«Ascensão e Queda
de Alfredo Malagueta»
Por José Martins Garcia
910- «ASCENSÃO E QUEDA DE ALFREDO MALAGUETA»
[Excerto/ a contas com a poesia]
Também foi muito mal aceite pelos portalejos a tese de
Malagueta sobre o número quatro. Foi o caso que, interpelado por um colega
curioso sobre os maiores nomes da poesia nacional, Alfredo Malagueta confessou
não ter dúvidas quanto ao preenchimento da trilogia cimeira. Camões, Quental,
Pessoa. Mas depois?... O quarto lugar constituía um problema gravíssimo. Os
historiadores da literatura não davam achegas para tão melindrosa avaliação.
Nem os catedráticos sabiam quem era o quarto poeta, nem o Ministro da Educação
Nacional ousava decidir em tão transcendente matéria.
Quem seria?... Alfredo
Malagueta já sofrera noites de insónia, em demanda do almejado nome. Sem êxito.
Ora a voz da inspiração lhe segredava o nome de Bocage, ora o bom senso lhe
lembrava que um libertino nunca poderia ocupar tais píncaros. Por vezes a voz
misteriosa segredava-lhe o nome de Teixeira de Pascoaes, mas Pascoaes era pouco
lido... Também ouvira algumas vezes o nome de José Régio... Mas Régio ainda
vivia... De modo que esse preenchimento do quarto lugar era problema de quebrar
a cabeça mais erudita. O próprio Fernando Pessoa lhe chegara a pôr algumas
dúvidas em tempos, dada a utilização que fizera, impensadamente, do vocábulo
merda. Todavia, dada a sua já relativamente distante morte, tudo levava a crer
tratar-se de um pecadilho de juventude. O colega curioso, pouco adaptado à
ciência portaleja, perguntou: «Mas por que quer escolher o senhor doutor
quatro, e só quatro, poetas?» Alfredo Malagueta entusiasmou-se: «Colega, saiba
que depois do quarto virá o quinto, tal como sucederá com os impérios...»
Como tudo era rapidamente sabido na Porta - onde a moral
vítrea açambarcava as atenções de modo a impedir conhecimentos esotéricos - a
versão divulgada acerca dos poetas acentuou que Alfredo Malagueta descobrira
que, a seguir ao número quatro, vem o número cinco, interpretação causadora de
uns primeiros apupos na via pública.
Um primeiro
afastamento dos portalejos deixou-o muito solitário, rondando as águas
indiferentes, meditando nas nuvens carregadas, aproximando-se perigosamente das
serpentes e dos cães que guardavam os dois extremos da cidade. Estava a findar
aquele primeiro e amargurado ano lectivo quando, interrogado por um aluno
acerca do Canto IX de «Os Lusíadas», Malagueta perdeu o respeito pelo poeta
número um da lista e pipilou que Camões tinha sido um tarado sexual. O reitor,
homem franco ao modo antigo, resolveu intervir:
- Homem! - disse - Camões, fosse lá o que fosse,
sempre é o símbolo da pátria... Veja lá o que diz aos pequenos!
Alfredo Malagueta recolheu-se a um orgulho taciturno, ferido, ensimesmado, incompreen-dido. Circulava de casa ao liceu, de casa ao templo.
José Martins Garcia
Sem comentários:
Enviar um comentário