«Uma Noite de Música», por Isaac Asimov.
«Uma Noite de Música»
Chorinho, por Cândido Portinari
111- «UMA NOITE DE MÚSICA»
Tenho um amigo que insinua, às vezes, que é capaz de conjurar
espíritos do além.
Ou pelo menos um espírito. Um espírito pequeno, com poderes
limitados. Na verdade, ele só fala a respeito depois do quarto uísque com soda.
É um equilíbrio delicado: com três drinques, não sabe nada a respeito de
espíritos; com cinco ele pega no sono.
Naquela noite, achei que ele estava bem no ponto, de
modo que puxei o assunto:
- Você se lembra daquele espírito seu amigo, George?
- Hein? – disse George, olhando para o seu drinque como
se não soubesse do que eu estava falando.
- Aquele pequeno espírito de dois centímetros de
altura, que uma vez você disse que era capaz de chamar na hora que
quisesse. Aquele que possui poderes paranormais.
- Ah! – exclamou George. – Está falando de Azazel! é o nome
dele, é claro. Não seria capaz de pronunciar o nome verdadeiro. É por isso que
o chamo de Azazel. Sim, eu me lembro.
- Você recorre muito a ele?
- Não. É perigoso. Muito perigoso. Há sempre a tentação de
brincar com o poder. Sou muito cauteloso com isso.
- Sabe, tenho altos padrões morais. Foi por isso que me
senti na obrigação de ajudar um amigo em dificuldades. Foi grande erro! Não
gosto nem de pensar…
- Que aconteceu?
- Acho que estou mesmo precisando desabafar cora alguém –
disse George, pensativo. – Talvez isso faça com que eu me sinta melhor…
Eu era bem mais moço [disse George], e naquele tempo as
mulheres eram uma parte importante da vida dos homens. Parece tolice agora, mas
me lembro nitidamente de pensar, naquela época, que não me interessaria por
qualquer mulher.
Hoje em dia, a gente fica com que a que aparecer, não faz
muita diferença, mas naquele tempo…
Eu tinha um amigo chamado Mortenson. Andrew Mortenson. Acho
que você não o conhece. Há anos que não o vejo.
Acontece que Mortenson estava caído por uma mulher, uma
mulher em particular. Ela era um anjo, dizia meu amigo. Não podia viver sem
ela. Era um ser único no universo. Você sabe como falam as pessoas apaixonadas.
O problema é que ela o havia deixado, e de uma forma
particularmente cruel e humilhante. Começara um namoro com outro homem bem na
frente dele, estalando os dedos na cara dele e rindo impiedosamente das
lágrimas dele.
Não estou falando de forma literal. Estou apenas tentando
transmitir a impressão que ele me causou. Estava aqui sentado, bebendo comigo,
neste mesmo bar. Fiquei com muita pena e disse para ele:
- Sinto muito, Mortenson, mas você não deve se deixar abalar
desse jeito. Quando puder pensar com clareza, verá que ela é apenas uma mulher.
Se olhar para a calçada, verá centenas como ela.
Ele protestou, com amargura:
- De agora em diante, meu amigo, não quero saber mais de
mulheres…, com exceção, é claro, da minha esposa, que de vez em quando não
consigo evitar. Só que eu gostaria de fazer alguma coisa para ela.
- Para sua mulher? – perguntei.
- Não, não, por que eu estaria querendo fazer alguma coisa
para minha esposa? Estou falando daquela mulher que me tratou de forma tão
impiedosa.
- O que você faria com ela?
- Sei lá…
- Talvez eu esteja em condições de ajudá-lo – disse eu,
ainda com pena do meu amigo. – Posso recorrer a um espírito com poderes
extraordinários. Um espírito pequeno, é claro – mostrei-lhe o polegar e
indicador, separados por uma distância de uns dois centímetros, para ter
certeza de que estava me entendendo -, que também tem suas limitações.
Contei-lhe a respeito de Azazel e ele, é claro, acreditou.
Já reparei que quando conto uma história, todos acreditam em mim. Agora quando
você conta uma história, amigo velho, o ar de incredulidade que paira sobre a
sala é de dar gosto. Nada como uma reputação de probidade e um ar de decência.
Quando lhe contei sobre Azazel, seus olhos brilharam.
Perguntou-me se ele poderia fazer alguma coisa para a ex-namorada.
- Depende do que for, amigo velho. Espero que não esteja
pensando em algo como fazê-la cheirar mal ou cuspir um sapo toda vez que tentar
falar.
- Claro que não! – protestou, indignado. – Quem pensa que
sou? Ela me deu dois anos de felicidade e quero recompensá-la. Você disse que
os poderes do seu espírito são limitados?
- Ele é deste tamaninho – disse eu, mostrando de novo o
polegar e o indicador.
- Poderia dar a ela uma voz perfeita? Nem que fosse
temporariamente? Nem que fosse para uma única apresentação?
- Vou perguntar a ele.
A proposta de Mortenson parecia muito cavalheiresca. Sua ex-namorada
cantava na igreja. Naquela época, eu tinha um bom ouvido e costumava freqüentar
a mesma igreja (mantendo distância da caixa de oferendas, é claro). Gostava de
ouvi-la cantar e acho que os outros fiéis também. Talvez a sua conduta moral
não estivesse de acordo com o ambiente, mas Mortenson me explicou que, no caso
de sopranos, eles estavam dispostos a ser bastante compreensivos.
De modo que consultei Azazel. Estava ansioso para ajudar.
Nada daquelas bobagens de exigir minha alma em troca. Lembro-me de que uma vez
perguntei a Azazel se ele queria minha alma e ele me perguntou o que era alma.
Não soube o que responder. Acontece que ele é um ser insignificante em seu
próprio universo e se sente muito importante podendo fazer coisas grandiosas no
nosso universo. Ele gosta de ajudar.
Azazel me disse que poderia fazer com que ela cantasse com
perfeição durante três horas. Contei a Mortenson, e ele me disse que estava
ótimo. Escolhemos uma noite em que ela estaria cantando Bach, Haendel ou outro
daqueles velhos batucadores de piano, e daria um solo longo e difícil.
Mortenson foi à igreja naquela noite e, naturalmente, eu fui
também. Sentia-me responsável pelo que estava para acontecer e achei que era
melhor ver a situação de perto.
Mortenson me disse, em tom sombrio:
- Assisti aos ensaios. Ela estava cantando da mesma maneira
que antes. Você sabe, como se tivesse um rabo e estives sem pisando nele.
Não era assim que costumava descrever a voz da moça. A
música das esferas, era como se referira a ela em várias ocasiões. Daí para
mais. Naturalmente, ele tinha sido passado para trás, o que pode distorcer o
senso crítico de um homem.
Olhei-o com ar de censura.
- Isso não é jeito de falar de uma mulher a quem você está
prestes a oferecer um grande presente.
- Aí é que está. Quero que a voz dela seja perfeita.
Simplesmente perfeita. E agora compreendo, agora que meus olhos estão livres do
manto diáfano do amor que os cobria, que a voz dela está longe da perfeição.
Acha que seu amigo pode fazer isso para mim?
- A mudança vai ocorrer exatamente às 8:15 da noite. – Senti
uma ponta de suspeita. – Você não estava pretendendo usar a perfeição no ensaio
para depois desapontar a audiência?
- De jeito nenhum – disse ele.
A coisa começou antes da hora, e quando ela se levantou para
cantar, toda vestida de branco, eram 8:14 pelo meu velho relógio de bolso, que
nunca está errado mais que dois segundos. Ela não era um daqueles sopranos
raquíticos; pelo contrário, tinha um físico avantajado, com muito espaço
interno para conseguir aquele tipo de ressonância que se torna necessário para
sustentar uma nota aguda sem se deixar abafar pela orquestra. Quando inspirou
profundamente para dar o primeiro agudo, pude ver o que Mortenson via nela,
mesmo descontando as várias camadas de tecido.
Ela começou a cantar normalmente, mas, exatamente às 8:15,
foi como se uma segunda voz tivesse entrado em cena. Vi quando leve um
sobressalto, como se não acreditasse no que estava acontecendo; a mão, que
estava na altura do diafragma, começou a tremer.
A voz aumentou de volume. Era como se tivesse se
trans-formado em um órgão. As notas eram perfeitas, límpidas, irretocáveis.
Diante delas, todas as notas anteriores pareciam imitações grosseiras.
Cada nota era emitida com o vibrato correto, se é esta a
palavra, aumentando ou diminuindo de intensidade com um controle perfeito da
emissão.
E ela melhorava a cada nota. O organista não estava olhando
mais para a partitura, e sim para ela, e não posso jurar, mas acho que parou de
tocar. Mesmo que estivesse tocando, ninguém notaria. Ninguém ouviria nenhum
outro som enquanto ela estivesse cantando.
O olhar de surpresa desapareceu do rosto da moça e foi
substituído por uma expressão de júbilo. Ela também pôs de lado a partitura que
estava segurando; não precisava mais dela. Cantava sem nenhum esforço, sem
pensar no que estava fazendo. O maestro estava paralisado, e os membros do coro
pareciam atônitos.
Afinal, o solo acabou e o coro começou a cantar de forma tímida,
titubeante, como se estivessem com vergonha de que suas vozes fossem ouvidas na
mesma igreja e na mesma noite.
O resto do programa foi todo dela. Quando cantava, era a
única a ser ouvida, mesmo que o coro e a orquestra a estivessem acompanhando.
Quando calava, era como se estivéssemos no escuro e não pudéssemos suportar a
ausência da luz.
E quando a audição terminou… eu sei que não é costume
aplaudir na igreja, mas todo mundo bateu palmas. Todos se puseram de pé como se
fossem marionetes e aplaudiram freneticamente. Era evidente que continuariam
aplaudindo até que ela cantasse de novo.
Ela cantou de novo; desta vez, sozinha, acompanhada apenas
pelo órgão e iluminada pelo projetor de luz. O coro tinha desaparecido.
Cantava sem nenhum esforço. Era impressionante. Tento
observar sua respiração, surpreendê-la tomando fôlego, descobrir quanto tempo
conseguiria sustentar uma nota a todo volume com apenas um par de pulmões para
fornecer o ar.
Mas não podia durar para sempre, e não durou. Até os
aplausos cessaram. Só então me dei conta de que, ao meu lado, Mortenson parecia
estar em transe, com o olhos fixos, todo o seu ser concentrado no sentido da
audição. Só então comecei a compreender o que havia acontecido.
Afinal de contas, sou uma pessoa reta, sem nenhuma malícia,
de modo que posso ser desculpado por não perceber qual era a intenção real de
meu amigo. Você, por outro lado, um tipo tão tortuoso que é capaz de subir uma
escada em espiral sem virar o corpo, já deve saber há muito tempo o que ele
pretendia.
A ex-namorada havia cantado com perfeição… mas nunca mais
seria capaz de repetir a façanha.
Era como se fosse cega de nascença e de repente, por apenas
três horas, fosse capaz de ver. Ver tudo que existe para ver, todas as cores,
formas e maravilhas que nos cercam e que não nos despertam a atenção porque já
estamos acostumados. Suponha que você pudesse ver tudo que existe durante três
horas… e depois ficasse cego outra vez!
É relativamente fácil suportar a cegueira se você nunca
enxergou. Mas saber por alguns instantes o que é ver e depois ficar cego de
novo? Ninguém suportaria isso.
Aquela mulher nunca mais tornou a cantar, naturalmente. Mas
isso é apenas parte da história. A tragédia real foi para nós, para a platéia.
Tivemos uma música perfeita durante três horas. Uma música
perfeita. Acha que desse dia em diante podemos nos contentar com menos que
isso?
Até hoje, meus ouvidos se recusam a ouvir música.
Recente-mente, fui a um desses festivais de rock, que estão tão na moda, só
para experimentar. Você não vai acreditar, mas não consegui distinguir uma nota
musical. Para mira, era apenas ruído.
Meu único consolo é que Mortenson, que escutou com mais
ansiedade e concentração do que todo mundo, foi a pessoa mais atingida da
platéia. Ele passa o tempo todo usando tampões nos ouvidos. Qualquer som o
deixa nervoso. Bem feito!
Isaac Asimov
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