«O Dente Quebrado»
A Máscara, por JPGalhardas
85- «O DENTE QUEBRADO»
Aos doze anos de idade, Juan Pena, brigando com uns moleques
de rua, levou uma pedrada num dente; o sangue correu, lavando-lhe o sujo da
cara, e o dente partiu-se em forma de serra. Nesse dia começa a idade de ouro
de Juan Pena.
Com a ponta da língua, Juan passava o tempo a roçar o dente quebrado — o corpo
imóvel, o olhar vago, sem pensar. Assim, de rebelde e brigão que era, fez-se
calado e manso.
Os pais de Juan, fartos de ouvir queixas da vizinhança e dos transeuntes —
vítimas das perversidades do garoto —, e que haviam esgotado toda espécie de
repreensões e castigos, achavam-se agora estupefactos e aflitos com essa
transformação.
Juan não dizia uma palavra, e passava horas a fio em atitude hierática, como em
êxtase, enquanto lá dentro, na escuridão da boca fechada, sua língua acariciava
o dente quebrado. Sem pensar.
— Esse menino não anda bem, Paulo — dizia a mãe ao marido.
— É preciso chamar o médico.
Veio o doutor, grave e pançudo, e fez o diagnóstico: pulso normal, bochechas
sanguíneas, excelente apetite, nenhum sintoma de doença.
— Minha senhora — acabou por dizer o sábio, depois de longo exame —, a
honestidade da minha pessoa impõe que lhe declare...
— O quê, senhor doutor de minha alma? — interrompeu a angustiada mãe.
— Que seu filho está são como um perro. O que é indiscutível — continuou, em
voz misteriosa —, é que estamos em face de um caso fenomenal: seu filho, minha
estimável senhora, sofre daquilo a que hoje chamamos o mal de pensar; numa
palavra, seu filho é um filósofo precoce, um génio talvez.
Na escuridão da boca, Juan acariciava o seu dente quebrado. Sem pensar.
Parentes e amigos fizeram-se eco da opinião do doutor, acolhida com
indescritível júbilo pelos pais de Juan. Dentro em pouco, citava-se em toda a
cidade o espantoso caso do “menino-prodígio”, e sua fama cresceu como um balão
inchado de fumaça. Até o mestre-escola, que sempre o tivera como a cabeça mais
lerda deste mundo, submeteu-se à opinião geral, visto que a voz do povo é a voz
de Deus. E cada um trazia a confronto o seu exemplo: Demóstenes comia areia;
Shakespeare era um malandrinho esfarrapado; Edison etc.
Cresceu Juan Pena entre livros abertos diante dos olhos, mas que ele não lia,
distraído pela tarefa de sua língua ocupada em tocar a pequena serra do dente
quebrado. Sem pensar.
E, com o corpo, crescia-lhe a reputação de homem judicioso, sábio e “profundo”,
e ninguém se cansava de louvar o talento maravilhoso de Juan.
Juan ainda em plena mocidade, e as mais belas mulheres tratando de seduzir e
conquistar aquele espírito superior, entregue a fundas meditações, segundo o
julgamento de todos, mas que, na escuridão de sua boca, roçava o dente
quebrado. Sem pensar.
Passaram-se meses e anos, e Juan Pena foi deputado, académico, ministro. E
achava-se a pique de ser eleito presidente da República, quando a apoplexia o
surpreendeu, acariciando com a ponta da língua o seu dente quebrado.
E os sinos dobraram; e foi decretado rigoroso luto nacional; um orador chorou,
numa oração fúnebre, em nome da pátria; e caíram rosas e lágrimas sobre o túmulo
do grande homem que não tivera tempo de pensar.
Pedro Emílio Coll
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