«O Largo»
Ilustração de Adão Cruz
996- «O LARGO»
Antigamente, o Largo era o centro do mundo. Hoje, é apenas
um cruzamento de estradas, com casas em volta e uma rua que sobe para a Vila. O
vento dá nas faias e a ramaria farfalha num suave gemido, o pó redemoinha e cai
sobre o chão deserto. Ninguém. A vida mudou-se para o outro lado da Vila.
O comboio matou o Largo. Sob o rumor do rodado de ferro
morreram homens que eu supunha eternos. O senhor Palma Branco, alto, seco,
rodeado de respeito. Os três irmãos Montenegro, espadaúdos e graves. Badina
fraco e repontão. O Estroina, bêbado, trocando as pernas, de navalha em punho.
O Má Raça, rangendo os dentes, sempre enraivecido contra tudo e todos. O lavrador
de Alba Grande, plantado ao meio do Largo com a sua serena valentia. Mestre
Sobral. Ui Cotovio, rufião, de caracol sobre a testa. O Acácio, o bebedola do
Acácio, tirando retratos, curvado debaixo do grande pano preto. E, lá ao cimo
da rua, esgalgado, um homem que eu nunca soube quem era e que aparecia
subitamente à esquina, olhando cheio de espanto para o Largo.
Nesse tempo, as faias agitavam-se, viçosas. Acenavam
rudemente os braços e eram parte de todos os grandes acontecimentos. À sua
sombra, os palhaços faziam habilidades e dançavam ursos selvagens. À sua
sombra, batiam-se os valentes; junto do tronco de uma faia caiu morto António
Valmorim, temido pelos homens e amado pelas mulheres.
Era o centro da Vila. Os viajantes apeavam-se da diligência
e contavam novidades. Era através do Largo que o povo comunicava com o mundo.
Também, à falta de notícias, era aí que se inventava alguma coisa que se
parecesse com a verdade. O tempo passava, e essa qualquer coisa inventada vinha
a ser a verdade. Nada a destruía: tinha vindo do Largo. Assim, o Largo era o
centro do mundo.
Quem lá dominasse, dominava toda a Vila. Os mais
inteligentes e sabedores desciam ao Largo e daí instruíam a Vila. Os valentes
erguiam-se no meio do Largo e desafiavam a Vila, dobravam-na à sua vontade. Os
bêbados riam-se da Vila, cambaleando, estavam-se nas tintas para todo o mundo,
quem quisesse que se ralasse, queriam lá saber — cambaleavam e caíam de borco.
Caíam ansiados de tristeza no pó branco do Largo. Era o lugar onde os homens se
sentiam grandes em tudo que a vida dava, quer fosse a valentia, ou a
inteligência, ou a tristeza.
Os senhores da Vila desciam ao Largo e falavam de igual para
igual com os mestres alvanéis, os mestres-ferreiros. E até com os donos do
comércio, com os camponeses, com os empregados da Câmara. Até, de igual para
igual, com os malteses, os misteriosos e arrogantes vagabundos. Era aí o lugar
dos homens, sem distinção de classes. Desses homens antigos que nunca se
descobriam diante de ninguém e apenas tiravam o chapéu para deitar-se.
Também era lá a melhor escola das crianças. Aí aprendiam as
artes ouvindo os mestres artífices, olhando os seus gestos graves. Ou
aprendiam a ser valentes, ou bêbados, ou vagabundos. Aprendiam qualquer coisa e
tudo era vida. O Largo estava cheio de vida, de valentias, de tragédias. Estava
cheio de grandes rasgos de inteligência. E era certo que a criança que aprendesse
tudo isto vinha a ser poeta e entristecia por não ficar sempre criança a
aprender a vida — a grande e misteriosa vida do Largo.
A casa era para as mulheres.
No fundo das casas, escondidas da rua, elas penteavam as tranças,
compridas como caudas de cavalos. Trabalhavam na sombra dos quintais, sob as
parreiras. Faziam a comida e as camas — viviam apenas para os homens. E
esperavam-nos, submissas.
Não podiam sair sozinhas à rua porque eram mulheres. Um
homem da família acompanhava-as sempre. Iam visitar as amigas, e os homens
deixavam-nas à porta e entravam numa loja que ficasse perto, à espera que
saíssem para as levarem para casa. Iam à missa, e os homens não passavam do
adro. Eles não entravam em casas onde fossem obrigados a tirar o chapéu. Eram
homens que, de qualquer modo, dominavam no Largo.
Veio o comboio e mudou a Vila. As lojas encheram-se de
utensílios que, antes, apenas se vendiam nos ferreiros e nos carpinteiros. O
comércio desenvolveu-se, construiu-se uma fábrica. As oficinas faliram, os
mestres-ferreiros desceram a operários, os alvanéis passaram a chamar-se pedreiros
e também se transformaram em operários. Apareceu a Guarda, substituiu os
pachorrentos cabos de paz, e prendeu os valentes. As mulheres cortaram os
cabelos, pintaram a boca e saem sozinhas. Os senhores tiram agora os chapéus
uns aos outros, fazem grandes vénias e apertam-se as mãos a toda a hora. Vão à
missa com as mulheres, passam as tardes no Clube, e já não descem ao Largo.
Apenas os bêbados e os malteses se demoram por lá nas tardes de domingo.
Hoje, as notícias chegam no mesmo dia, vindas de todas as
partes do mundo. Ouvem-se em todas as vendas e nos numerosos cafés que abriram
na Vila. As telefonias gritam tudo que acontece à superfície da terra e das
águas, no ar, no fundo das minas e dos oceanos. O mundo está em toda a parte,
tornou-se pequeno e íntimo para todos. Alguma coisa que aconteça em qualquer
região todos a sabem imediatamente, e pensam sobre ela e tomam partido. Ninguém
já desconhece o que vai pelo mundo. E alguma coisa está acontecendo na terra,
alguma coisa terrível e desejada está acontecendo em toda a parte. Ninguém
fica de fora, todos estão interessados.
A Vila dividiu-se. Cada café tem a sua clientela própria,
segundo a condição de vida. O Largo que era de todos, e onde apenas se sabia
aquilo que a alguns interessava que se soubesse, morreu. Os homens separaram-se
de acordo com os interesses e as necessidades. Ouvem as telefonias, lêem os
jornais e discutem. E, cada dia mais, sentem que alguma coisa está acontecendo.
Também as crianças se dividiram: brincam
em comum apenas as da mesma condição; param às portas dos cafés que os pais ou
irmãos mais velhos frequentam. O Largo, agora, é todo o vasto mundo. É lá que
estão os homens, as mulheres e as crianças. No outro Largo, só os bêbados e os
madraços dos malteses — e aqueles que não querem acreditar que tudo
mudou. O certo é que ninguém já liga importância a esta gente e a este
Largo.
As grandes faias ainda marginam o Largo como antigamente e,
à sua sombra, João Gadunha ainda teima em continuar a tradição. Mas nada é já
como era. Todos o troçam e se afastam.
João Gadunha, o bêbado, fala de Lisboa, onde nunca foi. Tudo
nele, os gestos e o modo solene de falar, é uma imitação mal pronta dos homens
que ouviu quando novo.
— Grande cidade, Lisboa! — diz ele. — Aquilo é gente e mais
gente, ruas cheias de pessoal, como numa feira!
Gadunha supõe que em Lisboa ainda há largos e homens como
ele conheceu, ali, naquele Largo marginado pelas velhas faias. A sua voz
ressoa, animada:
— Querem vocês saber? Uma tarde, estava eu no Largo
do Rossio...
— No Largo do Rossio?
— Sim, rapaz! — afirma Gadunha erguendo a cabeça,
cheio de importância. — Estava eu no Largo do Rossio a ver o movimento. Vá de passar o pessoal para baixo, famílias para
cima, um mundo de gente, e eu a ver. Nisto, dou com um tipo a olhar-me de
esguelha. Cá está um larápio, pensei eu. Ora se era!... Veio-se chegando, assim como quem não quer a coisa, e meteu-me a mão por baixo da
jaqueta. Mas eu já estava à espera!... Salto para o lado e, zás, atiro-lhe uma punhada nos queixos: o tipo
foi de gangão, bateu com a cabeça num eucalipto e caiu sem sentidos!
Uma gargalhada acolhe as últimas palavras do Gadunha.
— Um eucalipto?
Apenas por um pormenor, estragou uma tão bela história.
Fosse antigamente, todos ouviriam calados. Agora, sabem tudo e riem-se. Mas
Gadunha teima. Diz que sim, que já esteve no Largo do Rossio, lá em Lisboa.
— Vocês já viram um largo sem eucaliptos, ou faias, ou
outra árvore qualquer? — pergunta ele, desnorteado.
Todos se afastam, rindo.
João Gadunha fica sozinho e triste. Os olhos arrasam-se-lhe
de água, a bebedeira dá-lhe para chorar. Agarra-se às faias, abraça-as, e
fala-lhes carinhosamente. Aperta-as contra o peito, como se tentasse abarcar
o passado. E as suas lágrimas molham o tronco carunchoso das faias.
Vai morrendo assim o Largo. Aos domingos, é ainda maior a
dor do Largo moribundo. Vão todos para os cafés, para o cinema ou para o campo.
O Largo fica deserto sob a ramaria das faias silenciosas.
É nesses dias, pelo fim da tarde, que o velho Ranito sai da
venda rangendo os dentes. Outrora, foi mestre-artífice; era importante e
respeitado. Hoje, é tão pobre e sem préstimo que nem sabe ao certo o número dos
filhos. Apenas sabe embebedar-se. Pequeno e fraco, o vinho transforma-o.
Entesa-se, ergue o cacete e, sem dobrar os joelhos, apenas com um golpe de pés,
pula para o ar e dá três cacetadas no pó do Largo antes de tocar de novo com os
pés no chão. Ergue a cabeça e grita, estonteado:
— Se há aí algum valente, que salte para aqui!
Mas já não há nenhum valente no Largo, já não há ninguém
no Largo. Ranito olha em volta com o olha espantado.
A vista turva-se-lhe, range os dentes:
— Ah vida, vida!...
Volteia o cacete sobre a cabeça. Vai de roda, feroz, pelo
Largo ermo de vida, atirando cacetadas contra o chão. Vai, de cinta solta
rojando, ágil e ridículo, a desafiar homens que já morreram.
Até que se cansa naquela luta desigual. O cacete
despega-se-lhe das mãos e ele fica lasso, desequilibrado. Aos tropeções, pende
para a frente e cai, tem que cair, o Largo já morreu, ele não quer, mas tem de
cair. Pesado de bebedeira e de desgraça, cai vencido.
Uma nuvem de poeira ergue-se; depois, tomba vagarosa e
triste. Tomba sobre o Ranito esfarrapado e tapa-o.
Ele já não pode ver que o Largo é o mundo fora daquele
círculo de faias ressequidas. Esse vasto mundo onde qualquer coisa, terrível e
desejada, está acontecendo.
Manuel da Fonseca
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