«O Palhaço»
Palhaço e Papagaio/ Rubens Trinaz
924- «O PALHAÇO»
Naquele inverno, só para fazer alguma coisa, comecei a vagar
pelos restaurantes tocando violão enquanto meu companheiro cantava. O companheiro
chamava-se Milone apelidado “o professor” porque ensinara ginástica sueca.
Tratava-se de um homenzarrão de mais ou menos cinquenta anos, não exactamente
gordo, mas quadrado, com um rosto denso e ameaçador e um corpaço maciço que
fazia com que as cadeiras rangessem quando se sentava. Eu tocava o violão do
meu jeito, isto é, quase sem me mexer, com os olhos baixos, porque sou um
artista e não um bufão; quem bancava o palhaço, ao contrário, era Milone.
Começava meio sem querer, em pé, erecto, apoiado a uma parede, o chapéuzinho em
cima dos olhos, os polegares sob a axila, a barriga fora das calças, o cinto
em baixo da barriga: parecia um bêbado cantando ao luar. Depois, pouco a pouco,
esquentava e, mesmo sem cantar de verdade, porque não tinha voz nem ouvido,
acabava dando um espectáculo de si mesmo, ou melhor, como eu já disse, bancava o
palhaço. Sua especialidade eram cançõezinhas sentimentais, as mais famosas, as
que normalmente comovem e enternecem, porém na sua boca aquelas canções não
comoviam, mas faziam rir, porque ele sabia torná-las ridículas, de um jeito
todo seu, desagradável e triste. Eu não sei o que tinha aquele homem; se na
juventude alguma mulher tinha aprontado com ele; ou talvez ele tivesse nascido
daquele jeito, com um carácter que se comprazia em tornar ridículas as coisas
boas e bonitas; o facto é que ele não era só um actor cómico, não, ele colocava
não sei que raiva no que fazia e era necessária toda a obtusidade das pessoas
enquanto comem para não perceberem que ele não era ridículo, mas fino de penas.
Superava a si mesmo sobretudo quando se tratava de imitar os movimentos, as
caretas e as afectações femininas. O que faz uma mulher, sorri maliciosamente? E
ele, por baixo da aba do chapéu, esboçava um riso de escárnio, vulgar, de
prostituta. Requebrava, como se diz, um pouco os quadris? E ele começava a
dança do ventre, jogando para o lado as nádegas quadradas e maciças como um
pacote. Tinha uma voz suave? E ele, apertando a boca, emitia uma voz de flauta,
melosa, quase estomacal. Nunca tinha medida, ultrapassava sempre o limite,
tornava-se obsceno, repugnante. De tal maneira, que eu sempre me envergonhava,
porque uma coisa é acompanhar um cantor ao violão, outra coisa é servir de
muleta a um palhaço. Eu me lembrava de ter tocado não muito tempo atrás as
mesmas músicas cantadas seriamente por um excelente artista; e sentia pena de
vê-las reduzidas àquilo, irreconhecíveis e indecentes. Falei com ele numa
ocasião em que estávamos batendo perna de rua em rua, de um restaurante a
outro. “Mas o que as mulheres fizeram para você?” Normalmente, depois que
bancava o palhaço, ficava distraído e sombrio, sabe-se lá com que pensamentos
rodando pela sua cabeça. “As mulheres não me fizeram nada.” “Eu estou dizendo
isso”, expliquei, “porque você tira sarro delas com gosto.” Desta vez ele não
disse nada e a conversa acabou por aí.
Teria abandonado Milone se não tivesse mais interesse por
ele; porque, ainda que possa parecer incrível, ele conseguia mais dinheiro com
as suas vulgaridades do que muitos excelentes músicos ambulantes com as suas
belas canções. Vagávamos principalmente por aqueles restaurantes não
propriamente de luxo, quase cantinas, caseiros, mas caros, onde as pessoas vão
para encher a pança e se divertir. Logo que entrávamos, eu, muito de leve,
dedilhava o violão, das mesas abarrotadas ouvia-se um só grito: “olha o
professor... o professor está aí... venha até aqui, professor”. Carrancudo,
debochado, desvairado, puxa-saco, Milone se apresentava, dizendo: “Podem pedir”,
e aquele “podem pedir” já era tão ridículo ao seu modo, que todos
morriam de rir. Nisso chegava o macarrão e, enquanto o dono do restaurante
esfalfava-se para servir, Milone, com uma voz idiota, anunciava: “Uma canção
muito bonita: quando Rosina desce do vilarejo... eu vou fazer a Rosina” Imaginem os clientes: quando o viam representando Rosina, com a gaguez e as
obscenidades de sempre, ficavam com os esparguetes pendurados no garfo, entre a
boca e o prato. E não se tratava de grupos de açougueiros ou coisa parecida,
eram todos grã-finos: os homens de terno azul escuro, engomados, uma pérola
espetada na gravata; as mulheres de casaco de pele, cobertas de jóias,
delicadas, preciosas. Falavam entre si, enquanto Milone bancava o palhaço: “É
bom... é realmente bom”, ou até mesmo alguém, alarmado, gritava: “Atenção, não
contem por aí que nós o descobrimos... se não a coisa desanda”. Entre as suas
vulgaridades, Milone tinha uma canção em que, numa determinada hora, para
tornar o personagem mais ridículo, fazia com a boca um certo barulho que eu nem
lhes conto. E vocês acreditam? Eram exactamente as madames mais afectadas que
pediam bis para esta música.
É preciso dizer que, por ser ver tão aplaudido, o sucesso
tinha subido à cabeça de Milone. Morava na casa de uma costureira, num quarto
mobilado, escuro e húmido, na via Cimarra. Agora, todas as vezes que eu ia
pegá-lo alguma nova grosseria, uma nova vulgaridade. Acrescentava um certo
escrúpulo mórbido, como se se tratasse de um grande actor preparando-se para a
apresentação; e eu, sentado na cama, olhando-o simular a dança do ventre
na frente do espelho da cómoda, perguntava-me se, por acaso, ele não fosse meio
louco. “Mas não seria hora”, perguntei-lhe num certo dia, “de inventar alguma
coisa graciosa, comovente?” E ele: ”a ver que você não entende nada... as
pessoas quando comem querem rir e não se comover... e eu”, acrescentou
rancoroso, “faço elas rirem”. Algum tempo depois, sempre por causa dessa mania
de se aperfeiçoar, inventou de levar numa maleta algumas roupas femininas pro
exemplo, um chapéuzinho, uma encharpe, uma sainha para vestir na hora, para tornar
a paródia mais cómica ainda. Esta ideia de travestir-se de mulher, nele, era
quase uma mania; não podem imaginar que dureza era vê-lo chacoalhar-se com o
chapéuzinho sobre os olhos e a saia amarrada na cintura, por cima das calças.
Finalmente, não sabendo mais o que inventar, sugeriu que eu também bancasse o
palhaço, mesmo continuando a dedilhar o violão. E aí eu me recusei.
Percorríamos o maior número de restaurantes que
conseguíamos, do meio-dia às três e das oito à meia-noite. Visitávamos vários,
dependendo do dia: um dia os restaurantes dos lados da Piazza di Spagna; um dia
aqueles ao redor da Piazza Venezia; outro dia os restaurantes de Trastevere,
outro dia ainda aqueles próximos da estação de trem. Entre um restaurante e
outro, sempre correndo pelas ruas, não conversávamos: não havia intimidade
entre nós. No fim da noite, íamos a uma cantina e dividíamos o dinheiro.
Depois, em silêncio, eu fumava um cigarro e Milone bebia um quarto de vinho. À
tarde, Milone ensaiava os seus números à frente do espelho; eu, por minha vez,
dormia ou ia ao cinema.
Numa noite de muito frio, depois de ter rodado as tabernas
de Trastevere, entramos, mais para nos aquecermos do que para tocar, numa
cantina atrás da Piazza Mastai. Tratava-se de um espaço comprido, quase um
corredor, com as mesas alinhadas ao longo da parede e, nas mesas, quase só
gente pobre, bebendo vinho da casa e comendo comida embrulhada em jornal. Não
sei por que, a vaidade, já que não podia ser interesse, levou Milone a se
exibir também naquela cantina. Escolheu então uma das suas músicas mais bonitas
e, com os modos de sempre, reduziu-a, à força dos escárnios e das contorções, a
uma porcaria. Logo que acabou, recebeu um aplauso bastante frio e depois, de
uma daquelas mesas, escutou-se uma voz: “Agora, quem vai cantar esta música sou
eu”.
Virei e vi que se aproximava um rapaz loiro, com um macacão
de mecânico, bonito como um anjo, olhando para Milone com olhar furioso, como
se quisesse comê-lo. “Você, comece a tocar”, disse-me com autoridade, “do
início.” Milone, fingindo que estava cansado, deixou-se cair numa cadeira
perto da porta. O rapaz me fez sinal com a mão para começar e então se pôs a
cantar. Não digo que ele cantasse como um verdadeiro cantor, mas cantava com
sentimento, com uma voz bonita, quente e tranquila, enfim, cantava como se deve
cantar e como a música pedia para ser cantada. Além disso, como eu já disse,
era bonito, com aqueles seus cachos, especialmente se comparado a Milone, tão
maciço e sórdido. Cantava virado para a cantina, olhando para uma mesa onde
estava sentada uma moça sozinha, como se estivesse cantando para ela. Quando
terminou, fez um gesto para Milone, com a mão estendida, como se dissesse: “é
assim que se canta”, e voltou para a mesinha onde o esperava a moça, que em
seguida colocou os braços em volta do seu pescoço. Na cantina para dizer a
verdade, aplaudiram por que ele se tinha incomodado em cantar. Mas eu o
entendera; e, desta vez, Milone também tinha entendido.
Enquanto eu tocava, olhara frequentemente para Milone; tinha
visto ele passar muitas vezes a mão no rosto e sob os cabelos que lhe caíam na
testa, como quem não está suportando ficar acordado e está caindo de sono. Mas
não conseguia esconder uma expressão amarga que eu nunca tinha visto; a cada nova
estrofe que o moço acertava, parecia que sua amargura crescia. Finalmente se
levantou, espreguiçando-se e fingindo que bocejava e disse: “Bem, está na hora
de ir dormir... estou com um sono...”.
Despedimo-nos na esquina, com o habitual encontro marcado
para o dia seguinte. O que aconteceu durante a noite, reconstruí depois,
mas são suposições. Eu disse que o sucesso tinha subido à cabeça de Milone,
imaginando ser sabe-se lá que grande artista quando na verdade era um pobre
coitado que bancava o palhaço para divertir as pessoas enquanto comiam; de modo
que foi grande o tombo que aquele rapaz loiro de macacão lhe deu com o seu
gesto. Acredito que, enquanto o rapaz cantava, de repente, deve ter visto a si
próprio como era e não como tinha até então acreditado ser: um homenzarrão de
cinquenta anos que colocava um babador e recitava a Vispa Teresa. Mas acho
também que ele se julgava incapaz de cantar, mesmo tendo feito um pacto com o
diabo. Ele, em suma, só conseguia fazer rir ridicularizando certas coisas. E estas
certas coisas, por coincidência, eram exactamente aquelas que ele, na sua vida,
nunca tinha conseguido ter.
Mas, como eu disse, são suposições. O certo é que a
costureira que lhe alugava o quarto no dia seguinte o encontrou enforcado entre
a janela e a cortina, no lugar em que geralmente ficavam penduradas as gaiolas
dos passarinhos. Foram algumas transeuntes a notá-lo, da via Cimarra, vendo,
através dos vidros, as pernas e os pés balançando no vazio. Despeitado
como todo suicida, tinha fechado a porta à chave e apoiado na porta a cómoda
com o espelho: talvez quisesse se ver, como quando ensaiava, enfiando o pescoço
no laço. Em suma, tiveram que arrombar a porta, o espelho caiu e se quebrou.
Levaram-no ao cemitério Verano e eu fui o único que o acompanhou, desta vez sem
violão. A costureira recolocou o espelho, mas se consolou vendendo, a uma certa
quantia o metro, a corda.
Alberto Moravia
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