«De Cima Para Baixo»
Conto de Artur Azevedo
86- «DE CIMA PARA BAIXO»
Naquele dia o ministro chegou de mau humor ao seu gabinete,
e imediatamente mandou chamar o director-geral da Secretaria. Este, como se
movido por uma pilha eléctrica, poucos instantes depois estava em presença de
Sua Excelência, que o recebeu com duas pedras na mão.
— Estou furioso! — exclamou o conselheiro; — por sua causa passei por uma
vergonha diante de Sua Majestade o Imperador!
— Por minha causa? — perguntou o director-geral, abrindo muito os olhos e
batendo no peito.
— O senhor mandou-me na pasta um decreto de nomeação sem o nome do funcionário
nomeado!
— Que me está dizendo, Excelentíssimo?...
E o director-geral, que era tão passivo e humilde com os superiores quão
arrogante e autoritário com os subalternos, apanhou rapidamente no ar o decreto
que o ministro lhe atirou, em risco de lhe bater na cara, e depois de escanchar
a luneta no nariz, confessou em voz sumida:
— É verdade! Passou-me! Não sei como isto foi...
— É imperdoável esta falta de cuidado! Deveriam merecer-lhe um pouco mais de
atenção os actos que têm de ser submetidos à assinatura de Sua Majestade,
principalmente agora que, como sabe, está doente o seu oficial-de-gabinete!
Dando um murro sobre a mesa, o ministro prosseguiu:
— Por sua causa esteve iminente uma crise ministerial. Ouvi palavras tão
desagradáveis, proferidas pelos augustos lábios de Sua Majestade, que dei a
minha demissão...
— Oh!...
— Sua Majestade não a aceitou...
— Naturalmente! Fez Sua Majestade muito bem.
— Não a aceitou porque me considera muito, e sabe que a um ministro ocupado
como eu é fácil escapar um decreto mal copiado.
— Peço mil perdões a Vossa Excelência — protestou o director-geral,
terrivelmente impressionado pela palavra demissão. — O acúmulo de serviço fez
com que me escapasse tão grave lacuna; mas afirmo a Vossa Excelência que de
agora em diante hei de ter o maior cuidado em que não se reproduzam fatos desta
natureza.
O ministro deu-lhe as costas e encolheu os ombros, dizendo:
— Bom! mande reformar essa porcaria!
O director-geral saiu, fazendo muitas mesuras. Chegando no seu gabinete, mandou
chamar o chefe da 3ª secção, que o encontrou fulo de cólera.
— Estou furioso! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. Ministro!
— Por minha causa?
— O senhor mandou-me na pasta um decreto sem o nome do funcionário nomeado! — E
atirou-lhe o papel, que caiu no chão.
O chefe da 3ª secção apanhou-o, atónito. Depois de se certificar do erro,
balbuciou:
— Queira Vossa Senhoria desculpar-me, Sr. Director... são coisas que
acontecem... havia tanto serviço... e tudo tão urgente!...
— O Sr. Ministro ficou, e com razão, exasperado! Tratou-me com toda a
consideração, com toda a afabilidade, mas notei que estava fora de si!
— Não era caso para tanto.
— Não era caso para tanto? Pois olhe, Sua Excelência disse-me que eu devia
suspender o chefe de secção que me mandou isto na pasta!
— Eu... Vossa Senhoria...
— Não o suspendo. Limito-me a fazer-lhe uma advertência, de acordo com o
regulamento.
— Eu... Vossa Senhoria...
— Não me responda! Não faça a menor observação! Retire-se, e mande reformar
essa porcaria!
O chefe da 3ª secção retirou-se confundido, e foi ter à mesa do amanuense que
tão mal copiara o decreto:
— Estou furioso, Sr. Godinho! Por sua causa passei por uma vergonha diante do
Sr. director-geral!
— Por minha causa?
— O senhor é um empregado inepto, desidioso, desmazelado, incorrigível! Este
decreto não tem o nome do funcionário nomeado!
E atirou o papel, que bateu no peito do amanuense.
— Eu devia propor a sua suspensão por 15 dias ou um mês. Limito-me a
repreendê-lo, na forma do regulamento! O que eu teria ouvido, se o Sr.
director-geral me não tratasse com tanto respeito e consideração!
— O expediente foi tanto, que não tive tempo de reler o que escrevi...
— Ainda o confessa!
— Fiei-me em que o Sr. chefe passasse os olhos...
— Cale-se!... Quem sabe se o senhor pretende ensinar-me quais sejam as minhas
atribuições?!...
— Não, senhor, e peço-lhe que me perdoe esta falta...
— Cale-se, já lhe disse, e trate de reformar essa porcaria!...
O amanuense obedeceu. Acabado o serviço, tocou a campainha e apareceu um
contínuo.
— Por sua causa passei por uma vergonha diante do chefe da secção!
— Por minha causa?
— Sim, por sua causa! Se você ontem não tivesse levado tanto tempo a trazer-me
o papel imperial que lhe pedi, não teria eu passado a limpo este decreto com
tanta pressa, o que me levou a omitir o nome do nomeado.
— Foi porque...
— Não se desculpe! Você é um contínuo muito relaxado! Se o chefe não me
considerasse tanto, eu estaria suspenso, e a culpa seria sua! Retire-se!
— Mas...
— Retire-se, já lhe disse! E deve dar-se por muito feliz. Eu poderia queixar-me
de você!...
O contínuo saiu dali, e foi vingar-se num servente preto, que cochilava num
corredor da Secretaria.
— Estou furioso! Por sua causa passei pela vergonha de ser repreendido por um
bigorrilhas!
— Por minha causa?
— Sim. Quando te mandei ontem buscar na portaria aquele papel imperial, por que
te demoraste tanto?
— Porque...
— Cala a boca! Isto aqui é andar muito direitinho, entendes? Porque, no dia em
que eu me queixar de ti ao porteiro, estás no olho da rua. Serventes não
faltam!...
O preto não redarguiu.
O pobre diabo não tinha ninguém abaixo de si, em quem pudesse desforrar-se da
agressão do contínuo; entretanto, quando depois do jantar, sem vontade, entrou
no pardieiro em que morava, deu um tremendo pontapé no seu cão.
O mísero animal, que vinha alegre dar-lhe as boas-vindas, ganiu, ganiu,
ganiu,
e voltou a lamber-lhe humildemente os pés.
O cão pagou pelo servente, pelo contínuo, pelo amanuense, pelo chefe da secção,
pelo director-geral e pelo ministro!...
Artur Azevedo
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