«Os Mortos não Voltam»
A Jovem Mártir Ophelia, por Paul Delaroche
127- «OS MORTOS NÃO VOLTAM»
— Tenho a certeza de que os mortos não voltam.
O velho e simpático Dr. X, quebrando o silêncio em que se
tinha emparedado toda a noite, fez esta estranha afirmação num tom tão
perentório, com uma tal firmeza de acentuação, com uma tão grande
autoridade, que a sua frase, balde de água gelada na exaltação do grupo,
fechou a discussão como por encanto.
— Os mortos não voltam — repetiu.
Todos os olhares convergiram para ele. Impassível, eixo da
curiosidade geral, puxou mais a cadeira para o vão da janela aberta de
par em par sobre a noite cálida e estrelada de Agosto. Sacudiu a cinza do
cigarro, aspirou uma lufada de ar carregado dos -aromas dispersos do
jardim e do mar, e continuou tranquilamente:
— Eu explico a minha afirmação... e o tom em que a proferi —
acrescentou, com um dos seus belos sorrisos, de cujo encanto tinha o
segredo e que eram talvez a mais clara explicação dos seus repetidos
triunfos na vida. — Se a nossa discussão, meus senhores, não é uma
discussão ociosa, o que é muito provável, se semelhante coisa pode
entrar tanto quanto possível no domínio dos fatos experimentais, se tudo
isto que acabámos de dizer não é metafísica pura, a minha afirmação de há
pouco tem valor, e eu vou dar-lhes a sua explicação. A minha certeza é o fruto
de uma experiência que o acaso preparou magistralmente, numa época em que
estes problemas apaixonavam os intelectuais, problemas que deram origem
aos soberbos trabalhos de Gurnay, primeiro, e, logo a seguir, de Crooks,
Lodge, com o seu célebre Raymond, trabalhos que suscitaram todas as
curiosidades no mundo pensante. Nessa época, já relativamente afastada e
por assim dizer ainda de ontem, que a época trepidante dos sem-fios e dos
aviões destronou, não se falava noutra coisa: alucinações telepáticas,
visões, lucidez, pressentimentos, aparições objetivas, etc., fenômenos
ocultos, misteriosos, discutidos entre a zombaria e a incredulidade de
uns e a credulidade medrosa de outros — eis o assunto de toda a
conversação de uma ordem mais elevada ou com pretensões a tal. Eu lia
tudo quanto se publicava sobre o caso, e hesitante, balouçado entre a dúvida
e a certeza, intuitivamente crédulo e refletidamente descrente, preso
deste indefinido mal-estar que nos avassala perante os fatos
desconhecidos, fora do nosso conhecimento imediato, não conseguia firmar
uma opinião, ver esboçar-se o prelúdio de uma vaga certeza.
«Até que um dia, ou antes uma noite, o meu espírito
sossegou, apoiado a uma absoluta convicção que os fatos até hoje não
vieram desmentir.
«Não, meus senhores, os mortos não voltam. Nada faltou à
preparação da magistral experiência que o acaso me fez presenciar: campo
experimental, cenário, ambiente particular, emoção elevadíssima, tudo! E,
nessa noite, depois das rápidas parcelas de segundo de um voo para além
dos limites do consciente, a alma pousou de novo no domínio da vida
material sem ter visto, sem ter sentido nada.
O Dr. X. fez uma pausa, olhou a noite recamadinha de
estrelas, e pareceu escutar a voz soturna das ondas, rezando o seu
cantochão de eterna ansiedade.
— Foi em casa da Senhora L. — principiou ele.
— Você conhece, Veiga — disse, voltando-se para um rapaz
alto e loiro, de monóculo —, a deliciosa velhinha que possui, num cenário
de maravilha, le dernier salon ou l’on cause. Faz agora anos
por estes dias. Festejava-se num jantar íntimo a saída, do colégio, da
neta, a endiabrada garota que hoje é mãe não sei já de quantos taludos
bebés. Estávamos todos no terraço, depois de jantar, naquele lindo
terraço todo em mármore cor-de-rosa, janela escancarada sobre o mar, que
parece ter sido idealizado por um paxá das Mil e Uma Noites. Estava eu, a
dona da casa, Madame V., os dois irmãos Grey, o Ravara de Melo e aquela
linda rapariga que o ano passado professou num convento de Segóvia
e que você também conheceu muito bem, Lídia de Vasconcelos. Lembro-me
como se o caso se tivesse passado ontem. Não sei que poder evocador se
desprende desta noite, da melopeia destas ondas, que misteriosos eflúvios
traz consigo o ar que entra por esta janela aberta, o certo é que preciso
fazer um esforço para me convencer que isto não se passou ontem, que
tantos anos não dispersaram já toda esta gente que evoco. Influência do
cenário igual, da noite igual da discussão, talvez...
«Os Estoris enchiam-se de pontos luminosos; o céu, de
estrelas miudinhas. O Monte lembrava um presépio, como agora, sobre o mar
a escurecer, a preparar o mistério das suas bodas com a Lua que vai
surgir toda de branco.
«Discutia-se um caso de telepatia narrado pelo mais novo dos
Grey, aquele místico Robert de uma psicologia tão curiosa. Tinha visto,
segundo ele dizia, a mãe entrar no seu quarto, depois de ter atravessado
um comprido corredor que levava diretamente à alcova onde meses antes
expirara. O caso levantou, como calculam, enorme celeuma. Na mesa ninguém
se entendia; falavam todos a um tempo, faziam-se comentários, cada um expunha
a sua opinião, contava um caso da sua vida. Houve risos, blagues, e,
quando saímos para o terraço, deixando os dançarinos no salão, o Robert
continuava, impassível, a garantir a autenticidade da sua história, e nós
todos engalfinhados a discuti-la.
«Parece-me estar ouvindo o Ravara de Melo, o cético
elegante, rir com os seus espirituosíssimos paradoxos a escultural Madame
V., aquela loira Madame V. de quem a Lila dizia que trazia a arder na
cabeça todas as fogueiras de S. João, o tom de máscula impassibilidade do
Robert afirmando, a voz já apagada e tão doce da Senhora L.
O Dr. X. interrompeu o que estava a dizer para acender outro
cigarro, rito praticado sempre com um raro deleite de sibarita, precursor
do raro prazer de se intoxicar, operação que levava a cabo metodicamente,
desde os Paxás da sua adolescência até aos preciosos Abdulas de agora.
— Que linda noite! — murmurou, como se falasse consigo
próprio, e, em voz alta, continuando:
— Era uma noite assim; a pouco e pouco fomos adoçando as
vozes para não quebrar a harmonia da hora, daquela hora de uma
sobrenatural e mágica beleza que todos nós sentimos ser uma pausa na
nossa vida brutal, um momento digno de deuses na nossa feia vida de
homens, uma hora feita de envolventes bruxedos, tão pesada de perfumes,
tão embebida de doçura que, maquinalmente, as mãos quase esboçavam o
gesto de se estender para agarrar a hora maravilhosa que sentíamos
fugidia e já perdida nos momentos que passam. O riso de Madame V., num
dado momento, quase nos chocou como uma falta de tato, uma
inconveniência, como se ela se lembrasse de aparecer nua diante de nós
todos. De repente, elevou-se no salão a voz da Lila cantando a Balada do
Rei de Tule-.
Houve outrora um rei em Tule...
«A voz profunda e pastosa entrava na noite como um punhal
numa ferida: dilacerava-a. A pungente melodia fez-me subir as lágrimas
aos olhos, e ao coração uma turba de recordações que eu julgava perdidas
no mar da vida como a taça lendária sobre as águas do mar.
«Calamo-nos todos, a ouvir. O ruído das ondas acompanhava em
surdina a voz maravilhosa que subia e se espalhava na noite, que parecia
concentrar-se e compreender como uma alma. Julguei naquele momento ouvir
um soluço abafado, como se uma onda se tivesse quebrado ali mais perto de
nós; voltei-me negligentemente como para pousar o cigarro numa mesinha que
estava atrás de mim; não vi ninguém, a não ser a Lídia de Vasconcelos que
tranquilamente mordiscava um cravo branco. Quando a voz se calou no
arrastar dos últimos versos:
E a taça lá vai boiando
Por sobre as águas do mar...
fez-se um silêncio que nenhum de nós ousava ser o primeiro a
quebrar. Sobressaltou-nos, numa impressão desagradável, a voz roufenha, monótona,
do Robert, que num tom perentório, num tom todo britânico, teimosamente
preso à sua ideia, reatava o fio da discussão interrompida: “Os mortos
voltam.”
«A doce Senhora L. não pôde conter um sorriso. Aquele
sorriso, naquela ocasião, vinha sublinhar a sua opinião sobre os
Ingleses, opinião que eu conhecia e que achava de uma injustiça
flagrante; mas vão lá convencer as mulheres da injustiça de uma opinião
que elas criaram sozinhas!
«A discussão acendeu-se outra vez. Ravara deitou novamente fogo
às peças de artifício do seu espírito brilhante. O riso de Madame V.
ecoou mais cristalino na noite pura...
«Foi então que, cie novo, chegou aos meus ouvidos o eco
abafado de um soluço. Não havia dúvida, tinha sido um soluço. Voltei-me
rapidamente. A Lila continuava a mordiscar o seu cravo branco, mas,
olhando-lhe as mãos, compreendi tudo num relance: tremiam como as asas de
uma avezinha presa.
«O coração apertou-se-me cheio de uma imensa piedade por
aquele tristíssimo destino da rapariga. “Vocês sabem a história...
talvez”, disse ele voltando-se para o grupo que o escutava, e, a um sinal
negativo do rapaz de monóculo: “Não? A Lídia estava noiva de um seu
camarada, Álvaro Bacelar”, disse ele a um oficial da Armada que o ouvia,
com uma grande atenção, de pé, encostado ao peitoril da janela; “não,
você não pode lembrar-se; isto passou-se há anos, ainda você não tinha
entrado sequer na Naval; de um seu camarada que morreu, vítima de um
desastre no mar, oito dias antes do marcado para o casamento. O cadáver,
apesar de incansáveis pesquisas, nunca mais apareceu. Era um esplêndido
rapaz, dotado das mais fortes e sérias qualidades, de uma beleza viril
que se impunha. Lembro-me muito bem da cara dele, principalmente dos
olhos; tinha um olhar duro, um estranho olhar que nos penetrava como uma
verruma, que afirmava, que insistia; mas, quando nos pressentia o vago
mal-estar de uma alma que se sente vasculhada, adivinhada até aos seus
mais recônditos esconderijos, o olhar mágico dulcificava-se, aveludava-se,
transformava-se na suavidade de um olhar quase feminino, lânguido e
caricioso. Era realmente um belo rapaz. Lembro-me muito bem dele e da
tragédia da sua morte. Nos primeiros dias houve sérios receios de que a
noiva enlouquecesse. Eu fui vê-la nessa ocasião; depois, esteve numa casa
de saúde na Alemanha, viajou pelo Oriente, foi a Jerusalém. Voltou,
passados dois ou três anos, curada, segundo parecia. Reatou os seus
hábitos interrompidos, viram-na de novo, mais linda do que nunca, os salões
mais chiques da capital, e começaram, é claro, a fazer-lhe a corte. Nova,
bonita, rica, porque não? O mundo é dos vivos, os mortos têm o seu à
parte. Era natural que a pobre rapariga esquecesse, fizesse por viver,
tentasse de novo fundar um lar, desejasse filhos, não é verdade? As mãos
geladas de um cadáver não têm o direito de prender eternamente o coração
de uma rapariga de vinte anos que crê na vida, mas as deceções, na turba
cada vez mais numerosa dos pretendentes, foram-se multiplicando; Lídia de
Vasconcelos atendia benevolamente todos, mas não se decidia a escolher
nenhum. Vocês compreendem, um morto é um temível rival, um competidor
seriíssimo que tem por si as mil vantagens que a ausência e a saudade lhe
emprestam. A morte é o Reutlinger das recordações; na objetiva do coração
foca-as para sempre em beleza imutável e única. Quando, naquela noite,
lhe vi tremer as mãos pequeninas que, num jeito cheio de ansiedade,
seguravam o cravo branco, quando a vi olhar num olhar de inexprimível desalento
aquele mar, mortalha imensa de um ente que para todos era há muito apenas
uma recordação diluída e que para ela era a única realidade existente,
tive a impressão nítida de que o seu único, o seu obcecante desejo,
naquela ocasião, seria o impossível prodígio de poder erguer, com as suas
mãozinhas que tremiam, a ponta daquela mortalha, a dobra daquele grande
lençol, e contemplar um minuto, um só minuto, os olhos estranhos,
inolvidáveis, do morto. Senti que aquelas mãos só tinham forças para pedir
ao destino aquela esmola. O seu vestido de rendas prateadas, na claridade
leitosa da Lua, que se elevava acima das ondas, vestia-a de espuma a
faiscar. O grande diamante do seu anel de noivado parecia grande e pesado
de mais para o seu dedo miudinho e frágil de bebê. Naquele terraço, quase
às escuras, fez-me pensar numa imaterial aparição; parecia mais uma onda
que tivesse galgado o terraço e que se imobilizasse na expectativa de um
prodigioso e inefável milagre.” A voz aguda e trocista de Madame V.,
respondendo à frase do Robert, sobressaltou-me como uma pessoa que, no
melhor do seu sono, é acordada brutalmente para a realidade da vida. “Oh
Robert, que candura a sua! Estes Ingleses!. .. Você teve muito
simplesmente uma má digestão, coisa que acontece a muita gente. Será você
sonâmbulo?”, acrescentou a rir. Robert abanou gravemente a cabeça, o
irmão sorriu com o seu frio, com o seu cortante sorriso saxônio. Vocês
não podem fazer uma ideia: nunca vi sorrir um inglês, que não ficasse
irritado. Aqueles sorrisos nus e ao mesmo tempo complicados, onde parece
não haver nada e onde se adivinha tanta coisa, espicaçam-me como um
aguilhão. Ia para responder; não tive tempo. A voz da Senhora L., que
naquele momento se elevou, foi um unguento, um calmante no prurido da
minha cólera absurda; serenou-me como por magia. Ela dizia, abanando
tristemente a cabeça branca, que parecia de prata ao luar:
“Não, Robert, os mortos não voltam e é melhor que assim
seja... Que vergonha se voltassem! Onde há por aí uma alma de vivo que se
tivesse mantido digna de semelhante prodígio?... Eles vão, e a gente fica
e ri e canta e deseja e continua a viver! Mutilados, amputados, às vezes
do melhor de nós mesmo, a gente é como estes vermes repugnantes que,
cortados aos pedaços, criam novas células, completam-se e continuam a
rastejar e a viver! É uma miséria, é, mas é assim!” «A voz da Senhora L.
perdeu-se num murmúrio, casada ao murmúrio surdo das ondas, lambendo os
rochedos da praia. No salão dançava-se animadamente um charleston em
voga. Foi então que, na noite pura, na noite silenciosa talhada em horas
de imperecível beleza, estalou o grito sobre-humano, o grito que,
passados tantos anos, trago ainda nos ouvidos, que foi como que o
comentário à margem de todas as minhas dúvidas e incertezas, que
consubstanciou em si, no arrastar das suas notas trágicas, a resposta às
minhas interrogações em frente ao formidável mistério da morte. Lídia de
Vasconcelos tinha-se erguido na cadeira e, voltada para o mar, lívida,
irreconhecível, estendera os braços, e soltara num grito, como um
arranco, como um desgarrar de fibras, o nome querido: “João!”
«Àquele brado de angústia, àquele chamamento, àquele apelo
desesperado, a própria noite se enrodilhou cheia de medo e de assombro e
todos nos entreolhamos à espera que das ondas surgisse o morto, novo
Lázaro a um novo Surge et ambula. Foi um segundo de emoção como
nunca tinha vivido, como nunca mais poderei viver. Foi um momento. Lídia
tornou a cair na sua cadeira como um triste farrapinho branco, numa
crise de soluços que a sufocava; todos se levantaram para a socorrer. Eu
fiquei a olhar para o mar, o mar impiedoso que guardava a sua presa, que
se espreguiçava molemente
como uma fera que tem sono. Não, meus senhores, os mortos
não voltam. Se voltassem, haveria um que naquela noite teria voltado,
quando o chamaram.
O Dr. X. calou-se. Atirou para o jardim o cigarro meio
consumido, e ficou pensativo, a olhar o mar, com os olhos rasos de água.
Florbela Espanca
1 comentário:
No século vinte muitas foram as mulheres portuguesas que se destacaram no campo das letras. Desde logo as três Marias das "Novas Cartas Portuguesas" Mas a preferência de quem escreve estas linhas, e que me desculpem todas as outras, entre prosa e poesia, vão para: Florbela, Sofia, Natália e Agustina.
Obrigado ao Poet'Anarquista
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