119- «A MISSA DAS SOMBRAS
Eis o que o sacristão da igreja de Santa Eulália, em
Neuville-d'Aumont, me contou debaixo da latada do Cavalo-Branco, numa bela
noite de verão, bebendo uma garrafa de velho vinho, à saúde de um morto muito
abastado, que ele havia enterrado honrosamente naquela manhã mesma, sob um
tecido cheio de belas lágrimas de prata.
"Meu finado e pobre pai (quem fala é o sacristão) foi, em vida, coveiro.
Era de humor agradável, e isso sem dúvida decorria de sua profissão, porque se
tem reparado que as pessoas que trabalham nos cemitérios possuem espírito
jovial. A morte não os atemoriza absolutamente; jamais se preocupam com ela.
Eu, que lhe estou falando, senhor, penetro num cemitério, à noite, tão
serenamente quanto no caramanchão do Cavalo-Branco. E se, por acaso, encontro
um espectro, não me inquieto absolutamente com isso, porque reflito que ele
pode perfeitamente ir cuidar de seus negócios, da mesma forma que eu dos meus.
Conheço os hábitos dos mortos e seu caráter. Sei a tal respeito coisas que os próprios
sacerdotes ignoram. E o senhor ficaria surpreso se lhe contasse tudo que tenho
visto. Mas, nem todas as verdades são próprias para serem contadas, e meu pai,
que, todavia, gostava de narrar histórias, não revelou a vigésima parte do que
sabia. Em compensação, repetia muitas vezes as mesmas narrativas e, ao que eu
saiba, relatou bem umas cem vezes a aventura de Catarina Fontaine.
Catarina Fontaine era uma velha solteirona, que ele se lembrava de ter visto
em criança. Não me surpreenderia se ainda houvesse na região, até, uns três
velhos que ainda se recordem de ter ouvido falar a seu respeito, porque ela era
muito conhecida e considerada, embora pobre. Morava numa esquina da Rua das
Freiras, na torrezinha que o senhor ainda pode ver e que depende de um velho
palacete arruinado, que dá para o jardim das Ursulinas. Há. nessa torrezinha,
figuras e inscrições meio apagadas. O falecido pároco de Santa Eulália,
Levasseur, dizia aí estar escrito, em latim, que "o amor é mais forte que
a morte". O que se refere, acrescentava, ao amor divino.
Catarina Fontaine vivia sozinha nessa pequena habitação. Fazia rendas. O senhor
sabe que as rendas de nossa região eram, antigamente, muito afamadas. Não se
conheciam parentes ou amigos seus. Dizia-se que amara, aos dezoito. anos, o
jovem cavaleiro "d'Aumont", com quem noivara secretamente. Mas as pessoas
de bem não queriam acreditar absolutamente nisso e diziam tratar-se de uma
história que fora imaginada, porque Catarina Fontaine lembrava mais - uma dama,
que uma operária, conservava sob seus cabelos brancos os vestígios de uma
grande beleza, possuía um ar triste e se lhe podia ver, na mão, um desses anéis
em que o ourives colocara duas mãozinhas unidas e que era costume outrora os
noivos trocarem. O senhor saberá, daqui a pouco, o que isso significa.
Catarina Fontaine vivia santamente. Frequentava as igrejas e, todas as manhãs,
qualquer que fosse o tempo, ia ouvir a missa de seis horas, em Santa Eulália.
Ora, uma noite de Dezembro, quando ela estava deitada em seu pequeno quarto,
foi despertada pelo toque dos sinos; certa de estarem eles anunciando a
primeira missa, a piedosa senhora vestiu-se e desceu à rua, onde a noite era
tão fechada que se não viam absolutamente as casas; claridade alguma era
perceptível, no céu negro. E reinava tamanho silêncio nessas trevas - que nem
penso um cão ladrava ao longe - que a pessoa se sentia completamente separada
do mundo dos vivos. Mas Catarina Fontaine, que conhecia cada uma das pedras
onde pisava e que podia ir à igreja de olhos fechados, alcançou, sem
dificuldade, a esquina da Rua das Freiras com a Rua da Paróquia, no ponto onde
se ergue a casa de madeira que exibe uma árvore de Jessé, esculpida numa
volumosa trave. Tendo alcançado esse local, ela viu que as portas da igreja
estavam abertas e que deixavam sair uma grande claridade de círios. Continuou a
caminhar e, tendo entrado, encontrou-se numa reunião, que enchia a igreja. Ela,
porém, não reconhecia nenhum dos presentes, e estava surpresa ao ver - aquelas
pessoas trajadas de veludo e de- brocado, - plumas no chapéu e trazendo espada,
à maneira dos tempos de antanho. Havia senhoras que seguravam longas bolsas de
castão de ouro e damas com toucados de nadas, presos com um pente em diadema.
Cavaleiros davam a mão a essas senhoras, que escondiam atrás do leque
um rosto pintado, do qual só era visível um sinal no canto dos olhos! E todos
iam colocar-se em seu lugar, sem o menor ruído, e não se ouvia,, enquanto
andavam, nem o som dos passos no lajedo, nem o roçagar dos tecidos.
As naves laterais enchiam-se de multidão de jovens artesãos, de casaco pardo, calções de fustão e meias azuis, que seguravam pela cintura raparigas
lindíssimas, rosadas, que conservavam os olhos baixos. E, junto ás pias de água
benta, camponesas de saia vermelha e corpinho de atar, sentavam-se no chão com
a tranquilidade dos animais domésticos, enquanto uns mocetões, de pé atrás
delas, - alavam os olhos, rodando o chapéu nos dedos. E todas aquelas
fisionomias silenciosas pareciam imobilizadas para sempre, no mesmo pensamento,
suave e triste. Ajoelhada em seu lugar costumeiro, Catarina Fontaine viu o
sacerdote caminhar para o altar, precedido por dois acólitos. Não reconheceu
nem o sacerdote, nem os ajudantes. Começou a missa. Era uma silenciosa missa, na
qual não se ouvia absolutamente o som dos lábios que se agitavam, nem o rumor
da sineta agitada inutilmente. Catarina Fontaine sentia-se sob o olhar e sob a
influência de seu misterioso vizinho e, tendo olhado, sem quase volver a cabeça-
reconheceu o jovem cavaleiro d'Aumont-Cléry, que a havia amado e que morrera
fazia quarenta e cinco anos. Reconheceu-o por um sinalzinho que ele possuía sob
a Orelha esquerda e, principalmente, pelo sombreado dos longos cílios negros em
seu rosto. Vestia o traje de caça, com botões dourados, que ele usara no dia
em que, tendo-a encontrado no bosque de São Bernardo, roubara-lhe um beijo.
Conservava a Sua Mocidade e seu bom aspecto. Seu sorriso ainda mostrava uma
dentadura de jovem lobo.
Catarina disse-lhe, baixinho:
Senhor, vós que fostes meu amigo e a quem dei outrora o que uma jovem possui de
mais precioso, Deus vos tenha em sua graça! Possa ele me inspirar, finalmente,
o pesar pelo pecado que cometi convosco: porque é verdade que, de cabelos
brancos e próxima da morte, ainda não me arrependo de vos ter amado. Mas,
finado amigo, meu belo senhor, dizei-me, quem são essas pessoas trajadas à
maneira antiga, que estão assistindo aqui a esta silenciosa missa.
O cavaleiro d'Aumont-Cléry respondeu com uma voz mais débil que um sopro e, não
obstante, mais clara que o cristal:
- Catarina, esses homens e essas mulheres são almas do purgatório, que
ofenderam a Deus, pecando, a nosso exemplo, pelo amor das criaturas, mas que
nem por isso estão desligadas de Deus, porque seu pecado foi, a exemplo do
nosso, sem maldade. Enquanto separadas daqueles que amavam sobre a terra, elas
se purificam no fogo do purgatório, padecem as dores da ausência, e para elas
esse sofrimento é o mais cruel. São tão infelizes que um anjo do céu se apiedou
de seu martírio de amor. Com o consentimento de Deus, reúne, todos os anos,
durante uma hora da noite, o amigo à amiga em sua igreja paroquial, onde lhes é
permitido assistir à missa das sombras, segurando-se pela mão. Esta é a
verdade. Se me foi permitido ver-te aqui antes de tua morte, Catarina, tal
coisa não se realizou sem a permissão de Deus.
E Catarina Fontaine lhe respondeu:
- Bem desejaria morrer para voltar a ser formosa como nos dias, meu finado
senhor, em que te dava de beber na floresta.
Enquanto falavam assim, baixinho, um cónego muito idoso recolhia as esmolas e
apresentava uma grande salva de cobre aos presentes, que ali deixavam cair
sucessivamente moedas antigas, desde muito tempo fora de circulação: escudos de
seis libras, florins, ducados, nobres com a rosa, e as moedas caíam em
silêncio.
Quando a salva de cobre lhe foi apresentada, o cavaleiro depositou um luís, que
não fez mais ruído que as outras moedas de ouro ou de prata.
Depois, o velho cónego parou em frente de Catarina Fontaine, que procurou em
seu bolso, sem nele encontrar, um real. Então, não desejando recusar sua
dádiva, tirou do dedo o anel que o cavaleiro lhe dera na véspera de sua morte,
e atirou-o na concha de cobre. O anel de ouro, ao cair ressoou como um pesado
badalo de sino e, ao ruído atroador que ele fez, o cavaleiro, o cónego, o
oficiante, os agitaram, as damas, os cavaleiros, toda a assistência
desapareceu; os círios se apagaram e Catarina Fontaine ficou sozinha nas
Trevas".
Tendo concluído assim sua narrativa, o sacristão bebeu um grande copo de vinho,
ficou um instante a meditar e depois prosseguiu, nestes termos:
"Contei-lhe esta história exactamente como a ouvi muitas vezes de meu pai e
creio que é verdadeira, porque corresponde a tudo o que tenho observado das
maneiras e dos costumes peculiares dos defuntos."
"Convivi com os mortos, desde minha infância, e sei que eles costumam
voltar a seus amores."
- É por isso que os mortos avarentos vagam, à noite, nas proximidades dos
tesouros que eles esconderam durante a vida. Montam boa guarda à volta de seu
ouro; mas os cuidados que eles tomam, longe de lhes servirem, prejudicam-nos, e
não é raro descobrir-se dinheiro enterrado na terra, pesquisando-se o sítio
frequentado por um fantasma. Da mesma forma, os finados maridos vêm atormentar,
à noite, suas mulheres, casadas em segundas núpcias, e eu poderia indicar
muitos que vigiaram melhor suas esposas depois de mortos do que o haviam feito
em vida...
Esses são dignos de censura, porque, em boa justiça, os defuntos não deveriam
ser ciumentos. Mas lhe estou contando o que tenho observado. Por isso é que se
deve ter cuidado quando se desposa uma viúva.
Aliás, a história que lhe relatei
tem sua comprovação no seguinte facto:
"Na manhã seguinte a essa noite extraordinária, Catarina Fontaine foi encontrada
morta em seu quarto. E o padre de Santa Eulália encontrou, na salva de cobre
que servia para o peditório, um anel de ouro, com duas mãos entrelaçadas.
Aliás, não sou homem que conte histórias para fazer rir. E se pedíssemos outra
garrafa de vinho?..."
Anatole France
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