segunda-feira, 28 de novembro de 2016

OUTROS CONTOS

«O Palhaço», por Alberto Moravia.

«O Palhaço»
Palhaço e Papagaio/ Rubens Trinaz

924- «O PALHAÇO»

Naquele inverno, só para fazer alguma coisa, comecei a vagar pelos restaurantes tocando violão enquanto meu companheiro cantava. O companheiro chamava-se Milone apelidado “o professor” porque ensinara ginástica sueca. Tratava-se de um homenzarrão de mais ou menos cinquenta anos, não exactamente gordo, mas quadrado, com um rosto denso e ameaçador e um corpaço maciço que fazia com que as cadeiras rangessem quando se sentava. Eu tocava o violão do meu jeito, isto é, quase sem me mexer, com os olhos baixos, porque sou um artista e não um bufão; quem bancava o palhaço, ao contrário, era Milone. Começava meio sem querer, em pé, erecto, apoiado a uma parede, o chapéuzinho em cima dos olhos, os polegares sob a axila, a barriga fora das calças, o cinto em baixo da barriga: parecia um bêbado cantando ao luar. Depois, pouco a pouco, esquentava e, mesmo sem cantar de verdade, porque não tinha voz nem ouvido, acabava dando um espectáculo de si mesmo, ou melhor, como eu já disse, bancava o palhaço. Sua especialidade eram cançõezinhas sentimentais, as mais famosas, as que normalmente comovem e enternecem, porém na sua boca aquelas canções não comoviam, mas faziam rir, porque ele sabia torná-las ridículas, de um jeito todo seu, desagradável e triste. Eu não sei o que tinha aquele homem; se na juventude alguma mulher tinha aprontado com ele; ou talvez ele tivesse nascido daquele jeito, com um carácter que se comprazia em tornar ridículas as coisas boas e bonitas; o facto é que ele não era só um actor cómico, não, ele colocava não sei que raiva no que fazia e era necessária toda a obtusidade das pessoas enquanto comem para não perceberem que ele não era ridículo, mas fino de penas. Superava a si mesmo sobretudo quando se tratava de imitar os movimentos, as caretas e as afectações femininas. O que faz uma mulher, sorri maliciosamente? E ele, por baixo da aba do chapéu, esboçava um riso de escárnio, vulgar, de prostituta. Requebrava, como se diz, um pouco os quadris? E ele começava a dança do ventre, jogando para o lado as nádegas quadradas e maciças como um pacote. Tinha uma voz suave? E ele, apertando a boca, emitia uma voz de flauta, melosa, quase estomacal. Nunca tinha medida, ultrapassava sempre o limite, tornava-se obsceno, repugnante. De tal maneira, que eu sempre me envergonhava, porque uma coisa é acompanhar um cantor ao violão, outra coisa é servir de muleta a um palhaço. Eu me lembrava de ter tocado não muito tempo atrás as mesmas músicas cantadas seriamente por um excelente artista; e sentia pena de vê-las reduzidas àquilo, irreconhecíveis e indecentes. Falei com ele numa ocasião em que estávamos batendo perna de rua em rua, de um restaurante a outro. “Mas o que as mulheres fizeram para você?” Normalmente, depois que bancava o palhaço, ficava distraído e sombrio, sabe-se lá com que pensamentos rodando pela sua cabeça. “As mulheres não me fizeram nada.” “Eu estou dizendo isso”, expliquei, “porque você tira sarro delas com gosto.” Desta vez ele não disse nada e a conversa acabou por aí.

Teria abandonado Milone se não tivesse mais interesse por ele; porque, ainda que possa parecer incrível, ele conseguia mais dinheiro com as suas vulgaridades do que muitos excelentes músicos ambulantes com as suas belas canções. Vagávamos principalmente por aqueles restaurantes não propriamente de luxo, quase cantinas, caseiros, mas caros, onde as pessoas vão para encher a pança e se divertir. Logo que entrávamos, eu, muito de leve, dedilhava o violão, das mesas abarrotadas ouvia-se um só grito: “olha o professor... o professor está aí... venha até aqui, professor”. Carrancudo, debochado, desvairado, puxa-saco, Milone se apresentava, dizendo: “Podem pedir”, e aquele “podem pedir” já era tão ridículo ao seu modo, que todos morriam de rir. Nisso chegava o macarrão e, enquanto o dono do restaurante esfalfava-se para servir, Milone, com uma voz idiota, anunciava: “Uma canção muito bonita: quando Rosina desce do vilarejo... eu vou fazer a Rosina” Imaginem os clientes: quando o viam representando Rosina, com a gaguez e as obscenidades de sempre, ficavam com os esparguetes pendurados no garfo, entre a boca e o prato. E não se tratava de grupos de açougueiros ou coisa parecida, eram todos grã-finos: os homens de terno azul escuro, engomados, uma pérola espetada na gravata; as mulheres de casaco de pele, cobertas de jóias, delicadas, preciosas. Falavam entre si, enquanto Milone bancava o palhaço: “É bom... é realmente bom”, ou até mesmo alguém, alarmado, gritava: “Atenção, não contem por aí que nós o descobrimos... se não a coisa desanda”. Entre as suas vulgaridades, Milone tinha uma canção em que, numa determinada hora, para tornar o personagem mais ridículo, fazia com a boca um certo barulho que eu nem lhes conto. E vocês acreditam? Eram exactamente as madames mais afectadas que pediam bis para esta música.

É preciso dizer que, por ser ver tão aplaudido, o sucesso tinha subido à cabeça de Milone. Morava na casa de uma costureira, num quarto mobilado, escuro e húmido, na via Cimarra. Agora, todas as vezes que eu ia pegá-lo alguma nova grosseria, uma nova vulgaridade. Acrescentava um certo escrúpulo mórbido, como se se tratasse de um grande actor preparando-se para a apresentação;  e eu, sentado na cama, olhando-o simular a dança do ventre na frente do espelho da cómoda, perguntava-me se, por acaso, ele não fosse meio louco. “Mas não seria hora”, perguntei-lhe num certo dia, “de inventar alguma coisa graciosa, comovente?” E ele: ”a ver que você não entende nada... as pessoas quando comem querem rir e não se comover... e eu”, acrescentou rancoroso, “faço elas rirem”. Algum tempo depois, sempre por causa dessa mania de se aperfeiçoar, inventou de levar numa maleta algumas roupas femininas pro exemplo, um chapéuzinho, uma encharpe, uma sainha para vestir na hora, para tornar a paródia mais cómica ainda. Esta ideia de travestir-se de mulher, nele, era quase uma mania; não podem imaginar que dureza era vê-lo chacoalhar-se com o chapéuzinho sobre os olhos e a saia amarrada na cintura, por cima das calças. Finalmente, não sabendo mais o que inventar, sugeriu que eu também bancasse o palhaço, mesmo continuando a dedilhar o violão. E aí eu me recusei.

Percorríamos o maior número de restaurantes que conseguíamos, do meio-dia às três e das oito à meia-noite. Visitávamos vários, dependendo do dia: um dia os restaurantes dos lados da Piazza di Spagna; um dia aqueles ao redor da Piazza Venezia; outro dia os restaurantes de Trastevere, outro dia ainda aqueles próximos da estação de trem. Entre um restaurante e outro, sempre correndo pelas ruas, não conversávamos: não havia intimidade entre nós. No fim da noite, íamos a uma cantina e dividíamos o dinheiro. Depois, em silêncio, eu fumava um cigarro e Milone bebia um quarto de vinho. À tarde, Milone ensaiava os seus números à frente do espelho; eu, por minha vez, dormia ou ia ao cinema.

Numa noite de muito frio, depois de ter rodado as tabernas de Trastevere, entramos, mais para nos aquecermos do que para tocar, numa cantina atrás da Piazza Mastai. Tratava-se de um espaço comprido, quase um corredor, com as mesas alinhadas ao longo da parede e, nas mesas, quase só gente pobre, bebendo vinho da casa e comendo comida embrulhada em jornal. Não sei por que, a vaidade, já que não podia ser interesse, levou Milone a se exibir também naquela cantina. Escolheu então uma das suas músicas mais bonitas e, com os modos de sempre, reduziu-a, à força dos escárnios e das contorções, a uma porcaria. Logo que acabou, recebeu um aplauso bastante frio e depois, de uma daquelas mesas, escutou-se uma voz: “Agora, quem vai cantar esta música sou eu”.

Virei e vi que se aproximava um rapaz loiro, com um macacão de mecânico, bonito como um anjo, olhando para Milone com olhar furioso, como se quisesse comê-lo. “Você, comece a tocar”, disse-me com autoridade, “do início.” Milone, fingindo que estava cansado, deixou-se cair numa cadeira perto da porta. O rapaz me fez sinal com a mão para começar e então se pôs a cantar. Não digo que ele cantasse como um verdadeiro cantor, mas cantava com sentimento, com uma voz bonita, quente e tranquila, enfim, cantava como se deve cantar e como a música pedia para ser cantada. Além disso, como eu já disse, era bonito, com aqueles seus cachos, especialmente se comparado a Milone, tão maciço e sórdido. Cantava virado para a cantina, olhando para uma mesa onde estava sentada uma moça sozinha, como se estivesse cantando para ela. Quando terminou, fez um gesto para Milone, com a mão estendida, como se dissesse: “é assim que se canta”, e voltou para a mesinha onde o esperava a moça, que em seguida colocou os braços em volta do seu pescoço. Na cantina para dizer a verdade, aplaudiram por que ele se tinha incomodado em cantar. Mas eu o entendera; e, desta vez, Milone também tinha entendido.

Enquanto eu tocava, olhara frequentemente para Milone; tinha visto ele passar muitas vezes a mão no rosto e sob os cabelos que lhe caíam na testa, como quem não está suportando ficar acordado e está caindo de sono. Mas não conseguia esconder uma expressão amarga que eu nunca tinha visto; a cada nova estrofe que o moço acertava, parecia que sua amargura crescia. Finalmente se levantou, espreguiçando-se e fingindo que bocejava e disse: “Bem, está na hora de ir dormir... estou com um sono...”.

Despedimo-nos na esquina, com o habitual encontro marcado para o dia seguinte.  O que aconteceu durante a noite, reconstruí depois, mas são suposições. Eu disse que o sucesso tinha subido à cabeça de Milone, imaginando ser sabe-se lá que grande artista quando na verdade era um pobre coitado que bancava o palhaço para divertir as pessoas enquanto comiam; de modo que foi grande o tombo que aquele rapaz loiro de macacão lhe deu com o seu gesto. Acredito que, enquanto o rapaz cantava, de repente, deve ter visto a si próprio como era e não como tinha até então acreditado ser: um homenzarrão de cinquenta anos que colocava um babador e recitava a Vispa Teresa. Mas acho também que ele se julgava incapaz de cantar, mesmo tendo feito um pacto com o diabo. Ele, em suma, só conseguia fazer rir ridicularizando certas coisas. E estas certas coisas, por coincidência, eram exactamente aquelas que ele, na sua vida, nunca tinha conseguido ter.

Mas, como eu disse, são suposições. O certo é que a costureira que lhe alugava o quarto no dia seguinte o encontrou enforcado entre a janela e a cortina, no lugar em que geralmente ficavam penduradas as gaiolas dos passarinhos. Foram algumas transeuntes a notá-lo, da via Cimarra, vendo, através dos vidros, as pernas e os pés balançando no vazio. Despeitado como todo suicida, tinha fechado a porta à chave e apoiado na porta a cómoda com o espelho: talvez quisesse se ver, como quando ensaiava, enfiando o pescoço no laço. Em suma, tiveram que arrombar a porta, o espelho caiu e se quebrou. Levaram-no ao cemitério Verano e eu fui o único que o acompanhou, desta vez sem violão. A costureira recolocou o espelho, mas se consolou vendendo, a uma certa quantia o metro, a corda.

Alberto Moravia

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