sábado, 11 de março de 2017

OUTROS CONTOS

«O Largo», por Manuel da Fonseca.

«O Largo»
Ilustração de Adão Cruz
996- «O LARGO»

Antigamente, o Largo era o centro do mundo. Hoje, é apenas um cruzamento de estradas, com casas em volta e uma rua que sobe para a Vila. O vento dá nas faias e a ramaria farfalha num suave gemido, o pó redemoinha e cai sobre o chão deserto. Ninguém. A vida mudou-se para o outro lado da Vila.

O comboio matou o Largo. Sob o rumor do rodado de ferro morreram homens que eu supunha eternos. O senhor Palma Branco, alto, seco, rodeado de respeito. Os três irmãos Montenegro, espadaúdos e graves. Badina fraco e repontão. O Estroina, bêbado, trocando as pernas, de navalha em punho. O Má Raça, rangendo os den­tes, sempre enraivecido contra tudo e todos. O lavra­dor de Alba Grande, plantado ao meio do Largo com a sua serena valentia. Mestre Sobral. Ui Cotovio, rufião, de caracol sobre a testa. O Acácio, o bebedola do Acácio, tirando retratos, curvado debaixo do grande pano preto. E, lá ao cimo da rua, esgalgado, um homem que eu nunca soube quem era e que aparecia subitamente à esquina, olhando cheio de espanto para o Largo.

Nesse tempo, as faias agitavam-se, viçosas. Ace­navam rudemente os braços e eram parte de todos os grandes acontecimentos. À sua sombra, os palhaços faziam habilidades e dançavam ursos selvagens. À sua sombra, batiam-se os valentes; junto do tronco de uma faia caiu morto António Valmorim, temido pelos ho­mens e amado pelas mulheres.

Era o centro da Vila. Os viajantes apeavam-se da diligência e contavam novidades. Era através do Largo que o povo comunicava com o mundo. Também, à fal­ta de notícias, era aí que se inventava alguma coisa que se parecesse com a verdade. O tempo passava, e essa qualquer coisa inventada vinha a ser a verdade. Nada a destruía: tinha vindo do Largo. Assim, o Largo era o centro do mundo.

Quem lá dominasse, dominava toda a Vila. Os mais inteligentes e sabedores desciam ao Largo e daí instruíam a Vila. Os valentes erguiam-se no meio do Largo e desafiavam a Vila, dobravam-na à sua vonta­de. Os bêbados riam-se da Vila, cambaleando, esta­vam-se nas tintas para todo o mundo, quem quisesse que se ralasse, queriam lá saber — cambaleavam e caíam de borco. Caíam ansiados de tristeza no pó branco do Largo. Era o lugar onde os homens se sentiam grandes em tudo que a vida dava, quer fosse a valentia, ou a inteligência, ou a tristeza.

Os senhores da Vila desciam ao Largo e falavam de igual para igual com os mestres alvanéis, os mestres-ferreiros. E até com os donos do comércio, com os camponeses, com os empregados da Câmara. Até, de igual para igual, com os malteses, os misteriosos e ar­rogantes vagabundos. Era aí o lugar dos homens, sem distinção de classes. Desses homens antigos que nunca se descobriam diante de ninguém e apenas tiravam o chapéu para deitar-se.

Também era lá a melhor escola das crianças. Aí aprendiam as artes ouvindo os mestres artífices, olhan­do os seus gestos graves. Ou aprendiam a ser valentes, ou bêbados, ou vagabundos. Aprendiam qualquer coisa e tudo era vida. O Largo estava cheio de vida, de valentias, de tragédias. Estava cheio de grandes rasgos de inteligência. E era certo que a criança que apren­desse tudo isto vinha a ser poeta e entristecia por não ficar sempre criança a aprender a vida — a grande e misteriosa vida do Largo.

A casa era para as mulheres.

No fundo das casas, escondidas da rua, elas pen­teavam as tranças, compridas como caudas de cavalos. Trabalhavam na sombra dos quintais, sob as parreiras. Faziam a comida e as camas — viviam apenas para os homens. E esperavam-nos, submissas.

Não podiam sair sozinhas à rua porque eram mu­lheres. Um homem da família acompanhava-as sem­pre. Iam visitar as amigas, e os homens deixavam-nas à porta e entravam numa loja que ficasse perto, à espe­ra que saíssem para as levarem para casa. Iam à missa, e os homens não passavam do adro. Eles não entravam em casas onde fossem obrigados a tirar o chapéu. Eram homens que, de qualquer modo, dominavam no Largo.

Veio o comboio e mudou a Vila. As lojas enche­ram-se de utensílios que, antes, apenas se vendiam nos ferreiros e nos carpinteiros. O comércio desenvol­veu-se, construiu-se uma fábrica. As oficinas faliram, os mestres-ferreiros desceram a operários, os alvanéis passaram a chamar-se pedreiros e também se transfor­maram em operários. Apareceu a Guarda, substituiu os pachorrentos cabos de paz, e prendeu os valentes. As mulheres cortaram os cabelos, pintaram a boca e saem sozinhas. Os senhores tiram agora os chapéus uns aos outros, fazem grandes vénias e apertam-se as mãos a toda a hora. Vão à missa com as mulheres, passam as tardes no Clube, e já não descem ao Largo. Apenas os bêbados e os malteses se demoram por lá nas tardes de domingo.

Hoje, as notícias chegam no mesmo dia, vindas de todas as partes do mundo. Ouvem-se em todas as vendas e nos numerosos cafés que abriram na Vila. As telefonias gritam tudo que acontece à superfície da terra e das águas, no ar, no fundo das minas e dos oceanos. O mun­do está em toda a parte, tornou-se pequeno e íntimo para todos. Alguma coisa que aconteça em qualquer região todos a sabem imediatamente, e pensam sobre ela e to­mam partido. Ninguém já desconhece o que vai pelo mundo. E alguma coisa está acontecendo na terra, algu­ma coisa terrível e desejada está acontecendo em toda a parte. Ninguém fica de fora, todos estão interessados.

A Vila dividiu-se. Cada café tem a sua clientela própria, segundo a condição de vida. O Largo que era de todos, e onde apenas se sabia aquilo que a alguns interessava que se soubesse, morreu. Os homens sepa­raram-se de acordo com os interesses e as necessida­des. Ouvem as telefonias, lêem os jornais e discutem. E, cada dia mais, sentem que alguma coisa está acon­tecendo.

Também as crianças se dividiram: brincam em comum apenas as da mesma condição; param às portas dos cafés que os pais ou irmãos mais velhos frequen­tam. O Largo, agora, é todo o vasto mundo. É lá que estão os homens, as mulheres e as crianças. No outro Largo, só os bêbados e os madraços dos malteses — e aqueles que não querem acreditar que tudo mudou. O certo é que ninguém já liga importância a esta gente e a este Largo.

As grandes faias ainda marginam o Largo como antigamente e, à sua sombra, João Gadunha ainda tei­ma em continuar a tradição. Mas nada é já como era. Todos o troçam e se afastam.

João Gadunha, o bêbado, fala de Lisboa, onde nunca foi. Tudo nele, os gestos e o modo solene de falar, é uma imitação mal pronta dos homens que ouviu quando novo.

— Grande cidade, Lisboa! — diz ele. — Aquilo é gente e mais gente, ruas cheias de pessoal, como numa feira!

Gadunha supõe que em Lisboa ainda há largos e homens como ele conheceu, ali, naquele Largo margi­nado pelas velhas faias. A sua voz ressoa, animada:

—   Querem vocês saber? Uma tarde, estava eu no Largo do Rossio...

—   No Largo do Rossio?

—   Sim, rapaz! — afirma Gadunha erguendo a ca­beça, cheio de importância. — Estava eu no Largo do Rossio a ver o movimento. Vá de passar o pessoal para baixo, famílias para cima, um mundo de gente, e eu a ver. Nisto, dou com um tipo a olhar-me de esguelha. Cá está um larápio, pensei eu. Ora se era!... Veio-se chegando, assim como quem não quer a coisa, e me­teu-me a mão por baixo da jaqueta. Mas eu já estava à espera!... Salto para o lado e, zás, atiro-lhe uma pu­nhada nos queixos: o tipo foi de gangão, bateu com a cabeça num eucalipto e caiu sem sentidos!

Uma gargalhada acolhe as últimas palavras do Gadunha.

— Um eucalipto?

Apenas por um pormenor, estragou uma tão bela história. Fosse antigamente, todos ouviriam calados. Agora, sabem tudo e riem-se. Mas Gadunha teima. Diz que sim, que já esteve no Largo do Rossio, lá em Lisboa.

— Vocês já viram um largo sem eucaliptos, ou faias, ou outra árvore qualquer? — pergunta ele, des­norteado.

Todos se afastam, rindo.

João Gadunha fica sozinho e triste. Os olhos arra­sam-se-lhe de água, a bebedeira dá-lhe para chorar. Agarra-se às faias, abraça-as, e fala-lhes carinhosa­mente. Aperta-as contra o peito, como se tentasse abarcar o passado. E as suas lágrimas molham o tronco carunchoso das faias.

Vai morrendo assim o Largo. Aos domingos, é ainda maior a dor do Largo moribundo. Vão todos para os cafés, para o cinema ou para o campo. O Largo fica deserto sob a ramaria das faias silenciosas.

É nesses dias, pelo fim da tarde, que o velho Ranito sai da venda rangendo os dentes. Outrora, foi mestre-artífice; era importante e respeitado. Hoje, é tão pobre e sem préstimo que nem sabe ao certo o número dos filhos. Apenas sabe embebedar-se. Pequeno e fraco, o vinho transforma-o. Entesa-se, ergue o cacete e, sem dobrar os joelhos, apenas com um golpe de pés, pula para o ar e dá três cacetadas no pó do Largo antes de tocar de novo com os pés no chão. Ergue a cabeça e grita, estonteado:

— Se há aí algum valente, que salte para aqui!

Mas já não há nenhum valente no Largo, já não há ninguém no Largo. Ranito olha em volta com o olha espantado.

A vista turva-se-lhe, range os dentes:

— Ah vida, vida!...

Volteia o cacete sobre a cabeça. Vai de roda, fe­roz, pelo Largo ermo de vida, atirando cacetadas con­tra o chão. Vai, de cinta solta rojando, ágil e ridículo, a desafiar homens que já morreram.

Até que se cansa naquela luta desigual. O cacete despega-se-lhe das mãos e ele fica lasso, desequilibra­do. Aos tropeções, pende para a frente e cai, tem que cair, o Largo já morreu, ele não quer, mas tem de cair. Pesado de bebedeira e de desgraça, cai vencido.

Uma nuvem de poeira ergue-se; depois, tomba vagarosa e triste. Tomba sobre o Ranito esfarrapado e tapa-o.

Ele já não pode ver que o Largo é o mundo fora daquele círculo de faias ressequidas. Esse vasto mundo onde qualquer coisa, terrível e desejada, está aconte­cendo.

Manuel da Fonseca

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