«Notícias do Futuro»
Futuro, por Estra Zulas
116- «NOTÍCIAS DO FUTURO»
Martin Thompson não era homem de caráter recomendável. Tinha
uma língua ferina, aguda e mordaz, e um grande conhecimento do mundo. Durante
muitos anos vivera sem preocupações, entregue às suas atividades rotineiras. Em
épocas remotas, dedicou-se a organizar encontros de boxe e a dirigir concursos
de dança. Mais tarde, tomando gosto pelas corridas de cavalos e cães, converteu-se
num magnata de apostas, sobrepujando todos os colegas. Digamos de passagem que,
à imoralidade desses homens, Thompson associava uma inteligência que o
destacava no ramo. Entre a gente do turfe, era conhecido por “Perigoso Martin”,
o que já basta para dar uma idéia dos seus meios e condições.
As vicissitudes que assaltam aqueles que se dedicam às corridas pouparam
Thompson. Nos momentos de pânico, o “Perigoso” sorria, contava o dinheiro que
lhe ficava nas arcas e, olhando calmamente seus subordinados, dizia:
— Para cada imbecil que morre, nasce meia dúzia. Podem aceitar apostas de todos
os que desejem gastar dinheiro!...
A sorte era-lhe favorável. Martin confessava-o, sem dissimular o orgulho, sem
temer que uma bancarrota o atirasse novamente à miséria primitiva.
Certa noite, voltava para casa, assobiando entre dentes uma marcha militar,
depois de uma brilhante controvérsia com dois tipos de Whitechapel. Durante as
duas horas que durou a conferência, a superioridade oratória do “Perigoso”
desarmou os humildes delinqüentes, que terminaram concordando com o plano de
seqüestro concebido pelo chefe; e agora, concluída a tarefa, Martin via-se dono
do hipódromo, por obra e graça de um golpe audacioso; porque roubar um cavalo
considerado favorito não é coisa que se faça todos os dias.
Para chegar a Charing Cross, é preciso atravessar Whitecomb, uma rua deserta e
escura. O pessoal prefere evitá-la. Martin, porém, avançou por ela, absorto
como estava em brilhantes idéias. Eram oito horas da noite; a vibração dos
sinos do Big-Ben extinguiu-se lentamente.
Ao chegar à esquina de Whitecomb e Pall Mall, Martin viu um velho parado num
ângulo. Levantou a mão ao vê-lo:
— Olá, “Perigoso”.
Martin voltou-se nos calcanhares, surpreendido pelo cumprimento daquele homem.
— Olá! — respondeu despreocupado, e continuou seu caminho. Mas a insistência do
velho o fez parar.
— Está fazendo frio... — murmurou o desconhecido, avançando uns passos.
— Que deseja? — perguntou Martin. — Quem é você?
— Eu? Um velho, “Perigoso”...
— Pois eu não o conheço, amigo. De modo que...
— Ah! — interrompeu o velho. — Mas eu o conheço...
Martin resignou-se. Nada perdia em escutar as tolices do ancião.
— Pois bem, diga-me o que deseja.
— Simplesmente que me compre um jornal, “Perigoso”. Asseguro-lhe que não é um
jornal comum. Nada disso!
Martim levantou os ombros:
— Que significa para você um jornal não comum?
O velho olhou para trás, como se temesse que alguém o observasse. Em seguida,
colocando a mão protetoramente sobre a boca, disse:
— É o “Eco” de amanhã; a última edição da noite.
— Ora essa! — exclamou Martin, numa gargalhada. — O uísque subiu-lhe à cabeça,
amigo. Deve substituí-lo por outra bebida... Beba à minha saúde e à do diretor
do “Eco”...
Ninguém podia dizer que o “Perigoso” se negasse a socorrer os pobres, mas meia
libra não se vai dando assim à primeira vista. A consciência de Martin estava,
pois, tranqüila. Dispunha-se a continuar o seu caminho quando...
— Olhe! — disse o velho. E uma força estranha deteve Martin. Voltou atrás,
sentindo uma estranha inquietação.
— Que diabo quer você? — repetiu, exasperado, não tanto com aquele desconhecido
como consigo mesmo.
— Quero que me compre o “Eco”, “Perigoso”.
— Não me chame de “Perigoso” — disse Martin com raiva. — Chamo-me Thompson!...
— Já que faz questão... Pode ir, se o incomodo.
Martin sentiu-se ainda mais irritado com essas palavras.
— Dê-me esse jornal! — murmurou. — Quanto custa?
O velho olhou firme para Martin, sem abaixar a vista, e disse:
— Não quero cobrar nada por ele. — Advirto-o de que é o último exemplar existente.
Não há outro igual no mundo inteiro. Dentro de vinte e quatro horas, as
notícias que aqui estão sairão à luz.
— Tem graça isso, dito com tal seriedade! — exclamou Martin, rindo. — Então as
notícias de amanhã estão neste jornal?
— Pode ver, “Perigoso” — disse o velho com voz de mofa.
Um papel dobrado foi entregue a Martin. Aproximando-se do poste de iluminação,
olhou a data impressa no jornal. Seus dedos tremeram ao ler: “Sábado, 26 de
julho de 1934”. Tinha a certeza de que era 25 de julho, pois concluíra o
meeting de Kempton Park com grandes lucros. Sobre isso não havia a menor
hipótese de erro.
— Amanhã inicia-se o meeting de Gatwick — disse Martin, sem perceber que estava
falando alto. — Quer dizer que se este jornal é...
Desdobrou as páginas com precipitação, até chegar à seção de turfe. Um título
em letras garrafais surgiu ante seus olhos: “Resultado das corridas de
Gatwick”. Martin apoiou-se ao poste. Impossível, absolutamente impossível... No
entanto, ali estavam os resultados de Gatwick. No primeiro páreo vencera
Inkerman. E ele havia colocado 10 mil libras em Paper-clip!... E se as notícias
fossem verdadeiras?...
Ao voltar-se, notou que o velho tinha desaparecido. Dois desocupados
olhavam-no, cheios de curiosidade. Concluiu ser melhor procurar um lugar
tranqüilo para ler, enfiou o “Eco” no bolso e dirigiu-se para Charing Cross.
Thompson nunca bebia, mas compreendeu que precisava de uísque para coordenar
suas idéias. Entrou num bar e procurou um lugar deserto. Depois de beber,
achou-se em condições de continuar a leitura.
Inkerman pagou um rateio de 6 por 1, capaz de satisfazer ao mais exigente dos
apostadores. Salmon era o vencedor da segunda corrida. Embora Martin esperasse
tal resultado, ficou surpreendido com o colossal rateio pago pelo animal: 100
por 8!...
A terceira corrida foi ganha por Shallo. Enorme rateio! Na quarta...
Martin bebeu o segundo, e logo depois o terceiro copo de uísque. Era já muito
tarde para reunir seus agentes; mas era preciso dar marcha-ré antes de
iniciar-se a corrida...
— Estarei sonhando? — repetiu pela décima vez o “Perigoso”. Realmente era
absurdo ler notícias sobre fatos que se deviam realizar doze horas depois...
Aquilo ia além dos limites do possível; entretanto... o exemplar achava-se em
perfeito estado, e a data não mostrava sinais de falsificação. Os tipos
característicos do “Eco” eram perfeitamente reconhecíveis. Então...
— Impossível! Impossível! Não resta dúvida de que não estou sonhando — disse
Martin — e que este jornal é o “Eco”. Por conseguinte... Irei a Gatwick amanhã
bem cedo e darei ordem aos rapazes. Se isto for verdade, serei o homem mais
rico da Inglaterra!
Com cavalos que pagavam 100 por 8, sua fortuna estava feita. Bastava apenas
seguir as indicações do jornal e acreditar em milagres.
O dono do bar, que conhecia Thompson, aproximou-se com ar misterioso.
— Podia dar-me um palpite, senhor?
O “Perigoso” vacilou.
— Bem — disse finalmente, — não há inconvenientes. Jogue em Salmon no segundo.
Não se preocupe com os comentários. Esse cavalo ganhará.
Deixou a sala com passo irregular. Em caminho para casa, lembrou-se de que o
médico o proibira de beber. O “Perigoso Martin” bebendo! Até então ignorava o
que fosse álcool...
Martin chegou a Gatwick às primeiras horas da manhã. O meeting anual tinha nele
um jogador afortunado. Mas desta vez não se tratava de jogar, e sim de
acomodar-se às indicações do “Eco”.
Por exemplo, aceitar apostas em todos os cavalos, menos em Inkerman... e por
sua vez, arriscar cinco libras nos cascos desse animal.
Inkerman... Primeiro! Rateio: 6 por 1.
Assim, sucessivamente, as indicações do jornal foram se realizando. Depois
dessa vitória, deu-se a de Salmon no segundo páreo. E no terceiro...
Shallot era um animal de aspecto insignificante, e produziu má impressão no
desfile preliminar. O jóquei parecia inquieto quando os cavalos se enfileiraram
diante das fitas. Era evidente que poucos haviam apostado em Shallot; mas entre
esses poucos achava-se Martin, que arriscou a importância de todos os ganhos
anteriores.
Então, qual um pequeno pônei que desliza em meio a cavalos de grande categoria,
Shallot tomou a dianteira e ganhou a terceira corrida com três corpos de
vantagem.
Ébrio de glória, cercado de pessoas que o felicitavam com inveja nos olhos,
“Perigoso” deixou o hipódromo duas horas mais tarde. Sua enorme fortuna
representava a ruína de cem jogadores e o suicídio de um político; mas, “para
cada imbecil que morre, nasce meia dúzia”. E o rosto de Thompson, ao entrar no
trem que o reconduziria a Londres, era plácido e alegre.
Acompanhado por solícitos servidores, Martin procurou inutilmente uma mesa no
carro-restaurante, onde pudesse beber tranqüilamente. O vagão estava cheio de
jogadores, que comentavam em voz baixa a sorte desse homem extraordinário que
acabava de acertar nos oito vencedores com precisão matemática.
Uma garrafa de champanha devolveu-lhe um pouco das forças perdidas nesse dia
emocionante. No bolso do seu paletó amontoavam-se os cheques e as ordens de
pagamento: milhares e milhares de libras esterlinas! E além disso, estava ali o
“Eco”.
Movido pela antiga curiosidade, o “Perigoso” tirou o jornal do bolso para ler
outras notícias. A figura do velho apareceu claramente diante dos seus olhos. A
cara desse homem era diabólica, apesar da sua dignidade. Martin sentiu então um
estranho calafrio percorrer-lhe o corpo.
Abriu o diário. Comentários sobre a política européia. Acidentes de aviação na
Etiópia. Acidente esse que devia produzir-se duas horas depois, quando o trem
entrasse em Londres. Uma partida de tênis entre Tilden e Brougnon... Vencedor:
Tilden, por 6-1, 6-2 e...
Os olhos de Martin, errando pelas colunas, fixaram-se sobre uma notícia
impressa em grandes letras. A princípio, não compreendeu. Porém, logo viu as
palavras com clareza: “Morte no trem dos turfistas. O senhor Martin Thompson,
conhecido turfista, morreu esta tarde, quando voltava para Londres no trem de
Gatwick”.
As mãos de Martin abandonaram o jornal; as folhas caíram ao chão; e a palidez
que cobria o rosto do “Perigoso” estendeu-se às suas mãos paralisadas...
— Olhem! Thompson! Parece que desmaiou!
Um grupo de jogadores rodeou o corpo caído transversalmente no assento do
vagão. Alguém aproximou um copo cheio de uísque dos lábios de Martin, que
respirava com dificuldade.
— Não... não... nada de álcool. Parem o trem... por favor!
Ficou imóvel, com a boca aberta, numa expressão macabra.
— Não há nada a fazer — disse um cavalheiro, largando a mão de Martin. — O
coração o traiu.
— Pesavam muito os cheques que trazia — murmurou um dos jogadores, e todos
inclinaram a cabeça.
Ninguém pensou em apanhar o jornal que caíra debaixo do assento. Talvez, se um
deles tivesse imaginado a verdade, procurasse o diário.
E quem sabe lá se o encontraria...
Holloway Horn
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