«Os Grandes Frios do Natal»
Paul Signac, por Théo van Rysselberghe
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Poet'anarquista
80- «OS GRANDES FRIOS DO NATAL»
A temperatura caíra subitamente na sala para sete graus
abaixo de zero (-22º centígrados).
Mas se o doutor estava já sem imaginação, já não sabia o que fazer, outros
sabiam-no por ele. Assim Shandon, frio e resoluto, Pen, a cólera espelhada nos
olhos, e dois ou três dos seus camaradas, os que ainda conseguiam mexer-se,
avançaram para Hatteras.
- Capitão! – disse Shandon.
Hatteras, absorto pelos seus pensamentos, não o ouviu.
- Capitão! – repetiu Shandon, tocando-lhe na mão.
Hatteras endireitou-se.
- Senhor – disse.
- Capitão, já não temos fogo.
- E então? – respondeu Hatteras.
- Se é sua intenção matar-nos de frio – retomou Shandon com uma terrível ironia
– pedimos-lhe que nos informe desde já!
- A minha intenção – respondeu Hatteras num tom grave – é que
cada um aqui cumpra o seu dever até ao fim.
- Há algo que está acima do dever, capitão. – respondeu o imediato – É o
direito à própria vida. Repito-lhe que não temos fogo e, se isto continua,
dentro de dois dias, nenhum de nós estará vivo!
- Não tenho madeira – respondeu Hatteras em voz surda.
- Pois bem! – exclamou violentamente Pen – Visto que não há mais madeira,
resta-nos ir cortá-la onde ela existe!
Hatteras empalideceu de cólera.
- Onde?
- A bordo – respondeu insolentemente o marinheiro.
- A bordo! – retomou o capitão, de punhos crispados e os olhos brilhantes.
- Sem dúvida – respondeu Pen – Quando o navio já não serve para transportar
a sua tripulação, queima-se o navio!
a sua tripulação, queima-se o navio!
No início desta frase, Hatteras empunhara um machado; no fim,
o machado erguia-se
sobre a cabeça de Pen.
- Miserável! – exclamou.
O doutor atirou-se para a frente de Pen, que o empurrou; o machado, caindo por
terra, fendeu profundamente o soalho. Johnson, Bell, Simpson, agrupados em
trono de Hatteras, pareciam decididos a apoiá-lo. Mas umas vozes lastimosas,
queixosas, dolorosas, escaparam-se dos catres transformados em leitos de morte.
- Fogo! Fogo! – gritavam os infortunados doentes, invadidos pelo frio sob os
cobertores.
Hatteras fez um esforço, e, passados alguns instantes de silêncio, pronunciou estas
palavras num tom calmo:
- Se destruirmos o nosso navio, como regressaremos a Inglaterra?
[…]
O gelo alastrava criando longos espelhos foscos sobre o soalho; um espesso
nevoeiro invadia a sala; a humidade caía como neve espessa; já não se
conseguiam ver uns aos outros; o calor humano fugia das extremidades do corpo;
os pés e as mãos começavam a ficar roxas; a cabeça envolvia-se de um manto de
ferro, e o pensamento confuso, diminuído, gelado, atingia o delírio. Sintoma
aterrorizador: a língua não conseguia já articular uma palavra.
Depois do dia em que ameaçaram queimar o navio, Hatteras passeou longas horas
na ponte. Vigiava, velava. Essa madeira era a sua própria carne! Cortar-lhe um
pedaço era como cortar-lhe um membro. Estava armado e de guarda, insensível ao
frio, à neve, a esse gelo que enrijecia as roupas e o envolvia como uma couraça
de granito. Duk, compreendendo-o, ladrava sobre os seus passos e acompanhava-o
com os seus uivos.
Contudo, no 25 de Dezembro, desceu à sala comum. O doutor,
aproveitando um
resto de energia, dirigiu-se a ele.
- Hatteras – disse-lhe – vamos todos morrer por falta de fogo!
- Nunca! – disse Hatteras, sabendo bem a que pedido respondia deste modo.
- É preciso – retomou o doutor.
- Nunca – retomou Hetteras com mais veemência – nunca tal consentirei. Se
quiserem, desobedeçam-me!
Assim era dada a liberdade de agir. Johson e Bell lançaram-se para a ponte. Hatteras ouviu a madeira do seu brigue estalar sob o machado. Chorou.
Era dia de Natal, a festa da família, em Inglaterra, a noite das reuniões
infantis! Que lembrança amarga a dessas alegres crianças em torno da árvore
enfeitada! Quem não se recordava das grandes peças de carne assada que
recheavam o boi engordado para a circunstância? E essas tortas, essas tartes,
onde ingredientes de todo o género eram misturados para esse dia tão caro aos
corações ingleses? Mas aqui, havia apenas dor, desespero, miséria no seu mais
baixo grau, e, como tronco de Natal, os pedaços de um navio perdido na mais
recôndita zona glaciar!
Contudo, sob influência do fogo, o sentimento e a força regressaram ao coração
dos marinheiros; as bebidas escaldantes de chá e café produziram um bem-estar
instantâneo, e a esperança é algo de tão tenaz ao espírito que voltaram a ter
fé. Foi com estas alternativas que se terminou este funesto ano de 1860 cujo
Inverno precoce deitara por terra os projectos ardilosos de Hatteras.
Jules Verne
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