«Guilherme Mona»
Conto de Alexandre Dumas, Pai
923- «GUILHERME MONA»
Vivia na aldeia de Fouly, faz alguns anos, um pobre camponês
chamado Guilherme Mona.
Todas as noites um urso ia roubar-lhe as pêras, porque para esses animais tudo
serve. Ele se dirigia, contudo, de preferência a uma pereira carregada de pêras
d'água. Quem suspeitaria que um animal desses possuísse gostos iguais aos dos
homens e que fosse escolher num pomar justamente as pêras d'água? Ora, por
desgraça o camponês de Fouly também preferia essas pêras a todos os demais
frutos. A princípio ele julgou que as crianças fossem responsáveis pelos danos
ao pomar; por isso apanhou o fuzil, carregou-o com sal grosso de cozinha e
pôs-se à espreita. Cerca de onze horas, reboou pela montanha um rugido.
"Ora essa, disse ele, há um urso nas proximidades." Dez minutos
depois se ouviu um segundo rugido, mas tão forte, tão próximo, que o camponês
pensou não dispor de tempo para alcançar sua casa e estendeu-se a fio comprido
no chão, alimentando uma única esperança: a de que o urso viesse atrás das
pêras e não dele.
De fato, o animal apareceu quase imediatamente a um canto do
pomar e dirigiu-se em linha recta para a pereira em questão, passou a dez passos
de Guilherme, subiu rapidamente na árvore, cujos galhos estalavam ao peso de
seu corpo, e pôs-se a causar aí tais estragos que se tornava evidente serem
bastantes duas visitas iguais àquela para a terceira se tornar inútil. Quando
se fartou, o urso desceu vagarosamente, como se lhe pesasse fazê-lo, tornou a
passar junto ao nosso caçador, a quem o fuzil carregado de sal não poderia ser
muito útil, naquela situação, e retirou-se tranquilamente para a montanha. Tudo
isso durara cerca de uma hora, durante a qual o tempo parecera maior para o
homem que para o urso.
O homem era valente, entretanto... e dissera baixinho, ao
ver o urso afastar-se: "Está bem, vai-te, mas isto não ficará assim,
tornaremos a nos ver." No dia seguinte, um vizinho que fora visitá-lo
encontrou-o serrando em pedaços os dentes de um forcado.
— Que estás a fazer! — perguntou-lhe.
— Divirto-me — respondeu Guilherme.
O vizinho apanhou os pedaços de ferro, voltou-se em todos os
sentidos, como homem que sabe o que pensar, e depois de refletir um instante
disse: "Olha, Guilherme, se queres, ser franco confessa que estes
pedacinhos de ferro estão destinados a furar uma pele mais grossa que a de um
camelo."
— Talvez — respondeu Guilherme.
— Sabes que sou boa pessoa — prosseguiu Francisco (era o
nome do vizinho) — pois bem! se quiseres, enfrentaremos ambos o urso: mais
valem dois homens que um só.
— Depende — disse Guilherme. E continuou a serrar um
terceiro pedaço de ferro.
— Olha — continuou Francisco, ficarás com a pele sozinho;
apenas dividiremos o prémio e a carne.
— Prefiro tudo — disse Guilherme.
— Mas não me podes impedir de procurar o rastro do urso na
montanha e, caso o encontre, de me emboscar em seu caminho.
— És livre de fazê-lo.
E Guilherme, que acabara de serrar seus três pedaços de
ferro, começou, assobiando, a preparar uma carga de pólvora duas vezes maior do
que a geralmente usada em carabinas.
— Parece-me que vais usar teu fuzil — disse Francisco.
— Claro! Três pedaços de ferro são mais seguros que uma bala
de chumbo.
— Isso estraga pele.
— Porém mata mais depressa.
— E quando pretendes fazer a cagada?
— Saberás amanhã.
— Pela última vez, não queres?
— Não.
— Previno-te que vou procurar o rastro.
— Divirta-se.
— Nós ambos, não?
— Cada qual por si.
— Adeus, Guilherme!
— Boa sorte, vizinho!
E o vizinho, ao se afastar, viu Guilherme colocar no fuzil a
dupla carga de pólvora, carregá-lo com os três pedaços de ferro e encostar a
arma a um canto do aposento. À noite, voltando a passar em frente à casa,
avistou, no banco junto à porta, Guilherme sentado, a, fumar tranquilamente seu
cachimbo. Procurou-o novamente. "Olha, disse-lhe, não guardo rancor. Achei
o rastro do nosso animal; de modo que não mais preciso de ti. Contudo,
proponho-te mais uma vez trabalharmos juntos."
— Cada qual por si — disse Guilherme.
O vizinho não pôde dizer alguma sobre o emprego dado por
Guilherme ao serão.
Às dez e meia, sua mulher viu-o apanhar o fuzil, dobrar
debaixo do braço um saco de cor cinzenta e sair. Não ousou perguntar-lhe aonde
ia. Francisco, por seu lado, realmente encontrara o rastro do urso; seguira-o
até o instante em que penetrara no pomar de Guilherme. E, não tendo o direito
de ficar de tocaia nas terras de seu vizinho, postou-se no pinheiral que fica a
meio caminho entre a montanha e o pomar de Guilherme.
Como a noite estivesse muito clara, viu este último sair de
casa pela porta dos fundos. Guilherme caminhou até um rochedo acinzentado que
rolara da montanha até o meio de sua propriedade e que ficava a vinte passos,
quando muito, da pereira, deteve-se aí, olhou para o saco, meteu-se dentro
dele, deixando aparecer apenas a cabeça e os braços, e apoiando-se à rocha,
depressa confundiu-se a tal ponto com a pedra, graças à cor do saco e à
imobilidade em que e conservava, que o vizinho, embora ciente de que ele ali
estava, não conseguia distingui-lo. Um quarto de hora decorreu assim à espera
do urso. Por fim, um rugido prolongado anunciou-o. Cinco minutos após,
Francisco avistou-o.
Mas, fosse por malícia, fosse por ter farejado o segundo
caçador, ele não seguia o caminho habitual; fizera, pelo contrário, uma volta,
e em vez de passar à esquerda de Guilherme, como acontecera na véspera, passava
agora à sua direita, fora do alcance da arma de Francisco, mas a dez passos, no
máximo, do fuzil de Guilherme.
Guilherme não se moveu. Poder-se-ia julgar que nem mesmo
estivesse vendo a fera que ele fora tocaiar e que parecia desafiá-lo passando
tão próximo. O urso, ao qual o vento não ajudava, pareceu, por seu lado,
ignorar a presença de um inimigo, e continuou rapidamente seu caminho em
direção à árvore. Mas no instante em que, erguendo-se nas patas traseiras,
abraçou o tronco com as patas dianteiras, descobrindo o peito, que seus grossos
ombros não mais protegiam, brilhou de súbito um sulco rápido de luz junto ao
rochedo e todo o vale reboou com a descarga do fuzil provido de dupla carga de
pólvora, e com os bramidos do animal, mortalmente ferido. Não houve uma pessoa
sequer na aldeia, talvez, que, não ouvisse a detonação do fuzil de Guilherme e
o bramido do urso. Este fugiu, tornando a passar, sem vê-lo, a dez passos de
Guilherme, que tornara a meter os braços e a cabeça no saco confundindo-se
outra vez com o rochedo.
O vizinho olhava semelhante cena apoiado nos joelhos e na
mão esquerda, apertando a carabina com a direita, pálido e contendo a
respiração; não obstante tratar-se de um caçador arrojado, confessou-me que,
nesse instante, preferia estar em sua cama a estar ali na tocaia.
Muito pior foi quando ele viu o urso ferido, depois de dar
uma longa volta, tentar seguir o caminho da véspera, que o levava diretamente
onde ele se encontrava. Fez o sinal da cruz, porque nossos caçadores são
religiosos, encomendou a alma a Deus e verificou se a carabina estava pronta
para disparar. O urso estava somente a cinquenta passos, rugindo de dor,
parando para torcer-se e morder o flanco no lugar do ferimento, e depois
continuando a avançar.
Cada vez mais se aproximava. Estava apenas a trinta passos.
Mais dois segundos e iria chocar-se contra o cano da carabina do vizinho
quando, parou de repente, aspirou ruidosamente o vento que soprava do lado da
aldeia, soltou um bramido terrível e voltou para o pomar.
— Cuidado, Guilherme! Cuidado! — exclamou Francisco
precipitando-se atrás do urso e tudo esquecendo para apenas pensar no amigo,
porque bem via que se Guilherme ainda não houvesse carregado de novo o fuzil,
estaria perdido. Não dera dez passos quando ouviu um grito. Um grito humano, um
grito ao mesmo tempo de dor e de agonia; um grito no qual a pessoa que o
soltava reunira todas as forças de seu peito, todos os seus rogos a Deus, todos
os seus pedidos de socorro aos homens: "Ai de mim!..."
Depois, mais nada, nem sequer um lamento sucedeu ao grito de
Guilherme.
Francisco não corria, voava; o declive do terreno
acelerava-Ihe a corrida. À medida que se aproximava, ia distinguindo cada vez
mais nitidamente o monstruoso animal que se movia na sombra, pisando o corpo de
Guilherme e despedaçando-o.
Francisco estava a quatro passos deles, e o urso estava tão
embravecido que não dera mostra de vê-lo. Ele não se atrevia a atirar, com
receio de matar Guilherme, se este ainda não houvesse morrido, porque tremia
tanto que não podia responder por sua pontaria. Apanhou uma pedra e jogou-a no
urso. O animal voltou-se enfurecido contra o novo inimigo; estavam tão próximos
um do outro que o urso levantou-se nas patas traseiras para sufocá-lo;
Francisco sentiu-o empurrar com o peito o cano da carabina. Premiu, maquinalmente,
o dedo no gatilho e o tiro partiu. O urso caiu para trás, a bala
atravessara-lhe o peito e partira-lhe a coluna vertebral.
Francisco deixou-o arrastar-se, bramindo, sobre as patas
dianteiras, e correu para Guilherme. Este não era mais um homem, nem mesmo era
um cadáver: dele restavam apenas ossos e carne esmagada, a cabeça estava quase
completamente devorada.
Como visse então, pelo movimento das luzes atrás das janelas, que muitos habitantes da aldeia haviam despertado, gritou repetidas vezes, indicando o lugar onde se encontrava. Alguns camponeses acudiram com armas, porque tinham ouvido os gritos e os tiros.
Depressa toda a aldeia se encontrou reunida no pomar de Guilherme. Sua mulher veio com os outros. Foi uma cena horrível. Todos os presentes choravam como crianças. Fizeram para ela, no vale do Ródano, uma coleta que rendeu 700 francos. Francisco deu-lhe a recompensa que recebeu, bem como lhe entregou o produto da venda da pele e da carne do urso. Finalmente, todos se esforçaram em ajudá-la e socorrê-la.
Alexandre Dumas, Pai
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