«O Avesso e o Direito»
Albert Camus
913- «O AVESSO E O DIREITO»
“Era uma mulher original e solitária. Mantinha uma estreita
relação com os espíritos, tomava partido deles em suas disputas e recusava-se a
encontrar-se com certas pessoas de sua família, malvistas no mundo em que se
refugiara.
Tocou-lhe na partilha da irmã uma pequena herança. Estes
cinco mil francos, que chegaram no fim de uma vida, revelaram-se bastante
incómodos. Era preciso fazer com que rendessem. Se quase todos os homens são
capazes de se servirem de uma grande fortuna, as dificuldades começam quando a
soma é pequena. A mulher continuou fiel a si própria. Próxima da morte, quis
abrigar seus velhos ossos. Ofereceram-lhe condições favoráveis. No cemitério de
sua cidade, acabara de expirar uma concessão, e, no terreno, os proprietários
haviam erguido um suntuoso jazigo, de linhas sóbrias, em mármore negro; em
resumo - um verdadeiro tesouro, que lhe deixavam pela soma de quatro mil
francos. E isso era um valor seguro, ao abrigo das flutuações da bolsa de
valores e dos acontecimentos políticos. Ela mandou arrumar a cova, manteve-a
pronta para receber seu próprio corpo. E, quando tudo ficou pronto, mandou
gravar o nome em maiúsculas de ouro.
Esse negócio agradou-lhe de tal forma que se tomou de um verdadeiro amor pelo
seu túmulo. No início, ia ver o andamento das obras. Acabou visitando o túmulo
todos os domingos à tarde. Foi sua saída singular e sua única distracção. Por
volta de duas horas da tarde, percorria o longo trajecto que a levava até as
portas da cidade, onde ficava o cemitério. Entrava no pequeno jazigo, tornava a
fechar cuidadosamente a porta e ajoelhava-se no genuflexório. Assim é que,
colocada diante da presença de si própria, confrontando o que ela era e o que
devia ser, redescobrindo o elo de uma cadeia sempre rompida, penetrou, sem
esforço, nos desígnios secretos da Providência. Por um símbolo singular, um dia
chegou até a entender que estava morta aos olhos do mundo. No Dia de Todos os
Santos, tendo chegado mais tarde que de hábito, encontrou a soleira da porta
piedosamente atapetada de violetas. Por uma delicada atenção, estranhos,
compadecidos diante desse túmulo abandonado sem flores, haviam compartilhado as
suas e honrado a memória desse morto entregue a si mesmo.
E eis que retomo essas coisas. Este jardim do outro lado da janela, dele só
vejo os muros. E essas poucas folhagens em que desliza a luz. Mais acima, são,
ainda, folhagens. Mais acima, está o sol. Mas, de todo esse júbilo do ar que se
sente do lado de fora, de toda essa alegria derramada sobre o mundo, só vejo
sombras da ramagem que brincam em minhas cortinas brancas. Cinco raios de sol
também que espargem pacientemente pelo quarto um perfume de ervas secas. Uma
brisa, e as sombras animam-se na cortina. Uma nuvem encobre, e depois torna a
encobrir o sol, e da sombra emerge o amarelo reluzente desse jarro de mimosas.
Isto basta: um único brilho nascente, e eis que me encho de uma alegria confusa
e atordoante. É uma tarde de janeiro, que me põe, assim, diante do avesso do
mundo. Mas o frio continua no fundo do ar. Em todo lugar, uma película de sol
que racharia sob a unha, mas que reveste todas as coisas com um eterno sorriso.
Quem sou, e que posso fazer, a não ser entrar no jogo das folhagens e da luz?
Ser este raio em que meu cigarro se consome, esta suavidade e esta paixão
discreta que respira no ar. Se tento chegar a mim, é bem no fundo desta luz. E,
se tento compreender e saborear esse delicado gosto que o segredo do mundo
confia, é a mim mesmo que encontro no fundo do universo. Eu mesmo, quero dizer,
essa extrema emoção que me liberta do cenário.
Há pouco, outras coisas, os homens e os túmulos que compram. Mas deixem-me
recortar este minuto no tecido do tempo. Outros deixam uma flor entra as
páginas de um livro, encerrando nele um passeio em que o amor os tocou de leve.
Eu também passeio, mas é um deus que me acaricia. A vida é curta, e é pecado
perder tempo. Sou activo, segundo dizem. Mas ser activo é, ainda, perder tempo,
na medida em que nos perdemos. Hoje é uma parada e meu coração parte ao
encontro de si mesmo. Se uma angústia ainda me oprime, é por sentir esse
impalpável instante escorrer por entre meus dedos, como as partículas do
mercúrio. Deixem, pois, aqueles que querem dar as costas ao mundo. Não me
queixo porque me vejo nascer. Neste momento, todo o meu reino é desse mundo,
este sol e estas sombras, este calor, e este frio que vem do fundo do ar: devo
perguntar-me se algo morre e se os homens sofrem, já que tudo está inscrito
nesta janela na qual o céu derrama a plenitude ao encontro de minha piedade.
Posso dizer, e vou dizê-lo daqui a pouco, que o que conta é ser humano e
simples. Não, o que conta é ser verdadeiro, e, então, tudo se inscreve nisso, a
humanidade e a simplicidade. E, então, quando sou mais verdadeiro do que quando
sou o mundo? Sou presenteado antes de ter desejado. A eternidade está ali, e eu
esperava por ela. Agora, não desejo mais ser feliz, e sim apenas estar
consciente.
Um homem contempla e o outro cava o seu túmulo: como separá-los? Os homens e
seu absurdo? Mas eis o sorriso do céu. A luz se infla e será logo verão? Mas
eis os olhos e a voz daqueles a quem é preciso amar. Sou ligado ao mundo por
todos os meus gestos; aos homens, por toda a minha piedade e o meu
reconhecimento. Entre este lugar e este avesso do mundo, não quero escolher,
não gosto que se escolha. As pessoas não querem que se seja lúcido e irónico.
Dizem: “Isso mostra que você não é bom.” Não vejo a ligação. É claro,
se ouso dizer a alguém que é imoralista, traduzo que ele tem necessidade de
atribuir-se uma moral; o outro, que despreza a inteligência, compreendo que não
consegue suportar suas dúvidas. Mas isto porque não gosto que se trapaceie. A
grande coragem é, ainda, a de manter os olhos abertos, tanto sobre a luz quanto
sobre a morte. De resto, como explicar o elo que leva deste amor devorador pela
vida a esse desespero secreto. Se escuto a ironia (esta garantia de liberdade,
da qual nos fala Barrès), escondida no fundo das coisas, ela se descobre
lentamente. E, piscando o olho pequeno e claro: “Viva como se...”, diz ela.
Apesar de muitas pesquisas, esta aí toda a minha ciência.
Afinal, não estou certo de ter razão. Mas o importante não é se penso naquela
mulher cuja história me contavam. Ela ia morrer e sua filha vestiu-a para o
túmulo enquanto ainda estava viva. Na verdade, parece que a coisa é mais fácil
quando os membros ainda não estão rígidos. Mas, mesmo assim, é curioso como
vivemos no meio de pessoas apressadas.”
Albert Camus
1 comentário:
Excelente conto!
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