se achava muito
excitado. Seria o cálculo que operava esse efeito sobre ele, ou outro motivo
qualquer? Não sei, seja como for, o certo é que esfregava as mãos e não
conseguia permanecer no mesmo lugar.
Quando a sua agitação chegou ao cúmulo, parou um instante e
lançou um segundo olhar, muito resoluto, à futura noiva. Quis aproximar-se
dela, mas primeiro olhou em redor. Depois, como quem tem sentimentos
criminosos, aproximou-se da criança nas pontas dos pés. Com um sorrisinho nos
lábios, inclinou-se para ela e beijou-a na testa. A menina, não esperando a
agressão, gritou assustada.
- Que é que você está fazendo aqui, bela menina?; perguntou
ele em voz baixa.
E, olhando em torno de si, deu-lhe uma palmadinha no rosto.
- Estamos brincando…
- Com ele? – disse Julião Mastakovitch fitando o menino de
esguelha.
E logo acrescentou:
- Escuta, meu amigo, por que não vais para o salão?
O menino fitava-o sem falar, de olhos arregalados. Julião
Mastalovitch olhou de novo em redor e aproximou-se outra vez da pequena:
- Que é que você tem aí bela menina? Uma bonequinha?- Uma
bonequinha – respondeu a criança de cara fechada, cabisbaixa.
- Uma bonequinha… Mas você sabe, gentil menina, de que é
feita a bonequinha?
- Não sei… – cochichou a pequena, abaixando ainda mais a cabeça.
- De trapos, minha alma… Mas tu, meu filho, deverias ir para
o salão brincar com os teus camaradas, – disse Julião Mastakovitch encarando o
menino com severidade.
As duas crianças franziram a testa e agarraram-se pela mão.
Não queriam separar-se.
- Sabe você por que lhe deram essa bonequinha? – perguntou
Julião Mastakovitch baixando cada vez mais a voz.
- Não.
- Porque você é uma criança boa e se comportou bem a semana
toda.
Perturbado a mais não poder, Julião Mastakovitch lançou mais
uma vez um olhar em roda, e baixou a voz de modo que a sua pergunta, formulada
em tom impaciente e embargada pela emoção, saiu quase imperceptível:
- Diga-me, gentil menina: você gostará de mim se eu fizer
uma visita a seus pais?
Havendo proferido tais palavras, Julião Mastakovitch quis
beijar a pequena mais uma vez; mas o menino, vendo-a prestes a romper no choro,
puxou-a pela mão e, compadecido, começou, ele próprio, a choramingar.
Dessa vez Julião Mastakovitch aborreceu-se deveras.
- Vai-te embora – disse ao menino – Vai para a sala brincar
com os teus camaradas.
- Não vá, não – protestou a menina. – Você é que deve ir-se
embora. Deixe-o aqui, deixe-o – disse quase soluçando.
Alguém fez barulho à porta. Assustado, Julião Mastakovitch
ergueu no mesmo instante o corpo majestoso. O menino ruivo, porém, assustou-se
ainda mais do que ele, largou a mão da menina e, devagarinho, roçando a parede,
caminhou do salão à sala de jantar. Para não despertar suspeitas, Julião
Mastakovitch também passou à sala de jantar. Estava vermelho feito uma lagosta
e, mirando-se ao espelho, parecia até envergonhado de si mesmo, talvez
arrependido da sua sofreguidão. Teria sido o cálculo feito na ponta dos dedos
que o arrebatara a ponto de inspirar-lhe, apesar de toda a sua seriedade e
gravidade, um procedimento de criança? Aproximava-se de chofre do seu objectivo,
embora este não viesse a tornar-se um objectivo real antes de cinco anos, no
mínimo.
Acompanhei o respeitável cavalheiro à sala de jantar, e ali
testemunhei um espectáculo curioso. Rubro de raiva e despeito, Julião
Mastakovitch perseguia o menino ruivo, o qual, recuando cada vez mais, já não
sabia para onde correr:
- Sai daqui! Que diabo vens fazer aqui, velhaco? Vieste
roubar frutas, hem? Vieste? Fora daqui, patife! Vai, fedelho, procura os teus
camaradas!
Espantado, o pequeno recorreu a um expediente extremo: foi
esconder-se debaixo da mesa. Então o seu perseguidor, no auge da excitação,
puxou do bolso o grande lenço de baptista e, brandindo-o, procurou enxotar o
menino do seu esconderijo.
Este se encolhia caladinho, sem se mexer. Cumpre observar
que Julião Mastakovitch era um tanto gordo: rapaz bem nutrido, corado,
barrigudo, de pernas robustas, – em uma palavra, como se costuma dizer, redondo
e forte como uma noz.
Suava, enrubescia, arfava terrivelmente. Estava exasperado
por um sentimento de indignação e, quem sabe, de ciúme. Não pude conter uma
gargalhada. Julião Mastakovitch virou-se e, a despeito de toda a sua
importância, ficou mortalmente acanhado. Nesse instante, na porta oposta, apareceu
o dono da casa. O ruivinho saiu logo do esconderijo e pôs-se a limpar os
joelhos e os cotovelos. Julião Mastakovitch, com um gesto rápido, levou ao
nariz o lenço que tinha na mão, seguro por uma das extremidades.
O dono da casa fitava-nos aos três, perplexo, mas, como
homem que conhece a vida e a considera pelo lado sério, resolveu aproveitar a
circunstância de encontrar-se quase a sós com o seu hóspede.
- É este o menino – disse indicando o ruivinho – que tive a
honra de lhe recomendar…
- É? – respondeu Julião Mastakovitch, que ainda não voltara
inteiramente a si.
- É filho da governanta de meus filhos – prosseguiu o dono
da casa em tom de solicitação -, uma senhora pobre, viúva de um funcionário
honesto; portanto, Julião Mastakovitch… se for possível. . .
- Mas não é;exclamou sem demora Julião Mastakovitch. –
Perdoe-me, Filipe Alexeievitch, é totalmente impossível. Pedi informações… No
momento não há vaga, e, ainda que houvesse, já se tem dez candidatos, cada um
mais qualificado que este..
- Sinto muito… muitíssimo..
- É pena – disse o dono da casa. – É um menino bonzinho,
modesto . . .
- Pelo que vejo, é um grandíssimo vadio, – estourou Julião
Mastakovitch, com uma careta histérica. – Sai daí, menino. Que é que tu queres
aí? Vai brincar com os teus camaradas; disse ainda, voltando-se para o
ruivinho.
Não conseguindo mais conter-se, olhou para mim de soslaio.
Por minha vez, não pude deixar de lhe rir deliberadamente nas barbas. Ele
desviou de mim os olhos, e em voz bem alta perguntou ao dono da casa quem era
aquele rapaz esquisito.
Saíram os dois da sala cochichando. Vi que Julião Mastakovitch,
ouvindo as explicações de seu hospedeiro, abanava a cabeça, meio desconfiado.
Ri a bom rir com os meus botões, e voltei ao salão. Rodeado
de mamãs, de papás e dos donos da casa, o grande homem explicava alguma coisa
com muito calor a uma senhora a quem acabavam de apresentá-lo. Esta segurava
pela mão a menina com quem, dez minutos antes, Julião Mastakovitch representara
a sua cena no pequeno salão. Agora ele estava-se derramando em estáticos
elogios à beleza, aos talentos, à graça e à boa educação da gentil menina.
Manifestamente engodava a mãezinha, que o escutava quase com lágrimas de
enlevo. Os lábios do pai sorriam. O dono da casa alegrava-se com essas alegres
efusões. Os próprios convidados tomavam parte no júbilo; até os brinquedos das
crianças foram suspensos para não se perturbar a conversa. Era uma atmosfera
quase religiosa.
Logo depois, ouvi a mãe da interessante pequena, comovida
até o fundo da alma pedir a Julião Mastakovitch, com expressões escolhidas, que
lhe desse a subida honra de distinguir-lhe a casa com sua preciosa visita, e
ele aceitou o convite com entusiasmo; enfim, ouvi os demais convidados, no
momento da de despedida, expandirem-se, como o exigiam as conveniências, em
louvores comovidos ao rico negociante, a sua mulher e a sua filha, e
principalmente a Julião Mastakovitch.
- É casado esse cavalheiro? – perguntei em voz quase alta a
um conhecido que estava mais perto dele.
Julião Mastakovitch enviou-me um olhar indagador e feroz.
- Não – disse-me o meu conhecido, profundamente penalizado
com a leviandade que eu de propósito cometera.
Passava eu, há pouco tempo, em frente à igreja quando um grande ajuntamento me despertou a atenção. Em redor falava-se de um
casamento. O dia estava nublado, começava a chuviscar; entrei na igreja abrindo
caminho através da multidão. Logo avistei o noivo. Era um rapaz baixo, gordo,
bem nutrido, de ventre ponderável, muito enfeitado, que corria para todos os
lados, se agitava sem parar, dava ordens. Enfim, levantou-se um murmúrio de
vozes anunciando a chegada da noiva. Fendi a turba de curiosos e vi uma jovem
de admirável beleza, para quem a primavera apenas começava. Mas estava pálida e
parecia triste a linda noiva.
Olhava distraída e tinha os olhos vermelhos, o que me deu
impressão de lágrimas recentes. A severidade clássica de suas feições
emprestava-lhe à beleza uma expressão algo solene. Através daquela severidade,
daquela gravidade, de toda aquela tristeza, transpareciam os traços de uma
criança inocente, algo de incrivelmente ingénuo, juvenil e ainda não formado,
que parecia, sem palavras, implorar piedade.
Ouvi observar que ela mal acabava de completar dezasseis
anos. Examinando atento o noivo, nele reconheci Julião Mastakovitch, que eu não
via desde cinco anos.
Olhei para ela… Meu Deus! Fendi a multidão outra vez para
sair da igreja o mais breve possível. Ainda ouvi um espectador dizer que a
noiva era rica, que tinha quinhentos mil rublos de dote… e não sei mais quanto
para o enxoval.
- Então o cálculo era justo; disse comigo.
- E saí para a rua.
Fiódor Dostoiévski
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